sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Rogério Vive


Pouco tempo antes de encantar o Rogério Ferrari esteve conosco. Como sempre acontecia quando vinha à Florianópolis veio passar um tempo no nosso alpendre, e, entre um pito e uma gelada, íamos falando sobre a fotografia, o jornalismo, os povos indígenas, a política nacional, as guerras, Julian Assange, e tantas coisas mais. Ele falava macio e pensava devagar, por vezes com o olhar perdido em alguma lembrança ou em algum futuro ainda não escrito na luz, mas que já vivia nele. 

Rogério era um ser em resistência, como homem e como profissional. Estava sempre em batalha. Para sobreviver, para editar um livro, para empreender uma viagem. Ele poderia ter escolhido qualquer caminho, mas optou por acompanhar com suas retinas os povos que lutam por liberdade e autodeterminação. Existências em resistência, como ele dizia. E isso implicava em percorrer grandes distâncias para ficar face-a-face com quem escolheu comungar. Fotografava como vivia, com paixão e delicadeza. Com direção política. Sua mirada estava sempre comprometida com a comunidade das vítimas do capital. Palestinos, curdos, ciganos, zapatistas, sahaarauí, sem-terra, mapuche, guarani, povos indígenas da Bahia. Onde tinha luta, ele estava. Era um mambembe, um caminhante. Ele e sua máquina, sua objetiva, seu objetivo. Viajava pelos cantões do mundo sem apoio oficial, sem grandes marcas.  Arriscava-se. Tinha medo sim, mas tinha mais coragem. Queria um mundo bonito para os que então batalhavam por liberdade, para ele, para seu filho, para seus amores. E não hesitava em percorrer as trilhas mais desafiadoras. Encharcava-se de pessoas em luta, emaranhava-se nas suas vidas e registrava suas dores, seus sorrisos, suas esperanças, o trabalho, a festa.

Rogério nasceu numa cidade do interior da Bahia, Ipiaú, e lá conseguiu ter uma infância de liberdade numa vida bem típica do interior, de relações diretas e afetuosas. Dizia ele que foi o que garantiu sua formação humanista e generosa. Começou a fotografar lá pelos 18 anos com a simples intenção de compartilhar o que o seu olhar percebia. Daí para o fotojornalismo foi um pulo, o que deu a ele também a possibilidade de sobreviver com isso, fazendo reportagens que pudessem falar a realidade mesmo. Mas, logo viu que os espaços da mídia não eram o seu lugar. Ele precisava de profundidade, pois já tomara posição diante da vida. A fotografia tinha de tocar nas realidades dos que resistem. E foi assim que começou a caminhar por essas veredas do mundo dos perdidos, construindo uma obra que tanto é fotográfica quanto política. 

Ele foi embora cedo demais. E nem avisou. A última imagem que temos dele é do seu corpo magrinho cruzando nosso portão, um sorriso e um aceno de mão. Já estava doente, mas não disse nada. Havia tantas outras coisas para compartilhar. Havia tantas pautas a construir, tantos caminhos a trilhar, tantas críticas a fazer. Ele já era um mestre e sabia dar a direção. E era assim mesmo que ele sentava à nossa mesa. Como um mestre, dando lições sem parecer. E isso é tão verdade que, mesmo agora, quando ele já não está mais, segue sendo caminho. Sua obra fotográfica e teórica segue viva, inspirando outras pessoas que navegam por esses mares revoltos. Rogério é exemplo, é estrada, é pura vida. 

Agora mesmo podemos vê-lo com seu sorriso torto, algo assustado com tanta atenção, escondidinho num canto da sala e com o coração bem aquecido. Porque sabe que aqui, nesta ilha perdida no mar, tem gente que o ama. E sabe também que nas veredas por onde passou deixou o rastro da beleza, que nunca vai se apagar.

Obrigada por tanto, Rogério, amigo! Estás aqui e estamos juntos!  

Elaine Tavares

Rubens Lopes

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