sábado, 28 de dezembro de 2013

Noites em La Paz



Dona Vivi é uma mulher baixinha, pequena, de olhos apertadinhos que vive em Oruru, Bolívia, com o marido Juan. Naquela noite, em La Paz, no fevereiro de 2003, ela chegou espavorida, agarrada ao braço do velho companheiro, o rosto moreno corado de ansiedade. Tinham ido tomar um café na rodoviária e viram a confusão. Pela rua acima vinha a turba de gente quebrando e queimando tudo. Ela percebeu que algo estava errado porque conhecia bem a turbulência da vida boliviana. Mulher de mineiro e filha de cocaleiro, ela mesma já tinha passado por coisas assim sua vida inteira. Nunca fora fácil ser trabalhador na Bolívia.

Dona Vivi tentou sair em direção ao hotel, mas Juan não estava muito bem. Tinha dificuldade para andar. Fora por isso mesmo que tinham vindo para La Paz. Ele iria fazer alguns exames no Hospital Obrero. Os seguranças da rodoviária fecharam as portas de ferro, ninguém mais podia entrar ou sair. Entre os turistas que esperavam ônibus, o medo era palpável. Os gritos da gente lá fora ecoavam fortes e parecia que um imenso vagalhão iria assomar por sobre o pavilhão.

A confusão começara horas antes em frente ao Palácio Presidencial. Policiais militares, que estavam em greve há dois dias, tinham ido fazer um protesto e foram recebidos a bala pelo exército boliviano. Em poucos minutos a guerrinha particular das forças armadas gerou 13 mortos. Em frente a Praça Morillos os corpos se estendiam diante de uma multidão ainda passiva. Mas, quando o sangue escorreu pela calçada, uma espécie de frêmito tomou conta das gentes. Estudantes secundaristas que tinham ido à praça para protestar começaram a função jogando pedras nas janelas do palácio. Foi o estopim de uma revolta represada. As pessoas, em turbilhão, começaram a entrar nos prédios e a quebrar tudo. De dentro dos edifícios voavam mesas, cadeiras, computadores, papéis. Em pouco tempo o fogo irrompeu. Em volta da praça o clima era de completa balbúrdia.

Sem qualquer policiamento e com o exército alheio a tudo, protegendo apenas o palácio, a multidão foi colocando para fora todos os seus demônios. O que era um protesto político virou desaguadouro de outras mágoas. Uma grande loja de departamentos, identificada como “americana” foi completamente saqueada e destruída. A turba seguia, derrubando, queimando, saqueando, destruindo. E, assim, foi descendo em direção à rodoviária, onde estavam Vivi e Juan. Não pouparam nem as bancas das índias. Tudo era arrasado.

Aquela foi uma tarde de terror. Só no início da noite Vivi conseguiu chegar na hospedaria com seu marido Juan. No dia seguinte teriam a consulta no hospital, mas já anteviam que aquilo iria ter de esperar. Durante a noite, os hóspedes se reuniram na sala principal, todos muito assustados. Seria uma madrugada de tensão e medo. Era um hotelzinho barato e talvez por isso tenha ficado de fora da sanha dos saqueadores que assaltaram a cidade por toda a noite. Acordados, todos, ouviam os tiros, os gritos, e sentiam o cheiro da fumaça do fogo que queimava por toda La Paz.

O segundo dia foi o pior. A polícia continuava amotinada. Os saqueadores tomavam a cidade. Nas estradas, outros tantos bloqueavam ônibus e carros. Bancos queimavam, prédios do governos eram destruídos e o exército havia colocado franco atiradores pelos prédios, os quais atiravam contra a multidão que se dividia entre os que protestavam e os oportunistas que saqueavam. As centrais obreras tinham chamado uma greve geral para aquele dia e o clima era de muito pavor. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Todos esperavam um rio de sangue.

As caminhadas de sindicalistas e representantes do movimento popular aconteceram em La Paz e nas principais cidades da Bolívia. Bandeiras brancas pediam paz. Franco atiradores balearam uma médica e mataram uma enfermeira que ajudavam os feridos. A cidade entrou em comoção. Ninguém mais queira sair dos hospitais para ajudar. Foi um dia inteiro de completa confusão. Mortos e mais mortos. No meio disso tudo o governo se mantinha calado. Na televisão, os comentaristas exigiam que o presidente Sanchez de Losada resolvesse o caso da polícia para que esta voltasse às ruas, reestabelecendo a ordem.

Vivi e Juan não se assustaram com toda a violência. Durante aquela manhã haviam saído para tomar café e também saíram na hora do almoço. Não podiam ficar sem se alimentar, dissera ela. “A senhora não tem medo?” - perguntava eu. “Isso é a Bolívia, querida”, respondia, serena. No meio da tarde, enquanto pela porta do hotel passavam as gentes carregando portas, janelas, computadores e outros que tais, ela, serena, anotava receitas de comida brasileira que eu lhe passava. “Adoro cozinhar”.

No início da noite o presidente veio à TV falar com o povo. Havia concedido o aumento aos policiais e estes estariam voltando para as ruas. A Bolívia voltaria a ter paz (?), dizia. Na sala, com os companheiros de hotel, ouvi, aparvalhada, a fala de Goni, o presidente. Falava ele com sotaque inglês. “Mas como???” - perguntava eu, perplexa. Ele parece um estadunidense falando. “Ele é um deles”, diziam os homens, irritados. “Viveu a vida toda lá, representa os interesses deles”. “Mas vocês o elegeram?”... “Somos todos uns burros”, vociferou um mineiro de Cochabamba que esperava o fim dos conflitos para voltar para casa. “Somos todos uns burros”, repetia.

Fiquei mais um dia em La Paz esperando que liberassem os ônibus. Pelas ruas, as pessoas falavam do levante com aquela fleuma que é peculiar a um povo calejado nos horrores e nas rebeliões. A vida voltava ao normal. Na rodoviária, os turistas retomavam o movimento. As velhas índias ocupavam seus lugares pelas escadarias a pedir esmolas e os policiais, de volta às ruas, eram saudados com alegria. Vivi e Juan foram, enfim, ao hospital. “Vou experimentar a feijoada, filha”, despediu-se, sorrindo, a mulher de sangue índio e esperança atávica. A Bolívia ficaria para trás, manchada de sangue e fogo...como se o tempo não houvesse passado desde o passado imemorial...

Eu ainda não sabia, mas aquele era um dos tantos episódios da famosa Guerra do Gás, que colocaria para correr o presidente com sotaque de “americano”. E, desde ali, a Bolívia seguira por outros senderos. 

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