quarta-feira, 7 de abril de 2021

Destruição de escola quilombola em Santa Catarina está ligada à luta pela terra



a escola no chão

No feriado da semana santa os moradores do quilombo Invernada dos Negros, localizado na divisa entre os municípios Campos Novos e Abdon Batista, em Santa Catarina, foram surpreendidos com a notícia da derrubada da escola estadual José Faria Neto que era utilizada por eles para atividades de educação de mais de 100 alunos e também de organização da comunidade. Uma máquina chegou e simplesmente colocou no chão o prédio. Todo o material da educação quilombola que estava dentro sumiu. Ninguém sabe, ninguém viu. O governo estadual, responsável pelo patrimônio público, diz que não mandou derrubar, mas declarou em nota que uma nova escola foi construída a 500 metros da que caiu, sugerindo que os quilombolas se conformem e passem a usar o prédio novo. Um inquérito sobre o caso, registrado como dano ao patrimônio público, foi aberto na policia civil de Campos Novos, mas até ontem, terça-feira (07/04), não havia sido iniciada a oitiva das testemunhas.

A questão que se coloca é: se não foi o estado o que mandou derrubar a escola, quem se atreveu a um ato dessa natureza? Colocar no chão uma escola inteira que é patrimônio do povo catarinense? A suspeita dos quilombolas recai sobre a Empresa Imaribo, uma madeireira que planta pinus na região e que, inclusive, tem uma disputa antiga com o quilombo, na medida em que está instalada em pelo menos quatro mil hectares que pertencem à Invernada dos Negros. Ou seja: a batalha é pela terra. A destruição da escola foi mais um passo no sentido de quebrar a espinha dos quilombolas, arrancando deles um espaço conquistado com muita luta junto à Secretaria de Educação para garantir educação à comunidade. 

A história do quilombo

As terras onde hoje vivem os remanescentes de negros escravizados conhecida como Quilombo Invernada dos Negros, ao contrário de muitos outros quilombos que não têm registro de propriedade, foram deixadas como herança, em testamento, no ano de 1877, pelo então proprietário Matheus José de Souza e Oliveira, a oito pessoas ainda escravas e três libertas. Como naqueles dias era muito mais difícil a um negro garantir seus direitos na justiça, as terras não foram regularizadas. Ainda assim, as famílias seguiram vivendo suas vidas no local até que a partir dos anos 1940 começaram a ver seu território invadido. Desde aí tem sido sistemática a luta contra os grileiros, com os negros sempre em desvantagem.

O território original do quilombo é de 7.950 hectares, mas apenas uma parte desse total foi titulada e regularizada em 2014 (cerca de 639 hectares), sendo que pelo menos quatro mil hectares seguem na mão da Empresa Imaribo, que se diz dona das terras e continua plantando pinus no local. Como se sabe, o pinus é uma cultura alienígena que inclusive provoca a destruição do solo para outras culturas. Isso significa que quanto mais os pinus seguirem infestando o campo, menos chance a comunidade terá de recuperar a fertilidade da terra. Já a parte ocupada pelos quilombolas preserva a vegetação nativa e busca garantir uma cultura de existência.

Em 2014 quando finalmente o Incra reconheceu o território quilombola as terras que estavam sob ocupação da Imaribo foram colocadas como sendo do quilombo e passíveis de indenização por parte do estado. Mas, até hoje não se sabe de qualquer avanço nesse sentido e a empresa segue comportando-se como se dona fosse. Tanto que agora pode ter derrubado a escola que fica nessas terras. 

Em 2019, aproveitando que a empresa fez um corte de pinus em um dos espaços da terra, as famílias quilombolas ocuparam o lugar, visando assim forçar o estado a resolver de vez a questão da desapropriação. Na época, a empresa Imaribo entrou na justiça pedindo reintegração de posse, que foi aceita pelo judiciário. Na iminência de serem despejados de suas próprias terras, os quilombolas recorreram ao Ministério Público Federal, que reconheceu serem os quatro mil hectares que estão sob o nome da Imaribo, parte do território quilombola.  Já a justiça catarinense entendia que como a empresa tinha o título imobiliário os quilombolas tinham que sair. O caso acabou indo para a justiça federal que, por fim, impediu o despejo violento. Mais tarde, a justiça também decidiu que os quilombolas poderiam ficar na área, pois um acordo anterior com a empresa Imaribo dava conta de que ela não poderia replantar os espaços onde já houvesse feito o corte da madeira. 

É assim que a os quilombolas da Invernada dos Negros vem, a cada tanto, enfrentando a madeireira visando recuperar os quatro mil hectares que lhes pertence. Eles entendem que a empresa pode ter comprado a terra de boa fé, mas cabe ao governo resolver o conflito indenizando a Imaribo. 

A educação quilombola

Outra batalha travada pelo quilombo diz respeito à educação quilombola, direito que conquistaram em 2003, quando o governo federal aprovou a lei que definia que tanto os indígenas como os quilombolas tinham suas singularidades culturais e poderiam trabalhar a educação dentro desses parâmetros. Foi assim que a partir de 2004, conforme conta Maria de Lourdes Mina, do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina, começou um trabalho com os quilombolas e o governo do Estado para garantir esse direito. Foram realizados inúmeros encontros e seminários com as gerências regionais de educação para informar e formar os gestores, mas até o ano de 2010 nada havia sido encaminhado. Foi necessário entrar na justiça contra o Estado para garantir que os quilombos pudessem ter a educação conforme sua cultura e tradição.  E, como a justiça é lenta quando se trata do direito dos empobrecidos, a decisão só saiu em 2019 quando então o estado foi obrigado a implementar a educação quilombola.

Na Invernada dos Negros esse trabalho de educação começou principalmente com os jovens e adultos, pois havia muita gente que não sabia ler nem escrever. Gente com 60, 70 anos que tinha como sonho aprender a ler o mundo. Havia inclusive a promessa do governo estadual de que o quilombo teria sua própria escola física, visto que é um dos mais populosos do estado.  Foi assim que eles começaram a usar a escola estadual José Faria Neto, que agora foi demolida. O estado alega que construiu uma escola nova que dista 500 metros da escola que foi ao chão, mas para os quilombolas isso não significa nada. A escola, se deixava de servir aos demais alunos da região, deveria ter sido destinada ao quilombo, pois lá, além das aulas, acontecem atividades de formação da comunidade, encontros de organização e atividades culturais. É importante registrar que ter garantido o direito a trabalhar com educação quilombola – que leva em conta a oralidade e a ancestralidade - foi considerada uma das maiores conquistas da Invernada dos Negros. 

Edson Camargo, liderança do quilombo, confirma que não houve qualquer conversa nem com a Secretaria de Educação, nem com a Empresa Imaribo, sobre o que ia acontecer com a escola. Ela estava fechada por conta da pandemia, mas a comunidade chegou a realizar uma reunião no começo do ano para se preparar para a volta ao trabalho. Todo o patrimônio foi destruído: o físico e o imaterial, porque a escola, bem mais do que um prédio, significava uma vitória sobre o preconceito e uma garantia para que a história do quilombo seguisse seu caminho dentro do modo de ser quilombola. Derrubar o prédio é atingir também essa conquista. Jogar as crianças e adultos para a escola nova é destruir todo o processo que vinha sendo constituído desde 2004. “O prédio da escola existe há 40 anos como uma escola pública. Como que da noite para o dia vira propriedade da Imaribo? Como que uma máquina destrói o patrimônio público e não acontece nada? Como que o estado não sabia? Até quando vão nos atacar e tentar nos destruir, inclusive os nossos sonhos?”. 

O Movimento Negro Unificado (MNU) realizou nesta terça-feira um encontro virtual juntando representantes do quilombo com apoiadores de vários segmentos, sindicalistas, movimentos sociais, vereadores, deputados estaduais e federais. A intenção é fazer com que destes espaços todos partam ações no sentido de cobrar o governo do estado a explicar o que aconteceu e a garantir um espaço digno para que a Invernada dos Negros possa continuar com seu trabalho dentro da lógica da educação quilombola. 

Tentamos contato com a empresa Imaribo para ouvir sua versão sobre os fatos, mas não conseguimos. Foi pedido o meu número de telefone para um retorno, pois apenas uma pessoa na empresa está autorizada a falar sobre o caso. Mas, até o fechamento da matéria, ninguém ligou. 

A luta segue na Invernada dos Negros. 


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