Famílias moradoras de comunidades do norte da ilha de Santa Catarina lutam por moradia - na foto, povo do Papaquara enfrenta enchente e despejo
Quem passa pelo norte da ilha de Santa Catarina pode até pensar que está em Miami. Jurerê Internacional ostenta luxo e futilidades. Ali, no alto verão, jovens lavam os pés com champanhe nos “lounges” cobertos com linho egípcio. Em Canas'vieiras, assim como nos Ingleses, os turistas circulam por entre prédios de luxo e agitadas baladas. O mar, tranquilo e quentinho, foi a beleza vendida nos anos 80, quando a região iniciou uma explosão imobiliária, que alterou de vez a cara interiorana do lugar. Pescadores foram iludidos com a força da grana e, logo, expulsos da praia. A orla especulada virou mercadoria, espaço dos ricos.
No final dos anos 90, a ilha seguia seu processo de inchaço. Sem condições de vida melhor no interior de tantos estados desse imenso Brasil, outras gentes foram também atraídas pelas belezas da ilha, cantadas em verso e prosa na televisão e nas revistas nacionais. Mas, esse povo, sem posses, nunca foi alvo das empreiteiras. Para eles não havia anúncio de prédios, nem deliciosos reclames de vida boa à beira mar. Mesmo assim, eles vieram, e exigiram seu espaço na cidade. Como diz a moradora do Papaquara (uma comunidade de ocupação), Marisa Moreira: “nós somos brasileiros e cada pedacinho desse chão também nos pertence”.
E esses que chegaram buscando vida melhor foram se ajeitando como podiam. Ora morando com um parente, ora ocupando espaços públicos ou áreas de preservação. Muitos deles sabiam que era um risco entrar nas terras devolutas, mas, que fazer? Com os filhos à tiracolo, com a vida para ganhar, qual opção? E, assim, foram se formando novas comunidades de periferia, boa parte em áreas de risco. Foi assim para os que ocuparam as dunas dos ingleses ou a margem do Rio Papaquara. Na Vila do Arvoredo, a areia vai aos poucos comendo os barracos e na margem do rio, a enchente foi roubando tudo o que o povo tinha até que em 2011, depois de mais um alagamento, quando ainda se recuperavam da desgraça em abrigos públicos, acabaram definitivamente despejados. “Eu nem pude ver a minha casa. Quando saímos do abrigo, já tinham demolido tudo. Se foi tudo o que eu tinha”, lembra Josinei Plácido.
Mas, quem pensa que essa gente guerreira fica por ali chorando as pitangas, se engana. Não, eles se juntam e se organizam na luta pela moradia. Aprenderam na escola da vida que só a luta renhida faz avançar a existência daqueles que, de seu, só dispõem dos corpos e da força de trabalho. Por isso, quando é noite, por entre os caminhos de areia pode-se ver o carreiro de gente andando para as reuniões. Desde há meses que eles encontraram na força de uma militância nova, as Brigadas Populares, o entusiasmo que faltava para a luta coletiva de todas as comunidades do norte da ilha que estão na batalha por uma casa digna para morar.
Foi assim que a luta mais antiga, do povo da Vila do Arvoredo, pode se juntar com a peleia dos moradores do Morro do Caçador e dos despejados do Papaquara, todos moradores do norte da ilha. A ideia era realizar uma manifestação conjunta no norte da ilha, para fazer visível essa luta que é travada nos cantões da ilha, despercebida pela imprensa e desconhecida da maioria. Foram muitos encontros e reuniões. Muita conversa e muito debate. Tudo acertado sem pressa, buscando acertar cada aresta, cada dúvida, cada desesperança.
Então, na quinta-feira, dia 23 de agosto, o povo que passava apressado pelo terminal de ônibus de Canasvieiras, parou. É que ali estavam as famílias que vivem no rico norte, na parte pobre. Os que ganham a vida fazendo reciclagem, cuidando das gentes nos hotéis e nas casas chiques. Os sem lugar, sem casa, sem endereço. Mas, ao mesmo tempo, com garra, com desejos e com valentia. Munidos de faixas, feitas com as próprias mãos, eles anunciavam suas dores e suas esperanças. Gritando palavras de ordem, defendiam seu direito de morar e viver bem na cidade. Caminharam pelas ruas, pela estrada, mostraram sua cara. Na firmeza de cada criatura que ali se fez presente, depois de mais um exaustivo dia de trabalho, estava firmada a palavra bendita: “queremos moradia”. Uma casa, um lar, uma morada. “Pobre nunca tem endereço dentro da ilha, não existe endereço pra pobre. Parece que eles não querem pobre aqui dentro da ilha”, diz Carlos Roberto Miranda, que mora na ilha há 25 anos e ainda não pode ter a sua casa. Mas, ele, assim como todos os que participaram da passeata não vão se render ao desânimo nem aos políticos oportunistas que prometem e não cumprem. Eles decidiram lutar.
A caminhada no norte da ilha foi só o começo. Como um rastro de pólvora, a luta pela moradia e pelo acesso irrestrito à cidade – o que inclui também a mobilidade, o lazer - vai se espalhar, buscando unir as 64 comunidades de periferia que existem hoje em Florianópolis, e nas quais vivem muitas famílias, ainda sem endereço, em casa mal ajambradas, de papelão, de lona ou de madeira velha. Junto com elas caminha também a militância das Brigadas Populares, não como uma entidade externa que pretenda indicar caminho, mas como mais alguns companheiros que, juntos, buscam garantir o direito de cada pessoa que vive em Florianópolis poder morar e viver feliz. “Nosso trabalho como organização que luta pela reforma urbana é fazer formação e organização popular, construir junto com os moradores as ligações entre a ausência de diretos para alguns e a acumulação de poder para outros e encontrar saídas coletivas para garantir o acesso à cidade”, diz Vitor Hugo Tonin, das Brigadas Populares.
Ao final da manifestação que expôs a ferida aberta que ninguém quer ver, os moradores do norte da ilha foram para um debate com os candidatos à prefeitura de Florianópolis que deveria acontecer na Escola Jacó Anderle. Mas, sem que ninguém soubesse o motivo, o diretor da escola suspendeu tudo e não permitiu que as gentes entrassem. Dos seis “prefeituráveis” que disputam a cidade apenas Élson Pereira, do PSOL e Gilmar Salgado, do PSTU, respeitaram os sem endereço se fazendo presente. E dialogaram com as famílias através de um megafone, discutindo a questão urbana, tão caótica e desigual na “ilha da magia”.
Mas, cada um que ali estava sabe muito bem que a luta pela cidade não se resume a votar no dia da eleição. Ela é cotidiana e permanente. Assim, pelos caminhos de areia do norte da ilha, nessa parte ainda invisível dos bairros nobres, as gentes continuarão caminhando para se encontrar e definir os rumos da longa luta que precisa ser travada. Junto com elas, as Brigadas Populares, também mergulhadas na batalha pelo direito à cidade. E não só para alguns...
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