terça-feira, 31 de maio de 2022

O transporte de Florianópolis é sofrimento mental


A espera adoece e o wi-fi não funciona

A cena se repete todos os dias. O ônibus sai do terminal Rio Tavares em direção ao Morro das Pedras. Aquele silêncio feito de medo da pandemia, desolação e desesperança pela vida mesma. Os rostos são cansados, os olhos perdidos. Nas paradas mais movimentadas, o ônibus demora. Muitos pagam com dinheiro e não tem mais cobrador. O motorista precisa buscar moedas, se atrapalha, demora. As pessoas suspiram. No meio do trajeto, surge uma cadeirante. O motorista para, deixa o ônibus no ponto-morto, desce e vai baixar o elevador. O elevador emperra. Ele bufa, fica vermelho, força o mecanismo e nada. Dentro do ônibus as pessoas se movem, incomodadas. O motorista luta com o elevador até que consegue fazê-lo baixar. Ajuda a cadeirante a subir, coloca o cinto e volta para baixar o elevador. Ele emperra de novo. O senhorzinho bufa, provavelmente xingando por dentro. Não olha pra ninguém. Consegue. Volta para o banco de motorista e arranca. 

Assim vai o busão, que já leva um tempo absurdo para rodar o bairro, cada vez mais demorado. Enquanto isso, o homem que vai na direção segue o trajeto, três vezes mais explorado que antes. Dirige, cobra, ajuda os cadeirantes, as velhinhas e as crianças. É muita responsa para uma pessoa só. É demais. Provavelmente quando terminam as suas seis horas de trabalho, ele está em escombros. 

Dentro do ônibus também os passageiros estão no limite, tendo de enfrentar cotidianamente um transporte desintegrado que massacra e adoece. Fosse uma linha direta, vir do centro para o Morro das Pedras não passaria de 25 minutos. Mas, no sistema desintegrado, a pessoa demora uma hora e meia, quando tudo corre bem. A espera no terminal Rio Tavares pode chegar a 40 minutos se a criatura chegar no minuto seguinte da partida do Morros das Pedras. E nem adianta tentar um caminho alternativo com o Costa de Dentro, Costa de Baixo ou Tapera. Por obra de algum imbecil que cuida dos horários, todos eles saem quase na mesma hora. A integração é coisa mais desintegrada que conheço. E o mesmo acontece quando a gente vai para o trabalho. É certamente um dos infernos de Dante. Então, o trabalhador, que já vive todo seu processo de exploração no emprego ou no trabalho, acaba geralmente se voltando contra os motoristas e até mesmo contra a cadeirante que “atrasa” ainda mais a viagem. É uma luta de trabalhador contra trabalhador, todos os dias. Quem vive esse inferno sabe, vê, os olhos de ódio, mágoa, desespero. 

Infelizmente todo esse ódio não se volta contra os donos das empresas que agora conseguem ainda mais lucro sem os cobradores. Nem contra a prefeitura que simplesmente lava as mãos diante do sofrimento das gentes. O que acontece é uma aceitação exasperante, uma acomodação diante do que consideram imutável, e consequentemente os efeitos aparecem em forma de doença, mau-humor, estresse e depressão. 

O transporte coletivo é uma fonte segura de sofrimento mental. Uma tortura institucionalizada. Todos os dias massacrando as almas e os corpos. A mera visão do terminal de integração provoca tremores, secura na boca, dor de estômago, vontade de morrer. Duvido que alguém viva esse cotidiano sem acessar esse nível de sofrimento. Usuários ou trabalhadores do transporte são expostos todos os dias a esse horror. Portanto, mais do que uma questão de transporte, a coisa já vira caso de saúde pública. Mas, quem se importa?

Desconheço algum governante desta cidade que tenha realmente se preocupado com o transporte público. Desconheço. Sei que a ideia da integração apareceu no governo da Frente Popular, mas como não houve continuidade quem pegou o bonde foi a Angela Amin, e deu no que deu. Quando é tempo de campanha os candidatos andam de ônibus, fazem filminhos e promessas. Quem não lembra do Dário Berger, O César Souza Jr e o Gean fazendo essa cena? Cada mudança que fazem no sistema piora tudo. Nunca consegui ver uma mudança que tivesse vindo para melhorar a vida do usuário. Só a dos donos das empresas. Aí sim. 

Continuo pensando que a cidade é muito pequena para esse sistema da integração. As linhas para os bairros deveriam ser diretas desde o Centro. Os terminais de integração seriam espaços de linhas alternativas, bairro/bairro. Mas jamais deveriam cortar a possibilidade do bairro/centro. É desumano o que acontece. O tanto de vida roubada nas esperas nos terminais. Isso tem de acabar. Mas, para que isso aconteça há que terminar também a apatia e a aceitação dessa tortura nossa de cada dia.

Como? Não sei.. .mas sigo acendendo meus palitos.. uma hora pega fogo... 



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