terça-feira, 25 de maio de 2021

A rua dos Andradas em São Borja







Mudamos para a rua dos Andradas, em São Borja, no ano de 1970. Em 1969 ainda vivíamos numa casa alugada, bem em frente à casa do filho do Getúlio Vargas, ao lado da Dona Dília e do Dr. Hildebrando. Lembro que nessa casa era bem comum brincarmos no carramanchão do dr. Hildebrando, com a filha da empregada dele, a Dona Tereza, e por vezes também circulávamos na casa do Viriato, entrando pelo portão dos fundos. Mas, foi na rua dos Andradas que vivemos os melhores dias porque ali estava a nossa casa própria, construída durante quase um ano inteiro. Quando nos mudamos acreditávamos que seria para sempre. Não foi assim.

A casa era ladeada por duas vizinhanças maravilhosas. De um lado a família Savian e do outro a Rodrigues. Cada uma delas acabou se transformando em família também porque a vida ali era vivida em comunhão. Na frente tinha a casa do Miro, da Dona Gersey e da dona Nezinha. Mais à esquerda o seu Ciro e na parte de trás do terreno divisámos com a dona Alda. Havia muita criança. Era um mundaréu. E também era comum andarmos todos circulando e correndo por dentro das casas como se nossas fossem. Não havia barreiras. Brincávamos de mocinho e bandido nas cascas de arroz, de pique-esconde pelas casas todas, de Tarzan, pendurados nos cinamomos da casa do Miro e nas noites ocupávamos a rua inteira em brincadeiras de todo o tipo, enquanto as famílias sentavam em frente às casas, enfeitando as calçadas. Nas noites de invernos íamos ouvir casos de assombração na casa do seu Ciro, com sessões comandadas pela Gorda, apelido da Fátima. Ficava a turma toda espremida na sala e depois, saíamos em algaravia, tudo abraçado, com medo de ver os espíritos. 

Era comum a minha irmã pular a janela para sair à noite com as gurias do seu Savian e apesar de acharem que estavam saindo às escondidas, a dona Nezinha sempre estava à espreita na sua janela, atrás das cortinas de crochê, e sabia de todas as escapulidas, fossem a hora que fossem. Era incrível. Sabia de todos os acontecimentos, de todas as casas, embora pouco fosse  vista. 

Entre a gurizada havia, na verdade, três gerações. Os jovens, da idade de minha irmã, os menores, como eu, e os mais criança ainda, como meu irmão. Mas, no geral, nossas atividades se misturavam porque em cada família tinha gente pertencente aos três grupos. E ainda tinha gente que vinha de mais longe como era o caso do Tiririca, que passava por ali sempre puxando sua vaca leiteira. Tinha-lhe tanto apreço que pintou seu nome na vaca, para evitar roubo. Não lhe conhecíamos a família, mas ele era um dos nossos, participando de todas as brincadeiras. Também tinha o Timóteo, que vinha pedir comida, e acabava ficando para brincar e o Juarez, que morava na rua transversal. Fazia parte do cenário também o Newton, um cara a quem chamavam de “louco” porque ele vinha xingar o seu Ciro todos os dias, gritando-lhe impropérios, indo depois pedir comida nas casas. Todos o amavam. 

Nas noites de verão, a rua de terra vermelha se alegrava inteira, com a multidão de gente, crianças e bichos nas rodas de chimarrão e de traquinagens. Brincávamos de Diabo-Rengo, Batatinha Frita, Sapata (amarelinha), Pique-Esconde, Passa o anel, Escolher Fita. Lembro que havia um homem, que morava quase no final da rua, numa casa bem simples, a quem atribuíam o fato de ser lobisomem. Ele era magrinho e sempre usava chapéu, com um bigode estilo Fernando Pessoa. Quando ele apontava na esquina do Bar da Zezé, a gente saía tudo correndo, se escondendo em casa. Estar ali fora era como possuir o mundo. 

Na esquina tinha o armazém da Dona Zezé, onde se comprava de tudo. Não havia isso de supermercado. Ela era uma mulher adorável, penteava o cabelo à moda antiga, armado de laquê. E ficava furiosa quando batíamos na janela, no horário do meio-dia, querendo comprar picolé. Ainda assim ela abria e trazia os picolés, não sem xingar à larga. E caso se precisasse de qualquer coisa, mesmo à noite, era só bater, que lá vinha ela no passo manso. O marido dela, um argentino chamado Pepino, era uma figuraça e estava sempre de bom humor, contrabandeando balas junto com o troco. 

Minha irmã, quatro anos mais velha que eu andava com a turma das gurias do seu Savian. Eu, com as gurias do seu Jesus e da dona Cira, sendo que a Liziane era minha melhor amiga. Com ela compartilhava os segredos e os dias. E ali A Negra e a Gordinha eram menores, mas acabavam sempre com a gente. A nossa casa se dividia com uma cerca, sem muro, praticamente compartilhávamos o mesmo terreno, então para estarmos juntas nem precisávamos sair de casa. Eu sentava na janela do quarto, do meu lado da cerca, e ela na da sala, do outro lado. O seu Jesus era uma figura incrível, grande e engraçada, sempre inventando coisas para a gente brincar. Lembro-me dele às vezes nos levando para a escola em um desses carros antigos, estilo alemão, uma preciosidade que comprou por puro gosto. Minha irmã tinha vergonha de ir, porque achava o carro velho, mas eu sabia que estava andando em uma joia e não via a hora de entrar naquela beleza. 

Vivemos ali apenas sete anos, mas com certeza é de onde me vêm as melhores lembranças, o sentido de comunidade, de solidariedade, de família estendida. Ali vivenciamos as amizades mais puras, as brincadeiras mais sadias, e aprendi o sentido da partilha e a beleza do comum. 

Saímos de São Borja no começo de 1978 em circunstâncias bem tristes, mas aquele lugar nunca saiu de mim. Tanto que sempre que eu sonho que estou em casa, é na casa da rua dos Andradas que estou. Voltei lá em 2009, mais de 30 anos depois, quando fui levar as cinzas da mãe e a rua estava lá igualzinha, com todas as casas, apenas agora calçada de paralelepípedo. Até mesmo o bar da Zezé estava aberto e tomamos uma cerveja lá. Também fizemos uma foto em frente a nossa velha casa, sem coragem de pedir pra entrar. 

Lembro que enquanto estávamos fazendo as fotos, num carro da casa ao lado, avistei uma carinha familiar. Era o Fernando, filho do seu Jesus, que eu conhecera bebê. Foi fácil reconhecer na hora os olhos clarinhos e a carinha redonda, muito parecido com minha amiga Liziane. 

Foi lindo circular outra vez naquela velha rua, reencontrando a minha criança interior. Agradeço e peço a bênção a todos os que me ensinaram tanto. Tia Tida, dona Mira, Preta, Sabiá, Gucha, Negrinha, Mimo, Tiano, Neco, Artur, Alemão, César, Serginho, Rosângela, Regina, Seu Artur, seu Donini e tantos outros que vivem em mim.


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