Fahrenheit - vigilância contra o pensamento crítico |
Quando em 1938 o jovem Orson Welles levou a sociedade estadunidense a beira do delírio coletivo com a apresentação radiofônica de uma invasão alienígena – na verdade a dramatização da novela de George Wells, Guerra dos Mundos – ficou bastante claro o poder que o rádio – naqueles dias uma mídia insurgente – desempenhava. Sua penetração era avassaladora e o que era veiculado na caixinha de som assumia status de verdade absoluta. A sociedade já não estava mais refém dos ilustrados, que sabiam ler, e desvendavam as letras dos jornais. Pelo rádio, a informação falada podia chegar a qualquer pessoa e em qualquer lugar. Abria-se o espaço para a liberdade do conhecimento. Só que não.
O que apareceu como um grande passo na democratização do conhecimento sobre as coisas do mundo logo começou a ser abocanhado pelas grandes empresas de comunicação e a informação já virou mercadoria e manipulação. As informações divulgadas no rádio serviam aos interesses da classe dominante. A verdade nascia morta. E em pouco tempo os modelos das agências internacionais foram se replicando em todos os espaços do globo terrestre, fazendo hegemônica não apenas a forma, mas também o conteúdo. No Brasil, por exemplo, foi muito famoso o noticiário radiofônico chamado “Repórter Esso”. Eram cinco minutos de notícias veiculados em três horários do dia, trazendo, segundo o locutor, “o mundo”. Mas, esse “mundo” era apenas aquele que as empresas patrocinadoras (petroleiras) queriam que existisse. E as notícias apenas reforçavam os interesses da classe dominante.
Quando despontaram os anos 1940 e 1950 o planeta vivia o período turbulento da segunda grande guerra e nesses momentos de mudança de temperatura geral a informação passava a ser ainda mais importante. Era preciso criar verdades. E aí, quem tivesse o controle dos meios massivos tinha também a massa na mão. O rádio foi fundamental nesse tempo. Quando a guerra acabou outra mídia foi incorporada ao processo de disseminação da informação: o cinema. Já não era apenas a arte sendo mostrada, mas um discurso que servia ao status quo. E, nesse quesito, os Estados Unidos fizeram história construindo uma indústria poderosa que mais era uma usina ideológica, capaz de transformar em verdade as mais estapafúrdias mentiras. Foi por conta dessa máquina que se disseminou a ideia da vitória estadunidense na guerra contra o nazismo, por exemplo. O desembarque na Normandia viralizou no mundo através dos dramas da tela grande e todo o sacrifício do povo russo, que resistiu bravamente em Leningrado, ou que enfrentou o frio mortal do inverno em Moscou, barrando os nazistas, ficou obscurecido. A força da imagem na telona do cinema e dos roteiros que inventavam a história se disseminaram pelo mundo afora.
Quando Ray Bradbury lançou seu livro “Fahrenheit 451” no ano de 1953, tempo em que a chamada guerra fria – disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética pelos corações e mentes – se consolidava, sua intenção era apresentar uma crítica radical ao sistema de comunicação estadunidense que parecia render-se a um tipo de pensamento único, sem espaço para a crítica. O livro mostrava uma sociedade no futuro, completamente dominada por telas de televisão gigantes, que ocupavam o espaço das casas de maneira onipresente, apresentando uma algaravia sem sentido, capaz de obnubilar o pensamento. Ao mesmo tempo, todos os livros eram banidos como coisas perigosas e desnecessárias. A segunda grande guerra havia terminado, com a União Soviética colocando por terra o sonho de Hitler, mas os Estados Unidos, a partir de uma eficaz ofensiva comunicacional passou a difundir para o mundo inteiro que a guerra havia sido vencida por eles, o chamado “mundo livre” em oposição ao que denunciavam como o totalitarismo soviético. Na indústria roliudiana os “russos” sempre foram representados como homens frios, maus e assassinos. Todo o mal vinha da União Soviética. Isso também consolidou um modo de pensar e de ver o mundo. A indústria do cinema não era só uma fábrica de sonhos, mas também uma fabrica de mentiras.
A televisão que começa a se massificar no final dos aos 60 segue a mesma lógica. Grandes empresas dominando o espectro e a informação sempre sob controle, garantindo o modo de ser do sistema capitalista de produção. As notícias, os filmes, o entretenimento, tudo seguindo um roteiro sem espaço para a pluralidade que se expressava na sociedade real.
Os meios de comunicação, ao longo de toda a história humana sempre tiveram essa característica. E claro, como tudo contém em si sua própria contradição, eventualmente apresentam brechas por onde a verdade salta. Mas, essas brechas são pequenas e, perdidas no universo da mentira, alcançam apenas aqueles que estão muito bem preparados para vê-las e compreendê-las. Umberto Eco, que foi um pensador da comunicação, sempre insistia na necessidade de os movimentos sociais criarem grupos de alfabetização para a televisão. Ele acreditava que se as pessoas estivessem capacitadas para perceber a ideologia e compreender os respiros de verdade que pela tela eram disparados haveria alguma chance para o pensamento crítico. Mas, poucos seguiram seus conselhos e durante muito tempo a televisão foi massificadora das ideias dominantes.
O nascimento da internet de novo trouxe o velho discurso da democratização da informação. Agora sim, diziam os estudiosos da comunicação, a rede permite a conexão de todos com todos e não haverá como manipular a verdade. Ilusão. A rede tem dono e tem interesses. E aquilo que surgiu como uma maravilha democrática muito rapidamente mostrou-se um espaço de totalitarismo em níveis jamais vistos. E, hoje, os instrumentos do facebook e whatsapp, dão vida àquilo de Bradbury apontou nos anos 50. Ou seja, a maioria das pessoas que vive nos países ricos ou em desenvolvimento, agarrada a um celular, está absolutamente presa a uma tela que não toma a parede da casa, mas simplesmente o dia inteiro do indivíduo que permanece conectado o tempo todo. Assim como no tempo do rádio e da televisão, o tempo das redes não é um tempo neutro e muito menos democrático. Poucas empresas no mundo dominam absolutamente tudo o que se vê ou lê. E mais, com o consentimento do cidadão, essas empresas também se apropriam dos dados pessoais de cada usuário manipulando-o não apenas no que pode comprar ou consumir, mas também nas suas convicções políticas e religiosas. A mais-valia ideológica apontada pelo pensador venezuelano Ludovico Silva na análise da televisão, agora encontra sua forma mais acabada no mundo das redes. Pois a televisão podia ser desligada, enquanto que o celular vibra 24 horas por dia e seu som é como o canto da sereia. Um chamado irresistível e mortal.
Para Ludovico Silva a mais-valia ideológica é justamente a prisão da pessoa ao mundo das mercadorias mesmo quando aparentemente está fora do processo do trabalho. Descansado em frente à TV, dizia ele, o telespectador está ainda enredado na ideologia do consumo e sua mente segue bombardeada por produtos e ideias que respaldam como o melhor dos mundos, o mundo capitalista. Poucos escapam dessa máquina ideológica.
Hoje, a dominação é tanta, que a própria pessoa torna-se mercadoria, uma vez que os dados sobre ela, que ela mesmo autoriza que sejam copiados, viram ouro nas mãos das empresas de comunicação. Esses dados são vendidos milhares de vezes, para milhares de outras empresas, que bombardeiam o internauta com a propaganda de seus produtos. E servem ainda para desenhar o perfil ideológico de cada pessoa, fazendo com que mensagens específicas sejam direcionadas a elas reforçando assim sua maneira de pensar. É uma estrutura gigantesca de dominação que apesar de ter poucos donos, têm milhares de sistema robôs fazendo o trabalho de bombardeio. Esse sistema conseguiu ser mais terrível que o da ficção de Bradbury, visto que são as próprias vítimas que o autorizam, alegremente, acreditando estarem vivendo numa democracia plena.
Há bem pouco tempo o Brasil sentiu bem forte esse processo de formatação da opinião pública durante a eleição para presidente em 2018. Um candidato, usando apenas as redes sociais, conseguiu manufaturar a ideia de que ele era a melhor opção para o Brasil. E, contratando uma grande empresa de distribuição de informação através de robôs, chegou aos celulares da maioria da população, com mensagens específicas que apenas reforçavam de maneira radical os preconceitos e ideias já existentes nas pessoas, tais como o ódio aos negros, aos pobres, aos petistas, aos gays.
Perpassando a linha do tempo e observando o poder dos meios de comunicação, o que se pode depreender é que esses meios foram ficando cada vez mais totalitários e manipuladores. Ao passarem a ideia de que tudo está exposto, alardeiam que a democracia está no seu ponto máximo. Mas, não é o que a realidade mostra. Aquilo que expõem está eivando de ideologia e apenas reforça o que o status quo quer que seja visto como verdade. O fato de qualquer pessoa poder ser um produtor de conteúdo não implica democracia se essa pessoa estiver produzindo um conteúdo mentiroso, enganador ou apenas baseado em opinião. Ainda mais que as opiniões pessoais estão sendo, a cada dia, reforçadas por mensagens igualmente enganadoras. É como se a pessoa vivesse num looping interminável. E, nesse círculo vicioso, o sistema dominante vai se fortalecendo, tornando cada vez mais distante o pensamento crítico.
A ideia de uma cidadania digital, na qual a pessoa, conectada, pode atuar politicamente com sua opinião e com seus argumentos, não encontra correspondência no que denominamos democracia participativa. Porque o cidadão digital não está no coletivo, não debate o tema, não ouve outras opiniões, não aprofunda os conhecimentos. Ele está sozinho com seu celular e totalitariamente expõe sua opinião que nasce unicamente dele mesmo, sem contato com outras pessoas na sua diversidade. «Acredito porque acredito”. É um ato de fé, como nos tristes tempos do obscurantismo quando os padres impediam a democratização dos livros e a tradução da bíblia para que os fiéis não soubessem que Jesus era amor e não um monstro que queimava pessoas.
Nos tempos que vigem, a comunicação, mais uma vez, aparece como um poder, e é. Mas ela não pode ser vista só na sua singularidade. Sem conexão com o modo capitalista de produção qualquer análise fica capenga. Porque a comunicação dos nossos dias obedece a uma razão do sistema. Ela se mostra “livre” justamente para aprisionar. É tão ilusória quanto foi o rádio ou a TV nos seus tempos dourados. A internet é igualmente uma usina ideológica, e das mais poderosas, justamente porque se apresenta como interativa e acessível para todos. Nessa frase se esconde também outra mentira. Ela só é acessível a quem pode pagar os pacotes de acesso, o que torna essa “cidadania” digital ainda mais falsa. Um ex-ministro de Administração e Reforma de Estados do Brasil, chamado Bresser Pereira, nos seus tempos de governo, cunhou uma expressão que bem revela esse novo cidadão que temos atualmente. Na época ele pregava que o Brasil deveria ter um novo tipo de cidadão, o cidadão-cliente, ou seja, aquele capaz de abrir mão dos direitos como saúde, educação, segurança, para então pagar por isso.
Naqueles dias do governo de Fernando Henrique Cardoso, anos 1990, a tal reforma do estado que criaria o cidadão-cliente era a de privatização total. E naquele mundo pintado como o melhor já visto no país, só seria cidadão aquele que pudesse pagar. A ideia não deu certo porque eles esqueceram de combinar com o povo, que se organizou e barrou muitas das privatizações, inclusive a da universidade pública.
Mas, hoje, temos essa prática do cidadão-cliente em nível mundial. E isso se expressa também na comunicação. Os famosos senhores e senhoras ninguém, que vomitam suas mentiras e preconceitos pelas redes sociais só o fazem enquanto pagam. Se atrasarem a conta da operadora, sua voz é calada. Isso não é democracia.
Não bastasse isso, as empresas que controlam o fluxo da informação, por terem acesso ao mais profundo de cada pessoa, sabem muito bem quem são aqueles que usam as redes para disseminar a verdade ou a crítica. E esses têm suas postagens apagadas sem apelação. Não há para quem reclamar. A rede é um poço sem fundo, um monstro sem rosto. Quem produz informação veraz já está bastante acostumado a mensagem: “Essa postagem viola as regras da comunidade”, que aparece em segundos depois da postagem. A democracia digital é controlada por robôs, que ao detectarem alguma palavra chave ou alguma imagem catalogada como imprópria, eliminam a mensagem imediatamente.
A saída para esse tipo de totalitarismo, aceito voluntariamente em nível mundial, pode ser a boa e velha fórmula da comunicação presencial. O olho-no-olho, a possibilidade da conversa, do debate, da argumentação. Um trabalho hercúleo, de base, que precisa ser sistemático e contínuo e que exige muito dos lutadores sociais.
É fato que há uma variedade muito grande de meios alternativos, independentes, comunitários que buscam fazer o contraponto à informação massificada. É louvável e necessário. Mas, absolutamente ineficaz. O poder dos grandes meios é infinitamente superior. É como estar na guerra com arma de rolha enquanto o inimigo tem arma nuclear. Esse tipo de comunicação é unicamente resistência. Como o menino segurando com o dedo, o furo da barragem. As páginas web dos movimentos sociais estão hospedadas em servidores que as tiram do ar a hora que quiserem. E também precisam pagar para estarem na rede. Sem grana, sem direitos. O uso do facebook vai até onde a mensagem não ferir as “regras da comunidade” e o whatsapp funciona como um bom instrumento de espionagem. Ou seja. Estando dentro da rede, estamos sob seu domínio. Nenhum direito nos cabe.
Há iniciativas de programas e aplicativos que buscam fugir do domínio das grandes empresas transnacionais que dominam o fluxo, mas como as do sistema são mais acessíveis e aparentemente “gratuitas”, as alternativas ficam isoladas no gueto. Só usam essas tecnologias ou apps aqueles que já estão convertidos e aí não conseguimos tocar a grande massa humana que navega sob o controle dos meios massivos. É um desafio brutal. E, ainda assim, também esses estão prisioneiras dos pacotes das teles. Sem pagamento, sem rede.
O resumo de toda a ópera é que não há transparência e muito menos democracia. O que existe é um sistema que se protege e cria todos os mecanismos para o que um jovem pensador, Etienne La Boétie, em 1552 , cunhou como “servidão voluntária”. Quando as pessoas aceitam a servidão em troca de pequenas migalhas que caem da mesa dos poderosos. Na atualidade, o que faz o papel das migalhas é a ilusão de que com um celular na mão se tem o poder de espalhar nossas verdades. Mas, não são as nossas verdades, são as construções do sistema que se colam em nós e que, desprovidos do pensamento crítico, não conseguimos desvelar, aceitando-as como nossas. Isso não significa que as pessoas são peças manipuladas pelo sistema o tempo todo e que não podem fugir disso. Pelo contrário. É o que La Boétie mostra no seu rico trabalho sobre a servidão voluntária. É quando a pessoa sabe, mas aceita, acreditando estar levando alguma vantagem.
A outra possibilidade, que é a de construção de uma verdadeira democracia participativa, só possível no socialismo e no comunismo, é a tarefa mais pesada. Porque ela necessita trabalho duro, exige sacrifícios, comprometimento, expõe ao risco. Assim que é mais fácil fazer a crítica morna, tentar encontrar brechas no sistema ou ficar apenas na resistência. Isso também é uma espécie de servidão voluntária, porque propõem que o sistema pode ser humanizado ou democratizado. Não pode. O sistema capitalista de produção, como já mostrou István Mészáros é insaciável e tem seus hábitos alimentares. Assim que pode aparecer bem vestido, com um sorriso no rosto, cheio de presentinhos. Mas, na hora de comer, vai comer a comida que pede a sua natureza. E é a vida dos trabalhadores.
Cada tempo histórico tem seus meios de comunicação de massa e cada modo de produção defende a si mesmo com os meios que tem. Nosso papel é destruir o capitalismo, mudar o modo de produção e constituir uma comunicação verdadeiramente democrática, amparada no conhecimento e na veracidade. Não há outra saída. Todo o resto é permanecer na servidão.