sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sobre buquê de cebolas




Por José Newton Tomazzoni




Diversas vezes eu escrevi sobre o amor. Coisa linda escrever sobre o amor. Assunto fácil, cheio de leveza. Mas também polêmico, sempre pronto a várias interpretações, peixe escorregadio...Em todas essas vezes eu pude usar todo o rigor da interpretação racional. Brinquei com as palavras. Eu podia. Falava de um pássaro que voava em outros horizontes.

Hoje é diferente. Ele pousou sobre mim. Abriu suas asas dilacerantes e acolheu minha totalidade de sentido: “Estou aqui, sinta, vou revirar seu mundo de cabeça para baixo.” Eu estremeci. Sempre estremeço quando ele chega. Também amei. Sempre amo quando ele pousa.

Mas o pássaro é danado, gênio forte, indomável. Inútil qualquer resistência. Sei disso, já o conheço. Somos como aqueles velhos amigos que se encontram de vez em quando para uma cerveja. Brindamos a vida, falamos do cais adormecido e, outra vez, voltamos para nosso mundo sério e opaco do gabinete, do escritório, da vida diária.

O cenário era um bar: ela estava na minha frente. Altar. Lugar da hierofania. Com ela assim tão perto já não havia mais necessidade de rezar o Pai-Nosso, pois o reino já tinha chegado. Eu falava da beleza, da poesia, do apenas vislumbrado. Citei Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Mario Quintana...Todas essas distrações dos deuses. Movido pelo mesmo pássaro que um dia pousou sobre eles, eu a enchi de poesia. Falei sobre o mistério. Como é possível que um beija-flor possa parar no ar? Milagre. Como na historia do Eduardo Galeano (que agora não lembro onde li) eu também fiquei impotente diante da imensidão: “Vovô! Me ajuda a olhar?” Não suportei ver tanta beleza sozinho.

Mas a beleza sempre está acompanhada da tristeza. Os chineses sabem disso: há sempre o yin e o yang, positivo e negativo. Ela escutou estarrecida, sem entender nada. Mais do que isso: sua resposta foi: “Zé! Você precisa voltar ao mundo real, viver mais” Que pena. Não entendeu nada. Não leu Mario Quintana. Não leu Nietzsche. Não se apaixonou por Fernando Pessoa. Confundiu o real com o empírico, historicidade com temporalidade. Vive somente do real. Se tivesse amado Novalis ele a ensinaria o óbvio: “A poesia é absolutamente real. Esta é minha filosofia: Quanto mais poético, mais real”. Mas ela não amou. Eu falei pássaro, ela entendeu pedra.

Essa história me lembrou uma outra acontecida há mais de um século (não é curioso que nada há de novo sobre a terra?) Ele, homem das alturas, pássaro louco amante das torrentes e dos abismos. Ansioso arqueólogo da alma. Ela, mulher segura, experiente, sabia o que queria, racional. Ele propôs a beleza, a leveza e a ternura mas ela não pode aceitar. Beleza, ternura e leveza só sobrevivem na intempérie, no turbilhão, na arena trágica e bela do mundo da fantasia. A fantasia é a forma mais profunda de realidade. Mas é preciso muita coragem para embarcar nesse assustador e enorme talvez.

A história que contei é a história de Nietzsche e Lou Salomé. Ele disse: “Vem comigo! Por onde ando os caminhos são solitários sim, mas há tanta beleza que você corre o risco de explodir como um vulcão em atividade. Vem comigo! Nada aqui é seguro, eu sei, mas terá um ganho: você brincará com beija-flores e sorrirá a cada manhã. Dê-me as suas mãos. Vamos colher morangos e brincar com os girassóis. Você sentirá a brisa fria no rosto. Ficará calada como se estivesse ausente- nós vivemos é das ausências – e mergulhará no sentido de todas as coisas”. Ela respondeu: “Bobo. Volte ao mundo real. Desça a sua montanha e aprenda a viver.” Foi embora e preferiu Freud.

Certamente você já ouviu falar de Nietzsche. E de Salomé? Você já tinha ouvido falar nela? Claro que não. Ela só ficou para a história por causa de Nietszche, esse ingênuo que via o mundo do alto da sua montanha. Que estranho isso não é? Que ele tenha sobrevivido ao tempo...eterno. No entanto, ela....

Nietzsche morreu louco e não poderia ser de outra maneira. Como manter a sanidade em um mundo que prefere somente a opacidade do real? Como se manter são em meio a essa multidão de seres racionais em procissão louvando e canonizando a experiência, como se ela por si só nos ensinasse o caminho do arco íris? Como manter a normalidade diante da aceitação subserviente do que apenas aparece, o mundo que é? Ele não vivia o mundo que é. Ele vivia o mundo que não é: “Eu agora amo somente a terra dos meus filhos, no mar mais distante”. Por isso explodiu. Sua música interna era bonita demais. Seu corpo não suportou. Quis compartilhar essa melodia com a humanidade, mas ela preferiu o arrastado grunhido unifônico que abafa todo tipo de sentimento humano. Tentou desesperadamente indicar os caminhos do coração. Não foi possível. Riram dele como sempre fazem os eternamente corretos.

Li em algum lugar sobre uma história de um namorado que deu um buquê de cebolas para sua namorada. Ela ficou indignada e jogou-lhe o buquê na cara. Tola. Não entendeu nada. Nunca viu “O carteiro e o Poeta”. Não se deliciou com “A festa de Babete”. Não levou a sério a advertência da Adélia Prado: “Aquele que entende só o que é falado ou escrito, não entende coisa alguma. A letra mata”. Ele disse: “Você é diferente de todas as outras. A elas eu dei buquê de flores, mas você não é como as outras. Você é de outra substância”. Que pena que ela não leu Pablo Neruda (Quem não leu, leia “ode à cebola”, quem sabe poderá perceber a leveza que pode morar num buquê de cebolas).

Acho que foi isso que aconteceu com Nietzsche. Ele deu um buquê de cebolas para Lou Salomé. Ela preferiu buquê de flores...Normal demais, comum demais. Tinha mesmo que se apaixonar por Freud.

Nenhum comentário: