sábado, 7 de novembro de 2020

O pai, o Steve e o Hegel

 


Meus dois velhinhos cara-a-cara

Os dias pandêmicos são longos e lentos. O pai acorda cedo e o dia passa devagar. Nos momentos em que ele dorme procuro fazer meu trabalho do Iela, as leituras dos jornais latino-americanos, o acompanhamento das notícias nos sítios, redigir os textos, fazer as artes do instagram, realizar as postagens nas redes e plataformas, fazer entrevistas gravadas, participar de alguns debates. É uma correria porque ele dorme pouco. E quando está acordado fica difícil eu me concentrar. A atenção tem de ser para ele. Anda por todo canto, mexe em tudo, intisica os cachorros, os gatos, caça bastante confusão. Há que ficar atenta, e ainda assim, vez em quando ele cai ou se machuca, porque basta um segundo de distração e pimba.  

Na última semana comecei a fazer o curso do Hegel. Leitura sistemática da Fenomenologia do espírito. É bem engraçado. Porque durante o dia eu tento abrir algumas brechas para a leitura, mas a cada parágrafo há que parar para limpar um xixi, um cocô, ou tirar o pai de alguma trampa. Imagina estudar filosofia assim? Desgasta. Nossa senhora da vaca emburrada, valei-me.  

Não bastasse isso agora o cachorro que mora aqui em casa, que eu resgatei da rua há 12 anos, também está velhinho. Então, ele tenta pular o muro ou subir na mesa, mas não está mais conseguindo dar o impulso. O resultado é que ele se estabaca todo no chão. E claro, tal e qual o pai, não adianta falar nada, porque não há compreensão. Aí preciso ficar encontrando formas de criar barreira para ele não tentar os pulos. É um baita estresse, porque eu não dou conta. Tem hora que é o pai tentando abrir o portão de um lado, e o Steve querendo saltar o muro do outro, e eu tendo de correr de um lado pra outro para evitar problemas. O Hegel só me olha de revesgueio, apontando minhas certezas sensíveis. O meu ser-aí se desvanece.  

Quando a noite chega e o pai já está deitadinho, eu olho para o Hegel, ele me olha. Mas, então, decido. Porfa, preciso de uma alienaçãozinha. Aí vou ver Discovery, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve. A terceira temporada, um arraso. Entschuldigung, Hegel, mas o Saru vence.  

Quando a barra do dia desponta, lá pelas cinco horas, enquanto o pai já começa com seu deambuleio no quarto, eu retomo o Hegel, só um pouquinho, até que tenha de sair para as tarefas. Não é fácil, mas, quem disse que seria? 

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