Poucas
coisas exerceram tanta influência em mim como o filme de Richard Fleischer,
Soylent Green, que no Brasil foi comercializado com o nome de “No mundo de 2020”. Lembro
como se fosse hoje a matinê na qual o assisti, nas cadeiras vermelhas e
confortáveis do então novíssimo Cinema Presidente, em São Borja. Fora ver o
filme porque era com o ator Charlton Heston, pelo qual eu nutria profundo amor
por conta de seus filmes bíblicos. Inesquecível Ben Hur. Mas, não estava
preparada, nos meus alegres 15 anos para o que vi. Lembro que fiquei no escuro
do cinema, depois que subiram as letras finais, com as lágrimas correndo
devagarinho pelo rosto e ao longo dos dias que se passaram comecei a
compreender que a vida humana não pode estar – jamais - desconectada da natureza. Percebi que não
existe uma natureza lá fora de mim, e eu, ser que domino e manipulo. Tudo é um.
Mais
fortes ficaram as palavras do grande chefe Sioux Tatanka Yatanka (Touro
Sentado) que em carta ao presidente dos
Estados Unidos ensinou: “Causar dano à
terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai
desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a
sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos.
Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando
as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem
de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias?
Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da
vida e o começo pela luta pela sobrevivência”.
Creio que
naquele domingo, no trajeto entre o cinema e a minha casa tornei-me ecologista.
Não desses que olham a natureza como uma coisa externa ao humano, mas os que
entendem que tudo é Pacha (o universo ordenado, o existente) e está interligado.
Falo tudo
isso para comentar do preço do feijão e do leite, que nos últimos tempos tem se
apresentado como elementos de exclusão. Nossa base alimentaria - o feijão –
cada dia vai ficando mais longe da nossa mesa. Está caro demais. O leite custa
seis reais o litro. Impensável. O que está acontecendo?
Ocorre
que poucos são aqueles que estão produzindo comida mesmo. O sistema capitalista
de produção que se apodera das terras para dar vazão ao plantio de monoculturas
de exportação está destruindo o mundo camponês, esse que produz a comida nossa
de todo dia. Isso vem de muito tempo, mas agora está chegando a níveis
perigosos. Nosso estado de Santa Catarina é um exemplo desse terror.
Quilômetros e mais quilômetros de pinus nas terras onde antes brotava o trigo,
o feijão, a mandioca, o tomate, a maçã. A terra se exaurindo, uns poucos
ganhando dinheiro e pequenos produtores iludidos com as parcerias das
papeleiras.
O mundo
capitalista não quer saber das gentes. O que precisa produzir é lucro. Se, para
isso, for necessário massacrar milhões, que seja. No seu brilhante texto sobre
acumulação primitiva Karl Marx descreve como, no início do capitalismo, os
ingleses destruíram as propriedades produtoras de comida para criar as ovelhas
que alimentariam com lã as máquinas das fábricas de tecido. Por conta disso
gerou-se um gigantesco êxodo de gente para a cidade que, por sua vez, iria
alimentar o monstro do capital, com seus corpos e os dos seus filhos.
Hoje, no
Brasil e na América Latina vivemos novo ciclo de acumulação primitiva do
capital. O campo vai se apequenando para as gentes e para a produção de
alimentos. Produz-se a soja para exportação, cria-se gado ou então se expulsam
as famílias para a extração de minérios. A terra especulada. E danem-se as
pessoas. O que vale é a bolsa de valores e seu capital de mentira.
Mas, o
fato é que as pessoas precisam comer e alguém tem de produzir comida. Senão,
que vamos ingerir para manter a vida? Produtos criados em laboratório? Pílulas
de energia? Quê?
O filme
2020 mostrava, nos anos 70, o que poderia acontecer no futuro se o homem
seguisse com seu processo de destruição da natureza. Falava de um amanhã longínquo
demais, pura ficção científica. E, como sempre acontece com a arte - que é a
antena do humano – mostrava o quanto o sistema capitalista de produção pode ser
engenhoso e sagaz nas soluções que encontra para continuar se reproduzindo e
lucrando com a maioria.
A
descoberta do detetive Robert Thorn, em meio a uma crise de fome na cidade onde
vive, que naqueles dias me pareceu estarrecedora, hoje apareceria como estranhamente
natural. Porque hoje eu já sei como é que funcionam as entranhas do sistema e o
que efetivamente tem valor para os que dominam. Ao sistema capitalista e seus operadores,
pouco importa o que acontece com a maioria das gentes. Esses seres que não
conformam o topo da pirâmide social sempre serão usados pelos graúdos como carne
moída para a manutenção do modo de vida atual. E o que é pior, serão a carne
comida pelos seus próprios companheiros, garantindo a reprodução da vida dos
que realmente produzem a riqueza, tal qual no filme.
Naquele dia
perdido no passado, pelos olhos de Charlton Heston eu também me fiz comunista,
mesmo sem saber. Saí dali disposta a não permitir que o ano de 2020 fosse como
anunciava a ficção. Nenhuma pessoa teria que passar pela dor de comer seu irmão,
seu pai, sua mãe, sua amiga, para seguir servindo os ricos. Haveria que salvar
as gentes e a vida toda.
Hoje,
passados tantos anos estou aqui, diante da tela do computador, com lágrimas nos
olhos, lendo sobre o preço do feijão e do leite, sentindo o bafejo do ano 2020
no cangote, e pensando que talvez tudo seja como a ficção pensou. Sinto
calafrios.
Mas,
apesar do terror, não me imobilizo. Pelo contrário. Mais motivos tenho para
seguir desvelando a realidade e lutando para que um novo jeito de viver seja
construído pela ação das gentes. Há tempo ainda. Espero...
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