quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O martírio de Julian Assange


Não causa surpresa que o julgamento que definirá a extradição ou não de Julian Assange para os Estados Unidos esteja passando em brancas nuvens na imprensa comercial. Afinal, Assange é um pária, ele fez o que nenhum desses órgãos de imprensa é capaz de fazer: trabalhar com a verdade dos fatos. Jornalista raiz, como há tempos não se vê. Logo, é natural que se silencie sobre essa presença inoportuna no mundo moderno, no qual a mentira é elemento básico.  

Craig Murray, ativista britânico pelos direitos humanos que está acompanhando o caso em Londres, é um dos poucos que tem repassado informações sobre o que acontece dentro do tribunal, já que os jornalistas parecem se importar muito pouco com o destino de Assange. Ele conta que acompanhando os depoimentos dos médicos que cuidam de Julian na prisão fica bastante claro que as autoridades mentem quanto as condições de saúde do prisioneiro. Tão logo foi tirado da embaixada do Equador, o criador do WikiLeaks foi enviado para a “área médica” da prisão, embora tenha sido confinado em uma solitária. Nessas condições, por três meses, a sua saúde foi se deteriorando e os próprios médicos que deram depoimento foram obrigados a reconhecer que Julian só melhorou um pouco quando deixou a tal “área de cuidados de saúde”. Também foi revelado que Julian e a médica que lhe foi destinada, a dra. Daly, não conseguem manter uma boa relação, o que faz com que o prisioneiro não tenha as condições para narrar seus sintomas.  

Murray também conta que outros médicos que se ocuparam de Assange revelaram as várias tentativas dele em cometer suicídio, chegando inclusive a esconder uma lâmina de barbear nas dobras da cueca que, felizmente, foi encontrada. A polêmica se dá porque a médica responsável pelo prisioneiro jamais registrou nos prontuários essas tentativas. E por quê? Certamente para esconder o verdadeiro estado de saúde de Julian.  

Outros depoimentos médicos buscaram minimizar os diagnósticos de problemas mentais do prisioneiro, alegando que ele só estaria na ala médica para sua própria proteção e não porque ele apresentasse qualquer distúrbio digno de nota. Por outro lado, a defesa de Julian apresentou documentos que comprovaram não apenas as tentativas de suicídio como também as impressões de outros médicos quando da chegada do prisioneiro à prisão, que atestavam ele estar visivelmente abatido e perturbado e que uma junta havia chegado à conclusão de que ele tinha impulsos suicidas. Ainda assim, a dra. Daly não registrou no prontuário nada que levasse a crer que Julian tivesse problemas de saúde. Por quê? Para Murray, há cristalinas evidências de que Julian foi mantido em isolamento como uma punição, e que isso alterou bastante o seu estado de saúde, embora nada tenha sido registrado, com a provável intenção de não dar qualquer motivo para um possível relaxamento da prisão ou coisa assim.  

A verdade sobre todas as torturas físicas e psicológicas a que Julian Assange vem sendo submetido na prisão em Londres vai surgindo assim, a conta-gotas, em pequenos lapsos que surgem nos depoimentos. Um martírio que dura anos, simplesmente porque ele decidiu contar ao mundo a verdade sobre os crimes de guerra dos Estados Unidos e sobre os podres que vivem debaixo dos tapetes dos poderosos do mundo. Assange está pagando um preço alto por essa decisão. É incrível que mesmo sem pesar sobre ele mais nenhuma acusação - aquela de que ele teria estuprado uma jovem já foi derrubada – a dita justiça o mantenha preso, sob tortura. Por quê? Essa é uma pergunta que precisa ser repetida e repetida.  

O escandaloso caso  Assange é a prova cabal de que a justiça tem classe e dono. Nesses tempos em que as mentiras são o prato principal da imprensa e das redes sociais, dizer a verdade sobre os poderosos é crime.  

Tudo o que se espera é que Julian Assange consiga resistir e que a roda do tempo gire mostrando a farsa e os verdadeiros criminosos. 

A verdade prevalecerá. Força, Julian. Fique vivo.  

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O medo de faltar


Um dos medos mais tenebrosos que temos, os cuidadores, é o de ficar doente. Afinal, se a gente cai, o que será do nosso velhinho? As pessoas que tem demência precisam fundamentalmente de rotina. As coisas sendo feitas do mesmo jeito, na mesma hora, o mesmo tom de voz. E se a gente falta, o mundo se transforma. Daí esse pavor. Mas, como tudo sempre pode ficar pior, a doença vem e o cuidador precisa fazer de conta que não está passando nada, o que, por outro lado, só piora a doença em si. Pode ser uma gripe, uma febre, uma tontura, um aperto no coração. Seja o que for, é preciso seguir levantando a mesma hora, fazendo as mesmas coisas e prestando a mesma atenção no cotidiano. A parada é bem dura. Ainda mais que o velhinho, mesmo dentro de sua demência, consegue identificar que algo não vai bem. 

Nos dias em que fico ruim, fazendo esforço para não demonstrar, o pai, intuitivamente sabe que algo está passando. Então ele acorda mais cedo, ele me segue por todo lugar ou fica parado me olhando fixo, como a indagar se está tudo bem.  O esforço de fingir acaba piorando tudo. O estresse aumenta e um desespero surdo toma conta da gente. O mundo balança. Esses são dias em que realmente eu desabo. Já li que as estatísticas de cuidadores morrendo antes da pessoa cuidada são bem altas. É quando vem o medo de sair de cena e deixar o meu velho sozinho. São vários sentimentos amalgamados que levam nosso emocional ao último nível do suportável.  

Quando é assim me agarro na música. Faço uma lista das minhas preferidas e coloco pra rodar, o som bem alto. Se a situação permite, eu danço. Aí o pai se acalma, como se ao me ver cantando registrasse que tudo está bem. E então eu vou seguindo sendo aquele fingidor de que falou Pessoa, fingindo tão completamente que as vezes pensa que é força a força que de fato tem. Ainda assim, o medo de faltar segue assaltando, tornando a jornada bem mais pesada.  

São dias tristes.