Eu vivi de maneira muito próxima o início do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Eram os anos 1980 e eu trabalhava na TV Passo Fundo. Foi na cidade de Ronda Alda, na estrada do Pontão, que brotou o primeiro grande acampamento do MST: a Fazenda Anonni. Era praticamente uma cidade toda de lona preta, na qual resistiam e lutavam bravamente cerca de seis mil pessoas, 1.500 famílias. Ocupavam as terras que eram devidas à Reforma Agrária, mas que nunca tinham sido entregues aos trabalhadores.
Naqueles dias os sem-terra eram vistos como o próprio demônio. Na televisão era proibido falar deles. Foi unicamente porque a notícia era imparável que a Fazenda Anonni começou a aparecer no noticiário. O MST anunciou que seguiria para Cruz Alta, para ocupar outra fazenda e o governo autorizou o cerco ao acampamento. Era um fato grande demais para ser escondido. Imaginem cercar seis mil pessoas sob a ponta da baioneta.
Nossa equipe viveu aqueles dias de cerco, mais de um mês, reportando tudo que acontecia. Foi uma saga. Ainda assim os sem-terra seguiam sendo vistos como demônios, ladrões, bandidos, etc. Só que as pessoas não diziam isso em público. Xingavam os sem-terra no reduto do lar, nos grupos de esquina, nos bares, nas rodas da missa. A polícia agia duramente, mas a força do movimento era tanta que os sem-terra iam vencendo as batalhas. Mesmo que a maioria os considerasse bandidos, era impossível não reconhecer que as terras vazias não produziam nada e que, com eles, elas vicejavam. Assim, mesmo odiando aqueles camponeses, as pessoas se resignavam com suas vitórias, porque elas estavam dentro da lei. A lei é clara: latifúndio improdutivo é passível de desapropriação para reforma agrária. O ódio ficava confinado no seu reduto. Se era lei, era lei. E havia grandes movimentos de trabalhadores em ação para garantir isso.
Hoje não. A Constituição brasileira é papel inútil. A lei não vale nada. A legislação muda conforme a pessoa que a utiliza. Não há regras. Latifúndio improdutivo é defendido pelo estado. Camponeses sem-terra são assassinados como moscas. E os assassinos dizem: “tem que passar por cima de todos eles”. E as pessoas assentem com a cabeça. “É isso aí”. E esperam que o sangue escorra nas estradas, achando que a morte de um sem-terra é coisa justa. Até matar pessoas passou a ser legal. E o latifúndio está cada dia mais armado, e dentro da lei. Vale tudo contra os “petistas”, mesmo que as pessoas não sejam petistas, mas alinhadas a outra maneira de pensar.
Petistas, comunistas. Contra esses tudo pode. E as pessoas assistem tudo pelo celular, deixando de ver a vida dura que se expressa ao lado, nas ruas de suas cidades, no seu quintal. A dor do outro não lhes toca. Petistas, comunistas, tem mais é que se ferrar. Mas, por que? Não sabem. Não importa. Deu no grupo do uatizapi. Que morram todos. Que fiquem sem educação, sem-terra, sem casa, sem saúde, sem segurança, sem nada. Que morram.
E, com a cabeça pendendo para o celular as pessoas não percebem que elas mesmas estão no grupo de “petistas, comunistas”, porque estão empobrecidas, porque não têm saúde, nem educação, nem casa, nem segurança. Mas, não importa. Há que destruir tudo o que é “vermelho”.
Não é um ódio de classe. É um ódio cego, contra si mesmo. Um ódio insuflado pelo que o oprime, o explora. É a servidão voluntária. O beija-mão dos ricos esperando a migalha. Que não virá.
Porque para o capital não existem pessoas, histórias, dramas humanos. As relações são entre coisas. A pessoa que trabalha não existe em si, apenas sua força de trabalho. Se ela se esgota, troca. É como uma pilha. Não importa se a pessoa vai passar fome, se seus filhos vão perder a escola, a saúde. Por isso que um sem-terra atropelado e morto não importa. É só mais um CPF que foi tirado de cena. Por isso um desempregado não importa. É só um CPF tirado de cena. E, enquanto as gentes vão destruindo a si mesmas e aos seus iguais, um pequeno grupo que controla o mundo segue feliz e saltitante, aproveitando a beleza da vida.
O resto é resto. Até que se levante em rebelião. E eles se levantam. E é grande. A história ensina.
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