segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Educadores cegos



Nascido na beira do São Francisco não poderia ser senão poeta, barranqueiro, musical. Teve infância bonita, de carrinho de rolimã, de trilha no mato, de pegar rabeira de caminhão. Fez-se homem na aridez do cerrado, aprendendo que a vida pode ser fluida como o velho Chico, mas também dura como um caraguatá. Aprendeu, mas nunca aceitou. Sem horizontes na Santana do Alegre veio para o litoral catarinense. Na bagagem, o coração sensível e a música. Coisa pouca para a babilônia. Na pressão do social foi fazer faculdade. Queria música, mas não deu. A opção foi o quintal mais perto, a filosofia.

Mas, a universidade, às vezes, mata sonhos, enquadra almas, apequena o ser. E por isso, a filosofia foi perdendo a aura. Não havia encantamento. Educadores estão em falta. Até que ela chegou com sua fala boa, capaz de ser entendida, ligando o mundo escolástico com os dias atuais. Santo Agostinho, o medievo, a beleza de um tempo em que os homens buscavam dar cara de deus à razão. O guri se encantou outra vez. A filosofia tinha gosto de fruta madura de novo. Assim, em meio às correrias das aulas de música, do trabalho como ajudante de pedreiro e do cuidado com a casa, ele se desdobrou. Caminhar para as aulas de Filosofia II passou a ser música, mel, beleza.

Por isso não foi pequena a estupefação quando no outro dia, esperando pela prova para a qual havia dedicado suas melhores horas, ele a recebeu sem qualquer nota. Não fora sequer corrigida. E ela, a que lhe havia feito desejar de novo fazer canções para a filosofia, escurecia o dia: “não precisa vir mais, estás rodado por falta”. O guri minguou, perdeu a voz, ficou sem chão.

O coração de poeta seguiu chorando pelo ônibus afora, no caminho da aula de música. A razão perdia o fio da fé, tão bem amarrado por Agostinho. Na aula, as notas do sax não saiam doces. Havia um ruído gigante ensurdecendo a alminha. Naquela noite não brotaram as notas, nem saltitaram as claves de sol. Ele não entendia. Faltara quatro aulas, e não fora por querer. Havia que prover a existência. Naqueles dias ficara com o coração apertado, sentindo falta do bom filosofar, da obscuridade misteriosa do medievo. Mas a professora nem quisera saber. Seguia a regra dura sem mirar o outro, humano e falível, na sua frente. Não via uma pessoa, talvez um número da chamada. Educação bancária, diria Freire, desprovida de carne e humanidade.

Chegou em casa bem tarde, ainda aturdido. Não conseguia entender como alguém podia educar sem ver. Sua alma de poeta havia perdido as rimas e todo o encantamento se esvaia. Afloravam as águas nos olhos, como se por ali fosse sair o rio. Balançava a cabeça esperando encontrar uma resposta para tanto desamor. Então, foi lembrado de que havia forjado a alma na dureza do cerrado e que haveria de superar. Mas, o guri da barranca do São Francisco é bichinho teimoso. Não quer endurecer. Ele acredita que a vida precisa de amor, poesia, música, riso e ternura. E endurecer é ser vencido pela babilônia. Decidiu que haveria de se compadecer de tal pessoa que educa sem ver, que não vislumbra o encantamento que provoca, que não percebe a mágica que faz. Passou o dia seguinte a fazer um presente o qual haveria de lhe dar.

Porque esse menino que nasceu nas minas gerais é feito de doçura e beleza e nada nesse mundo vai quebrar esse fino cristal. Assim, naquela noite, enfim, dormiu em paz.


Um comentário:

Bianca Velloso disse...

Depois de ler esta história me faltam palavras... Sobram lágrimas!