terça-feira, 24 de março de 2015

Minha cidade...Meiembipe!























Fotos: rubens lopes
Sou uma mulher de amores fortes. Passional. O drama é que tudo para mim é passível de amor. Principalmente as cidades. Como sempre digo aos amigos, sou do lugar onde estou. E quando estou, estou entregue. Foi assim em São Borja, onde vivi minha infância. Deixava-me ficar na Praça da Lagoa, olhando os cágados, e atrasava para a escola. Era puro encantamento. E me sentia arrebatada com a catedral, em estilo moderno, brilhando na noite. Estar ali era caminhar na beleza. Também foi assim em Uruguaiana, Caxias do Sul, Bauru, Marília, Pirapora, Belo Horizonte, Arinos, Passo Fundo. Em cada um desses lugares onde vivi encontrava espaços de amor. Cada pequeno detalhe de uma praça, uma esquina, um traço cultural, ia avolumando ternuras na alma.
Foi assim com Florianópolis aonde cheguei em 1987, apenas para fazer a faculdade. O plano era ficar quatro anos, nada mais. Mas, nada do planejado vingou. Naquele mesmo ano conheci o trabalho do Caprom (Centro de Apoio e Promoção do Migrante), dirigido por Vilson Groh e Ivone Perassa. Eles ajudavam as pessoas que vinham, aos borbotões, do interior do estado, em busca de vida melhor na capital. Foi o tempo das grandes ocupações urbanas, quando se formaram a Chico Mendes, a Vila Aparecida e tantas outras comunidades, hoje consolidadas. As vi nascer, assim, nas madrugadas, com as gentes chegando com suas tralhas e sonhos. E a Florianópolis que se colou nas minhas retinas foi essa, popular, migrante, negra, cabocla, mestiça, lutadora.
Desde aí, cada cantinho dessa cidade foi se enchendo de sentido. Nunca foi uma ilha de magia, sempre esteve revestida de realidade, a dura realidade de quem batalha para ter seu canto, sua comida, seus direitos. Essa é a minha cidade, espaço que aprendi a amar, com seu vento suli, o boi-de-mamão, a pinga do sertão do peri, a Lagoinha, a tainha com limão, os engenhos, as ruas estreitas do Ribeirão, o mar grosso do Campeche, esse falar manezinho. Aqui encontrei o amor, um amor doce, terno, alegre, que é meu equilíbrio. Aqui finquei as madeirinhas do meu barraco, onde vivo com gentes, cachorros, gatos, corujas, passarinhos e aranhas.
Aqui tem o meu Campeche, meu lugar, onde estendo meu coração. Na missa dos pescadores, no rancho do seu Getúlio, na beira da praia, no bar do Zeca, na Rádio Comunitária, nos caminhos de terra. Minha cidade, com seu centro histórico, a igrejinha dos pretos, a rua dos sebos, da kibelândia, do bar do Alvin, do mercado público, do bar amarelinho, da Conselheiro. Minha Florianópolis e suas lutas, sindicais, pelo transporte coletivo, pela cultura, pela vida boa. Esse espaço de gente forte, engraçada, amiga, radical.
Lá se vão 28 anos depois da chegada solitária no Rita Maria, mas cada dia descubro algo novo para amar. É como se a cidade fosse uma cornucópia de belezas, prazeres, deslumbramentos. Basta uma caminhada pela Felipe Schmidt e aparecem as formosuras, que podem ser gentes, bichos ou coisas. Meu olhar admirado não se cansa de ver, até mesmo o que não existe mais: o miramar, o velho cais do lado sul, o Zininho, a praia brava, o bar do Chico.
Ontem, pela mão do vereador Lino Peres, recebi o título de cidadã honorária, uma espécie de certidão de nascimento, um segundo nascimento, nessa bela Desterro, minha Meiembipe. Primeiro pensei em recusar, afinal, a Câmara de Vereadores é lugar onde eu só entro para fazer luta, onde imperam os interesses dos ricos, dos poderosos. Mas, depois, entendi que era um presente, dado por um bom companheiro, que, desde há anos, trava comigo essas mesmas batalhas por uma cidade que seja boa para todos. Um companheiro que também conhece e vive essa cidade outra, que não é a mesma dos que a destroem em nome do lucro e da especulação. Um parceiro de peleias que conforma a minoria da Câmara, aquela minoria incomodativa, que insiste em apontar os dramas da cidade verdadeira, da maioria das gentes. Então, com humildade e gratidão, aceitei. Assim, nesse 23 de março de 2015, quando a cidade celebrou seu aniversário, eu recebi no papel, aquilo que já era real no meu coração: a cidadania florianopolitana. Sou daqui, do lugar onde estou!
Na cerimônia, que reuniu mais de 50 homenageados e as ditas “autoridades” da cidade, não foi possível manifestar o carinho imenso que sinto por essa gente que me acolheu como a uma filha. Mas, em meio ao poder constituído, não poderia deixar passar em branco aquilo que dá sentido à minha existência: a eterna luta por um mundo bom, livre da rapina dos que insistem em lucrar sobre a dor dos outros. “Florianópolis, livre dos especuladores”, foi o que pude gritar, punho erguido, no compromisso. Meu grito de amor por um lugar onde estendo meu viver.
E por aqui sigo, fazendo o que sempre fiz. Amando, lutando, compartilhando e construindo o mundo novo, agora. Minha eterna gratidão aos amigos, que tiraram um tempo de suas vidas, para acompanhar na galeria, com a mesma fibra de sempre, esse momento meu, que é também de cada um e cada uma com quem caminho nessas estradas vicinais. Pessoas que, como eu, também conseguem ver e viver essa cidade real, sem magia, com a dura e bela realidade da luta.

  

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