Tragédia na Somália: uma a mais no doloroso processo de libertação
O mundo ocidental se move por uma premissa que vem da
cultura grega: o ser é, o não-ser não é. E o que significa essa frase tão
enigmática? Que só é reconhecido como ser aquele que é igual. O outro, esse não
existe. Não-é. Não tem importância. Sendo assim o que é para o mundo ocidental
europeu/estadunidense? Aquele que é igual a eles: branco, rico, capitalista,
guardião da ordem e da moral. Tudo o que sai desse script não-é. E, não sendo
pode ser destruído sem dó. Sobre a morte desse outro que não-é, não se fala,
porque não importa.
É por isso que o massacre perpetrado pelos Estados Unidos nos
países do Oriente Médio não tem a menor importância para o mundo ocidental.
Todos os dias, os “mariners e seals” matam 20, 30, 40 iraquianos na sua já eterna
campanha contra o “mal”. E as pessoas seguem vivendo sem se importar. O
picoteamento do continente africano em inúmeros países, criados pelos
interesses dos povos europeus, sem que fossem levadas em consideração as
histórias e tradições dos povos do lugar é outro exemplo. Todos os dias morrem
milhares por conta da ocupação colonial e sua herança. Poucos se importam.
Nessa semana, na capital da Somália, Mogadíscio, dois
caminhões bomba explodiram causando um massacre, matando cerca de 300 pessoas e
ferindo outras tantas. Foi o pior ataque nos últimos anos, em um país que foi
completamente destruído por conta dos interesses dos Estados Unidos. Guerras
internas, fomentadas na disputa socialismo
x capitalismo destruíram o país no início dos anos 1990, depois de um
golpe contra o presidente Siad Barré, alinhado ao socialismo. Desde então,
grupos locais se revezam no poder.
E como sempre acontece, por conta dos conflitos internos, e
sendo a região estratégica para a navegação, com grandes reservas de minério de
ferro, estanho, gipsita (gesso natural), bauxita, urânio, cobre e sal, além da suspeita
da existência de reservas de petróleo e gás, o governo dos Estados Unidos decidiu
ir para lá, “promover a paz” com seus soldados. Desde então vem promovendo ações
para garantir o controle da área. De certa forma, como nos países do Oriente
Médio, acaba por incentivar cada vez mais o aparecimento de grupos radicais. Agora,
no último mês de março, o presidente Trump autorizou a intensificação dos
ataques aos grupos em luta, que eles chamam de “terroristas”, e foi isso que
acabou provocando o ataque.
Mas, a Somália é um lugar onde vivem não-seres, gente pobre,
negra, muçulmana, que, por um azar do destino, nasceu num ponto estratégico
para os “donos do mundo”. Fica numa
região chamada de “corno da África”, ponto mais oriental do continente
africano. Então, a morte de centenas e centenas de somalis aparece como apenas
uma estatística, exatamente como a dos iraquianos, os afegãos, os paquistaneses,
etc...
Então, não adianta clamar nas redes sociais para que coloquem
a bandeira da Somália no facebook. Isso não muda em nada o drama que se
desenrola naquele despedaçado país. O melhor a se fazer é tentar sair da
armadilha filosófica que acaba dominando a realidade na qual o que não é igual
é passível de destruição, sem que se sinta remorso ou empatia. E isso é uma
pedagogia que está na tele da TV todos os dias, em programas como A Fazenda,
Big Brother, e outros afins. Lá, as pessoas que não se encaixam no perfil do
público são “eliminadas”, em rede nacional, no grande coliseu eletrônico. E é
assim que todos vão aprendendo a eliminar os não-seres, consolidando essa forma de pensar.
Enrique Dussel, filósofo argentino, construiu outro modelo
de pensamento que ele chama de filosofia da libertação. Nele, o pressuposto
grego muda radicalmente. Se para o mundo ocidental/burguês o ser é, e o não-ser
não-é, para a proposta de libertação, o ser é e o não ser é real. Isso muda
tudo. Aquele que é diferente existe, tem nome e sobrenome, precisa da nossa
empatia. E é essa atitude que permite que possamos sentir na pele, como dizia
el Che, a dor do outro, caído e oprimido. Só assim poderemos caminhar para um
mundo de bem viver.
Há um episódio, da famosa série televisiva Black Mirror, que
mostra a lógica grega/ocidental na sua forma mais terrível. Nele, soldados
estadunidenses aparecem sendo treinados, com manipulação psicológica e física,
para ver os inimigos como baratas. Eles então são mandados à guerra e matam sem
dó nem piedade tudo o que encontram pela frente. Eles não enxergam pessoas,
enxergam baratas gigantes, monstros. Por isso não se apiedam. Essa lavagem
cerebral é a que vivemos todos nós. Ao ver um negro, um árabe, um pobre, um
gay, um travesti ou qualquer outro ser que não-seja igual ao que temos por “normal”,
o que vemos são baratas gigantes, que podem ser amassadas sem que vertamos uma
lágrima.
Pessoas há que estão fora da bolha. Que conseguem ver os
homens, as mulheres, as crianças, de olhos graúdos e sorriso largo, querendo
viver. Esses se importam. Mas, ainda assim, não basta clamar no facebook. É
necessário o trabalho político sistemático e organizado para mudar a filosofia
e ordem das coisas. Ação concreta na vida, bem aqui, na vida cotidiana, no
sindicato, no partido político, no movimento social. Porque se mudamos a forma
de pensar e fazemos esse pensamento avançar, a vida dos iraquianos, afegãos,
palestinos e somalis também pode mudar.
A tarefa é essa, entender que o não-ser é real, que o
opressor é real, que o sistema que nos aniquila é real e sobre isso temos de
atuar. Acolhendo o diferente, o caído, o real, e encontrando caminhos para
mudar esse modo de organizar a vida, que transforma humanos em coisas para o
enriquecimento de uns poucos. Entender que vivemos uma guerra de classes e que
a primeira batalha a vencer é justamente a filosófica, embora ela pareça a mais
distante.
Seguiremos denunciando as atrocidades cometidas pelo mundo
afora pelos “senhores da guerra”, liderados pelos Estados Unidos ou fomentados
por eles. Mas, só denunciar não é suficiente, visto que para um grande número
de pessoas, “essa gente longínqua” não interessa para nada. E a melhor maneira
de ver o outro, diferente, é provocar o conhecimento sobre ele. Os negros somalis
que alucinadamente atacam navios no chifre da África, como nos aparecem nos
filmes de roliúde (pura ideologia), estão vivendo a fome, a guerra, a miséria,
desde os anos 90. Estão fazendo o que podem para sobreviver, enfrentando o
maior exército do mundo. Não são loucos, não são baratas e se estão “terroristas”
há que se perguntar: por quê?
Entender o mundo, entender as relações sociais, colocar-se
no lugar do outro e lutar efetivamente contra o sistema que oprime e destrói. Esse
é o caminho para a mudança.
Um comentário:
Mais um texto desses que nos deixa nus com a nossa verdade. Brilhante!
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