A cidade de Madrid é um espaço urbano com todas as mazelas da grande metrópole. Apesar da relativa segurança que permite o povo de andar pelas ruas mesmo pela madrugada, é fácil perceber a concretude da crise que se abate por quase todos os países da Europa. Entre os jovens há um tremendo pessimismo a ponto de muitos deles estarem vivenciando sua diáspora, abandonando o país em busca de melhores espaços para ganhar a vida. “Não temos casa, nem emprego, nem futuro. Por isso nos resta apenas duas opções, ou sair ou lutar. Alguns já se foram e a gente está aqui, resistindo, buscando mudar as coisas”, afirmava um dos indignados, na passeata de domingo, 13 de novembro. Essa angustia de um futuro não sabido também aparece no número elevado de moradores de rua, coisa que até bem pouco tempo era uma exceção. Agora, por todas as ruas, ali estão os desalojados, dormindo sobre folhas de papelão, e em cada bar do centro da cidade peregrinam os pedintes em busca de moedas e pão.
A crise que consome o povo espanhol não é nova, mas só começou a aparecer a partir da luta dos despejados do setor imobiliário. De repente, por conta do não pagamento das hipotecas as famílias foram obrigadas a abandonar as casas e os apartamentos financiados junto aos bancos. O trabalho escasseou, a economia desacelerou e o dinheiro sumiu. Sem casa e ainda com uma dívida enorme para pagar, as pessoas decidiram lutar e foi aí que começaram as marchas e os protestos dos desalojados. Esse movimento colocou à nu uma situação que se escondia sob a velha cantilena da mídia que anunciava serem esses manifestantes apenas caloteiros de plantão. Quando o banco começou a bater na porta, as pessoas foram se dando conta de que isso poderia passar com qualquer um e que a falta de pagamento não era por safadeza ou preguiça, mas porque o emprego havia sumido. Hoje, na Espanha, a cifra de desempregados passa dos cinco milhões, o que representa 20% da população ativa.
A vertiginosa escalada da luta dos desalojados encontrou guarida no movimento “juventude sem futuro” que já se articulava em várias universidades do país. Saídos da faculdade os jovens viam suas possibilidades de emprego se desmanchar no ar e o Estado, antes benfeitor, já não lhes garantia qualidade de vida. Era preciso fazer alguma coisa. Enquanto isso, no mundo árabe, iniciavam as revoltas por democracia, tais como em Túnis e no Egito. As praças se enchiam, as gentes se levantavam em rebelião. Foi o estopim para que as gentes espanholas espremidas pelo sistema capitalista em crise decidissem fazer sua própria luta. Assim, os desalojados, os jovens sem futuro, os militantes sociais de outros movimentos que desde há muito vinham organizados foram para a praça. Só que aí já não estavam mais sós. Juntaram-se a eles multidões de indignados. Pessoas que tinham um grito guardado na garganta e que viam que era hora de soltar. “Foi uma coisa muito incrível porque a gente, que estava sempre nas lutas, quando ia para uma marcha já sabia quem ia encontrar. E de repente, a gente não conhecia ninguém. Era uma maravilha”, conta Érika Gonzáles, da organização Paz con Dignidad.
Uma dessas manifestações acabou sendo violentamente reprimida pela polícia, o que levou ao fortalecimento do movimento. O povo decidiu resistir e acampar na Praça do Sol. Nascia assim, para o mundo, a batalha dos indignados e para os espanhóis, o movimento 15-M, uma alusão à data do embate com a polícia, 15 de maio. O acampamento seguia a lógica já vitoriosa em outros países, com assembleias gerais decidindo tudo na democracia direta. Foi um processo de profundo aprendizado, tanto para os que já andavam na luta em outros movimentos como para os que nunca haviam participado de qualquer ação política. “O acampamento acabou porque era muito difícil tocar a vida, o trabalho e tudo mais. Além disso, era igualmente muito dificultoso intermediar a luta política que ali se fazia com a presença de pessoas drogadas ou em sofrimento mental que acabam se acercando do acampamento. Precisávamos de gente capacidade para lidar com isso e não tínhamos. Mas foi uma experiência muito rica, até por isso. Tínhamos de nos enfrentar com todos os medos e preconceitos”, conta um dos manifestantes.
De qualquer forma, mesmo sem o acampamento, o 15-M decidiu manter assembleias nos bairros e elas acontecem todas as semanas tentando organizar as pessoas e apontar propostas de luta. Da mesma forma, as marchas também não param e acontecem geralmente aos domingos. Já virou rotina organizar a vida para participar cotidianamente da “mani”, como chamam, carinhosamente as manifestações.
Ainda assim, com toda essa efervescência nas ruas, a vida política ainda não conseguiu organizar novas forças de transformação. No último domingo (20/11) aconteceram as eleições gerais e o que se vê é muito pessimismo entre o povo. Os dois candidatos que disputavam os primeiros lugares das pesquisas não merecem crédito dos manifestantes do 15-M. O PP, que representa a direita é rechaçado e o PSOE, da socialdemocracia é responsabilizado pelo que acontece hoje. O que se percebe é que os setores que já vinham organizados seguem no rumo dos partidos de esquerda, como a Esquerda Unida (levou apenas um milhão de votos). No geral são pessoas politizadas e que levam longa data em partidos, sindicatos ou movimentos organizados. Sabem muito bem o que querem. Mas são poucos. A maioria dos manifestantes, que gritam “não nos representam”, preferem desconsiderar o processo eleitoral. Acreditam que qualquer um que ganhe não garantirá a melhoria da vida. Preferem o voto nulo ou não votar. Uma pequena parcela aposta na construção de alguma coisa nova, que vingue em algo como o poder popular. “Esse tempo todo de democracia representativa já mostrou que os políticos não ouvem o povo. Temos de garantir que nossa voz seja ouvida e nossa vontade atendida. Isso só com outra política”.
Ocorre que esse caminho da construção do novo é lento e a conjuntura apresenta tendências perigosas. As pesquisas de intenção de voto davam vitória ao PP, partido de direita, cujo candidato não mostra qualquer medo em dizer na televisão que vai ter de revisar as aposentadorias, que o povo vai ter de dar sua cota de sacrifício para salvar o país, que serão necessários os ajustes na economia, cortes no orçamento. A mesma ladainha já bem conhecida dos latino-americanos que passaram por processos semelhantes de aprofundamento das medidas neoliberais. Nesse sentido, cresce também o medo de que a crise, o desemprego e a desesperança leve o país a uma guinada conservadora e até fascista. Isso se expressa na fala de outro candidato, de outro partido de direita, que declarou estarem nascendo muitos Mohamades na Espanha e que isso precisa parar. Uma clara alusão aos migrantes, que já se contam aos milhares no país. Ivan Forero, colombiano radicado na Espanha, membro do movimento “Justiça por Colômbia”, conta que a pressão contra os imigrantes, que já era grande, agora tende a se agravar. “Temos a informação de que na Mauritânia está sendo construída uma espécie de prisão para encerrar qualquer um que, desde a África, tente passar pelos caminhos que levam à Europa. É uma nova versão dos campos de concentração, buscando evitar a entrada, para barrar o problema antes que ele se expresse. E tudo isso está sendo feito com a ajuda do governo espanhol”.
O resultado das urnas na eleição geral não foi diferente do que anunciavam as pesquisas. A Espanha votou pela direita e deu maioria ao PP (quase 10 milhões de votos, 4 milhões a mais que o PSOE), que é quem deve agora comandar os destinos da crise. O medo dos protestos, das greves, das manifestações fez a população acudir ao discurso mais conservador, de “manutenção da ordem”. Coisa que parece paradoxal uma vez que a proposta de Mariano Rajoy (candidato vencedor) é fazer mais ajustes, cortando 18 milhões de euros do orçamento, e iniciar uma reforma trabalhista que certamente aumentará o desemprego, aprofundando ainda mais a crise.
Entre os que caminham nas marchas que enchem as ruas existe também um pouco de medo. Essa virada à direita leva ao autoritarismo, ao racismo, à discriminação. São esperados tempos muito duros. Mas, de qualquer forma, quem participa cotidianamente do 15-M acredita que o movimento massivo das ruas pode alterar a balança do poder. É por isso que lutam. O certo é que a Espanha inicia agora um novo ciclo e só tempo poderá dizer o que vai passar. Os indignados, os militantes sociais, os ativistas ecológicos, enfim, toda a gente organizada seguirá apostando na construção do novo. Que pode vir...
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