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Sobre o 11 de novembro e os desafios da caminhada
Foto: Rubens Lopes
Luís tem 19 anos e trabalha numa barbearia. Ele estava à porta, quando passou a caminhada dos estudantes e trabalhadores no 11 de novembro. Seus olhos tinham um misto de vontade de estar ali e assombro. Parei para conversar e perguntei se ele sabia sobre a PEC 55. Ele disse: “ouvi falar”. E a luta? “Esse pessoal só fica entre eles. Parece que não vê quem tá de fora. Olha só”, e apontou para o grupo que ia pelo meio da rua, dançando e cantando. “Era bom explicar, né? Mas, com calma, pra que a gente possa fazer pergunta, tirar todas as dúvidas”.
Luís não terminou o ensino médio. Não deu. Teve de trabalhar. Tinha o sonho de ser engenheiro, mas sorri ao lembrar. Parece impossível. Comentei que a PEC empobrece ainda mais a vida da gente, inclusive na educação. Ele deu de ombros. Sua vida já está fodida mesmo. “Deixa isso (a luta) para os riquinhos”, finalizou.
No caminho pela Mauro Ramos, a marcha passou em frente a um bar. Dois homens bebiam cerveja e olhavam a algaravia com censura. Uma mulher, já mais velha, segurava a bolsa apertada contra o peito e acompanhava, também com olhos acusadores. Sorri para ela e falei: “É a luta contra a PEC da morte”. Ela franziu a boca e balançou a cabeça, em desaprovação.
Das casas vez em quando assomava alguém à porta ou à janela e fazia sinal de positivo, ou aplaudia. Espectadores simpáticos, mas sem muita vontade de seguir o cordão. Na rua, a turma seguia entre cantorias e palavras de ordem. Parecia mesmo um rio tormentoso, seguindo sozinho, enquanto das margens, as pessoas assistiam apáticas ou admiradas.
De certa forma o garoto barbeiro tem alguma razão. Ainda que não seja coisa de “riquinhos” o primeiro ensaio da greve geral ainda não saiu do âmbito das entidades. Em alguma medida já tocou os estudantes – que estão em outro patamar – mas é certo que falta uma longa caminhada para chegar ao coração das gentes que estão fora do circuito sindical ou de movimento social organizado.
O esforço dos sindicatos para se incorporar ao protesto ainda é restrito às diretorias e lideranças. A base não acompanha. Talvez seja o resultado de mais de 15 anos de adormecimento ou domesticação. Durante os governos de Lula e Dilma, esse foi um setor que desaqueceu, seja por cooptação, seja por acreditar no projeto petista, seja por impossibilidades políticas. Os dirigentes abandonaram o trabalho de base. Claro que isso não serve para todos, mas para maioria com certeza. Bravos sindicalistas e lutadores sociais fizeram a crítica naqueles tempos estranhos, inclusive tendo dedos acusadores sobre si.
Agora, é preciso voltar aos velhos tempos de militância sistemática na base das entidades. Quase uma reconstrução. Se os trabalhadores desorganizados não se sensibilizam pelas lutas sindicais, os que estão na estrutura tampouco. Preferiram deixar nas mãos dos dirigentes a solução dos problemas. Uma missão que não deveria ter sido aceita, afinal, os governos petistas não avançaram no sentido de garantir as demandas dos trabalhadores. Preferiram a conciliação de classe. A união com a burguesia nacional, apostando num mundo melhor para todos.
Ora, não pode haver “mundo melhor para todos” no âmbito do capital. É da natureza desse modo de produção que para que um viva, outro tenha de morrer. Esse é um sistema assentado na violência de uma classe sobre a outra. É impossível compor acordos com aqueles que, na hora em que a água bate na bunda, não hesita em voltar ao reduto da classe dominante, seja porque é parte, seja porque é um servo voluntário.
Francisco Martins Rodrigues, num texto sobre os equívocos do leninismo europeu, no qual mostra que se está a 80 anos enterrando Lenin, afirma que ao longo dos tempos a ideia de socialdemocracia foi contaminando os socialistas-leninistas, fazendo com que fossem deturpando as ideias do grande pensador russo. Opções pela governabilidade, alianças espúrias em nome da unidade, afastamento da base, escolhas políticas equivocadas, tudo isso foi deixando para trás uma das máximas de Lenin: “Devemos ajudar o proletariado a elevar-se do papel passivo de motor ao papel ativo de guia, a passar de defensor subalterno de uma liberdade truncada a defensor totalmente independente de uma liberdade completa, em proveito da classe operária”.
Essa é uma tarefa que temos de recuperar. As gentes que olham perplexas as marchas e as ocupações precisam de informações bem mais musculosas, para além dos panfletos de agitação. Até aqui, ao que parece, o consenso criado pelos meios de comunicação massivos está vencendo. A televisão, repetindo à exaustão a ideia de que quem luta é baderneiro, terrorista e agitador, leva vantagem sobre nossa comunicação fragmentada e pouco formativa, perdida de totalidade. Adelmo Genro Filho já dizia: um texto precisa transitar da singularidade para o universal. As pessoas não são burras. Se houver informação de qualidade, capaz de dar conta da totalidade do problema, as ideias avançam.
A batalha da comunicação é estratégica e decisiva. Se não for dada a devida atenção, a mais-valia ideológica que é extraída dos trabalhadores a cada noite em frente à TV, seguirá cumprindo seu nefasto papel.
É preciso construir as marchas, sim. São simbólicas, são energizantes, são fundamentais. Mas, é preciso também que essas marchas se transformem em pequenas e incalculáveis colunas dispostas a travar a batalha no cara-a-cara, na conversa demorada, na formação continuada. É como o rio extrapolando suas margens, deixando de correr sozinho para misturar-se ao território em incalculáveis cursos de água, irrigando e preparando a terra.
O movimento secundarista tem dado boas lições. Eles se voltaram para dentro das escolas e lá estão tentando entender o mundo, juntos, em comunhão, um apontando o caminho para o outro, amalgamando as veredas, inventando novos cursos. Vivenciam cotidianamente, na necessidade da organização da vida prática, a política real. Estão construindo novas práxis e sabem muito bem quem são os inimigos e os adversários. Não contemporizam nem esperam governabilidade. Respondem na ação direta e decidem na democracia participativa. Seria bom aprender com eles.
Hoje, vivemos tempos duros, nada líquidos, e é preciso dar respostas criativas e inventivas. É Simón Rodríguez, clamando, das brumas do nascimento de nossa América, pela necessidade de inventar a partir de nossa própria experiência. Somos latino-americanos, brasileiros, vivemos num determinado espaço geográfico, na periferia dependente do capital. O que, então, podemos propor, que não seja imitar o centro? Respostas novidadeiras, com nossas caras mescladas de índio, branco e negro, forjadas na luta renhida.
É fato que a luta contra a PEC 55 não é a mãe de todas as batalhas. O combate definitivo é contra o capital. Mas, é de batalha em batalha que se vence a guerra, e vamos avançar, porque estacionar a vida das gentes por 20 anos é coisa que mobiliza. Só que essa peleja tem de ser travada com o olho na totalidade do processo. Nossa indignação tem de tocar também o coração do barbeiro Luís, da mulher com a bolsa apertada ao corpo, dos homens que bebem cerveja no bar, de todos aqueles rostos desesperados dentro dos ônibus urbanos. Dancemos nas ruas, mas sejamos também capazes de estender os laços para além do curso, enlaçando amorosa e comprometidamente essas almas igualmente grávidas de revolução.
O caminho para isso, vamos construindo.
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