É de madrugada. Velo o sono do pai que respira, sereno. No ouvido, o fone, com as canções do Luiz Marenco alcançando o atavismo que mora em mim. O Rio Grande que vive na lembrança. Lá fora, os cachorros se movimentam a cada tanto, latindo, perseguindo algum fantasma. Um dos gatos repousa no meu pé, os demais andam a fazer estripulias pela noite afora. O vento sul assobia na janela me lembrando que a mãe dos ventos está por ali a varrer o desalento. Mas, ele não vai embora de todo. Fica a cutucar a alma, que estremece. As retinas ainda elaboram as imagens dos telejornais, de um país devastado. Não há só um monstro ali, ocupando o cargo maior. Não! Há milhares, milhões. Gente capaz de entrar numa UTI para ver se tem doente de Covid. Gente que persegue enfermeiros. Gente que incensa políticas de morte e baba de prazer. Uma gente que sempre esteve aí, do nosso lado, num silêncio expectante. Esperando a hora de colocar as unhas para fora, os dentes afiados, e oferecer o banquete do terror. Essas pessoas têm nomes conhecidos e rostos até ontem queridos. Há um maremoto em mim, o corpo inteiro se revolve. O gato aconchega. O cachorro arranha a porta. Abro e deixo que mais um bicho se enrosque em mim. Os bichos me olham com olhos de bem-querença. Uma bem-querença que não cobra. Eles me restabelecem a ternura. Suspiro. O pai levanta a cabeça. Quer mijar. Tiro o fone e vou com ele, guiando pelo universo da demência. Como sempre, não acerta o vaso e esparrama o xixi pelo banheiro. Olha pra mim, confiante, e volta para a cama, onde novamente se deita e segue com o sono dos justos. Seco seu chinelo, ajeito as cobertas, e vou limpar o chão. Volto pra cama, o gato espreguiça, o cachorro vai tomando o espaço e eu permaneço com os olhos arregalados, buscando encontrar algum sentido nessa hora noa. Não há. Pego o celular, entro na netflix, nenhuma série mais me toma. Tudo parece demasiado. Há um maremoto em mim. Do outro lado da casa dorme o meu amor, sem mim. E sinto falta de seu abraço. O cachorro me fita, os olhos mansos, como a dizer: não temas, estou aqui. Faço-lhe um carinho. Agradeço. Ligo a TV, o controle passando sem se deter em nada. Há um maremoto em mim. Um medo. Não de morrer de Covid ou de qualquer outra coisa. Um medo de perder o riso, a leveza, a ternura. Há um assombro, em cada passada de notícia do facebook que manejo automaticamente, tentando achar algum nicho de beleza. Não há. A noite avança, célere, e eu penso nas pessoas que amo e que talvez estejam também nessa aflição. O coração acelera. Mas, não há lágrimas. Só esse estupor. Leio algumas mensagens do uatizapi e, de novo, me encolho, tentando encontrar um caminho para dentro, porque aqui fora tá escuro e passeiam os fantasmas. O pai levanta mais umas quatro vezes na madrugada. O mesmo ritual. O mijo, o olhar manso, o chão molhado, o pano encharcado, o chinelo seco. Quando a barra do dia se avizinha, eu adormeço. Restarão algumas horas e a vida recomeçará no dia da marmota, no feitiço do tempo que parece não ter fim.
Elaine Tavares. Jornalista. Humana, demasiado humana. Filha de Abya Yala, domadora de palavras, construtora de mundos, irmã do vento, da lua, do sol, das flores. Educadora, aprendiz, maga. Esperando o dia em que o condor e a águia voarão juntos,inaugurando o esperado pachakuti. Contato: eteia@gmx.net / tel: (48) 99078877
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Este é o pressuposto teórico básico do jornalismo praticado pela autora deste blog. Seguindo a senda da Filosofia de Libertação, que busca olhar o mundo a partir do olhar da comunidade das vítimas do sistema capitalista, o jornalismo de libertação se compromete em narrar a vida que vive nas estradas secundárias, nas vias marginais. O jornalismo de libertação não é neutro nem imparcial. Ele se compromete com o outro oprimido e trata de, na singularidade do fato, chegar ao universal, oferecendo ao leitor toda a atmosfera que envolve o assunto tratado. (Jornalismo nas Margens. Elaine Tavares. 2004)
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