Eu tinha uma missão para meu janeiro: levar o pai para encontrar com a mãe. Isso levou a cabo um périplo, saindo de Florianópolis até o rio Ibicuí, onde faz divisão entre Itaqui e Uruguaiana, na fronteira brasileira. Ali deixamos a mãe em 2009, atendendo a um pedido dela. “Quero que eu joguem no Ibicuí”, ela dizia. A mãe encantou em 1998, mas por conta de mil coisas vividas de enterrá-la em João Pinheiro, Minas Gerais. Era um lugar que ela não gostava e eu fiquei por anos pensando na forma de fazer sua vontade. Até que em 2009 deu. Cremamos seus restos e levamos ao rio. Foi uma viagem linda, com o pai, o Renato, o Rubens e a Rose. Lá, numa única cerimônia, entregamos a mãe para o Ibicuí. Foi quando pai define igualmente sua morada final: “também quero vir pra cá”. Não foi novidade pra mim. Assim como a mãe, o pai também tinha as melhores memórias da vida na beira do velho rio.
Assim que neste 2025, quase um ano depois da morte do pai, eu fui realizar sua vontade. Saí do Desterro no dia 15, primeiro dia das minhas férias, rumo a Navegantes aonde ia encontrar a Rose. Ela cumpriria a generosa tarefa de me levar até o rio. No dia seguinte empreendemos a jornada, dirigindo 11 horas seguidas até Ametista do Sul, onde descansamos por dois dias. Depois, foram mais sete horas até São Borja, com mais uma parada para rever amigos e lugares. Logo a frente estaria Itaqui e então o rio, onde depositaria as cinzas do seu Tavares. A ideia era ir ao mesmo lugar onde deixamos a mãe, seguindo uma estrada curtinha bem na beira da ponte, que levava ao curso do rio. Mas, para nossa surpresa, debaixo de um sol de quase 50 graus, encontramos a entrada do caminho fechado. Propriedade particular. A estrada agora era de uma mineradora e não tínhamos como chegar ao rio por ali. Resolvemos atravessar a ponte e ir para a margem já no lado de Uruguaiana, mas o rio estava seco demais e havia uma faixa de areia de quase 300 metros até chegar à água. Não tinha como andar ali, poderia haver buracos. Bateu o desespero. Tanta estrada e talvez eu tivesse de voltar com o seu Tavares.
A ponte do Ibicuí é uma velha ponte de ferro na qual só tem espaço para um carro, então é por isso que ali tem ainda um sistema bem antigo de controle, feito por pessoas. Sim, nestes tempos internos e virtuais, o controle é feito por pessoas. E foi o que nos salvou. Um cara fica do lado de Itaqui e outro do de Uruguaiana e são eles que fecham a cancela ora de um lado, ora de outro, para os carros passarem. Paramos o carro em frente à guarita e perguntamos se o rapaz sabia de alguma maneira de chegar ao rio. Eu quase choro. “Eu fiz uma promessa moço, preciso chegar ao rio”. Não havia jeito de descer por ali. Eu acho que ele logo viu o que era, embora eu tivesse vergonha de dizer que ia jogar como cinzas, com medo de ele achar ruim, sei lá. Ele então perguntou: vocês vão jogar alguma coisa? Fui obrigada a confessar. "Sim, são as cinzas do pai. Eu prometi".
Conversa vai, conversa vem, ele então deu a ideia salvadora. “Bom, por ali pela areia não dá pra ir. O único jeito é vocês pararem na ponte e de lá vocês jogam. Eu paro a ponte deste lado, e peço para meu amigo fechar o lado de lá. Quando terminarem, sigam em frente”. Oh, meu Deus, vontade de pular no pescoço dele. Por sorte encontramos alguém capaz de entender o lance.
Corremos para o carro para voltar pela ponte. Mas, aí, outro perrengue. A urna estava fechada com parafusos e não tinha como abrir. Mais um desespero. E, de novo, uma espécie. Rose havia levado muitas coisas para a gente comer na viagem, logo, havia utensílios. Uma faca de serrinha serviu de chave de fenda e conseguiu abrir uma urna. O sol queimando, a gente pingando suor. Não teria de ser fácil, né, seu Tavares? Por fim, reiniciamos o caminho pela ponte, no sentido de Itaqui. Andamos até o meio da ponte, onde finalmente encerrava a faixa de areia. Lá embaixo, o rio, na sua corredeira. Paramos. As duas cancelas estavam fechadas. A ponte era toda nossa. Desci, me equilibrando no minúsculo espaço de ferro. "Agora é contigo, meu velho. Vá ao encontro da mãe". Dei meu último adeus e joguei as cinzas, que se esparramaram pelo rio junto com as minhas lágrimas, afinal, foi mais uma despedida.
Apesar de magrinho, o Ibicuí resplandecia naquela quase meio-dia. Fiquei olhando a sua caminhada macia, ouvindo o riso do pai e da mãe, nadando em largas braçadas, tal como faziam na juventude. Voltei para o carro, cruzamos a ponte, fizemos a volta, cruzamos de novo, e nos despedimos do rapazinho que havia tornado possível aquele momento bonito. E seguimos no boato de Uruguaiana, eu ainda em lágrimas, mas com o coração leve.
Parte da minha vida ficou ali, naquele rio tão amado, que segue seu curso até o imenso rio Uruguai. Agradeço infinitamente à minha querida amiga, Roseméri Laurindo, por ter sido companheira deste triste e bonito adeus...
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