sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Movimento Social em paralelas




















Dois momentos importantes da luta social essa semana apontaram para uma realidade que se aprofunda: as lutas estão isoladas nas suas especificidades. Há uma perda quase que completa da ideia de totalidade, o que faz que com os movimentos caminhem em linhas paralelas, incapazes de se encontrar. 
O primeiro momento foi o da discussão do Projeto de Emenda Constitucional 215, que tenta levar para o Congresso Nacional a decisão sobre a demarcação das terras indígenas. Excetuando os grupos não-índios que tradicionalmente se alinham junto às lutas dos povos originários, essa tem sido uma batalha solitária dos indígenas. Há campanhas pontuais, abaixo-assinados, manifestações nas redes sociais, é fato. Mas a luta mesma, essa que se trava na realidade, não consegue juntar grupos distintos como os sindicalistas de toda a ordem, movimento sem-terra, movimento pela moradia ou pelo passe livre, para citar alguns exemplos. O apoio que todos dão é quase ritual, nos discursos. Não está na discussão sistemática do tema junto às categorias ou aos grupos específicos. 

Assim, quando se chega a uma situação como a de ontem (dia 12/12) em que o agronegócio se articula para garantir seus privilégios, burlando inclusive o regimento da Câmara Federal, lá estão apenas os índios e seus parceiros de sempre. Não se vê nos veículos de comunicação dos movimentos e sindicatos o debate profundo sobre o que significa essa PEC para os índios e para a nação brasileira. Caso a lei passe, será o Congresso que decidirá sobre as demarcações de terra, por exemplo. A raposa no comando, a considerar que na próxima legislatura mais da metade do congresso é formada por gente que é ou representa o agronegócio, o agrobussines, para ser mais exata. Bom, num primeiro momento serão os índios os atingidos, retirados de seus territórios, ou sem conquistar as terras que vêm ocupando historicamente. Mas, depois deles, a derrota chega na nossa cara, seja pela destruição ambiental que o agronegócio promove, seja pela superexploração dos trabalhadores, seja pela monocultura que arrasa a vida da terra. Assim, a luta dos povos indígenas é a nossa luta também, e precisa sair da retórica ritual. Assim como a luta das diversas categorias por melhores salários e condições de trabalho também deveria ser pauta e preocupação dos povos indígenas que estão organizados e já conhecem muito bem as agruras do capitalismo. O inimigo é o mesmo.

O segundo momento vivido essa semana foi a manifestação em frente à Câmara Municipal de Vereadores, na cidade de Florianópolis. Como mais da metade dos edis (14 de 21) está envolvida numa operação policial que investiga o suborno realizado por empresas para que os mesmos votassem a favor de seus interesses, o movimento social da cidade decidiu fazer um protesto, exigindo a punição dos envolvidos. Nada mais justo e necessário. Então, ali pudemos presenciar a participação de lideranças sindicais que andaram ausentes do debate sobre as lutas da cidade. Que não participaram das manifestações dos movimentos comunitários que até então gritavam, solitariamente, contra o absurdo da aprovação do Plano Diretor,  num final de dezembro, como agora, sem que nenhum vereador soubesse o que estava votando. Naquele triste dia, lá estavam apenas os representantes das comunidades envolvidas com o Plano. 

De fato, ao logo dos sete anos em que a cidade viveu, entre atropelos, a discussão do Plano Diretor, muito pouco se viu a intervenção do movimento sindical, embora as categorias específicas também vivam, sofram e desfrutem a cidade. Faltou ao sindicalismo local o debate sistemático com seus filiados sobre a importância da participação no Plano Direito e nas lutas por uma cidade boa de se viver. O resultado foi a ação dos movimentos de bairro e populares isolados que, a despeito de sua valentia, não conseguiram vencer a opinião pública, colonizada que foi pelos meios de comunicação. No dia da votação do Plano, as poucas pessoas que compareceram em luta no plenário da Câmara acabaram agredidas pela polícia, impedidas de entrar no recinto e ainda foram chamadas de "baderneiras" pela mídia local. Os atrasados de sempre que querem barrar o "progresso" da cidade. 

Agora, no rastro da estrada aberta pela mesma mídia que criminaliza os movimentos, sindicatos e movimentos reivindicam a pauta do "contra a corrupção". Uma mobilização válida e importante nesse momento em que os interesses da cidade, mais uma vez são tripudiados. Mas, insuficiente.  Primeiro, porque, em sã consciência, ninguém pode ser a favor da corrupção e ela mesma não é um ente. Ser contra essa prática - que é intrínseca ao sistema capitalista -  é algo óbvio. O que temos de tratar de incorporar é a luta a favor da cidade e da população, contra as práticas criminosas dos vereadores que, em última análise, deveriam representar os interesses dos cidadãos.

Mas, a Câmara de Vereadores, como em nível nacional, a Câmara dos Deputados, não são espaços de representação popular. Em Florianópolis, entre os 21 vereadores, apenas três têm se colocado para além dos interesses particularistas, pensando a cidade como um todo. E, em Brasília, dos 503 não deve chegar a 50 o número dos que realmente pensam no país como uma totalidade. Os demais estão a representar interesses muito específicos, geralmente, os dos seus financiados de campanha. 

Assim, é chegada a hora de os movimentos populares e sindicais assumirem pautas conjuntas, totalizando a compreensão sobre a realidade. A reforma agrária sozinha não dá conta da mudança, assim como aumento salarial de uma ou outra categoria não muda a vida. O que vai transformar a existência de todos nós - classe trabalhadora - é a mudança desse sistema, o fim da violência e da exploração que o capital impõe sobre a maioria. Logo, cada luta travada pelo campo dos trabalhadores, deve ser a nossa luta. A batalha por condições de trabalho, a reforma agrária, moradia, saneamento, planos diretores das cidades, luta anti-manicomial , a batalha das mulheres contra o machismo, dos negros contra o racismo, dos índios por território, dos desempregados por vida digna, passe livre, tarifa zero, universidade gratuita e de qualidade, enfim... Tudo isso é pauta nossa e deve ser tratada como tal. Esses são temas que têm de estar - totalizados, discutidos na sua universalidade - na agenda diária dos movimentos e sindicatos, batidos e rebatidos junto aos seus filiados e parceiros. 

A nossa luta é contra o capital. Sozinhos, nas nossas batalhas específicas, não vamos muito longe. No rumo das palavras do velho companheiro el Che: se há um irmão sofrendo injustiça, somos companheiros. E somos de fato, na luta real, concreta e cotidiana. Esse ainda é o nosso desafio como esquerda e como classe trabalhadora. Cada um, com seus recursos, colocando a lenha na fogueira unificada da transformação. Ou isso, ou seguiremos como as linhas paralelas, caminhando separadas rumo ao infinito. Não temos tempo de esperar pelo encontro num lá na frente nunca chegado. A hora do encontro é agora. Com os índios, com os negros, com as mulheres, com os desempregados, com os moradores de rua, os loucos, as putas, os velhos, os trabalhadores, os sem-terra, os sem-teto, os que lutam por um tempo novo. 

Divergências há, e devem ser reconhecidas  discutidas à exaustão, mas também precisam ser transcendidas em nome da Eko Porã, uma vida boa e bonita para toda a classe trabalhadora.  

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Já está pronto o presépio




Tenho gravada nas retinas e no coração as imagens dos natais da minha infância. No início do mês de dezembro minha mãe começava a preparar a construção do presépio. Era uma tradição. Nós, os três filhos, participávamos organizando os personagens da famosa noite em que nasceu Jesus. A família, os bichinhos, os pastores, os reis magos, a estrela. A coisa levava o mês todo. Havia a árvore de natal, mas ela era absolutamente secundária. Porque minha mãe reverenciava o menino e não o Papai Noel. Naqueles dias, no interior do Rio Grande, o capitalismo selvagem ainda não tinha chegado com toda a sua força. Depois, eu cresci, e segui a velha tradição. Todo o natal, monto o presépio com todos os seus personagens, e outros que vou agregando aos afetos. Passo o mês inteiro esperando pelo dia do aniversário desse adorável deus-menino.

Sempre há os que dizem que ele (jesus) não existiu, que é uma invenção de Paulo. A mim não importa. Tudo que sei é que as histórias que dele se contam, das coisas que ensinou, amparam minha prática de vida. Jesuânica. Por isso o natal segue sendo importante pra mim. Não que eu precise de um dia específico para lembrá-lo ou falar dele. Mas é um aniversário e é sempre bom celebrar.

Não gosto dessa onda de Papai Noel. Sua figura bonachona, de bom velhinho que vinha visitar as crianças na noite do grande advento perdeu o sentido. Santa Klaus não gostaria de saber o que fizeram dele. Agora, natal significa consumo, louco, desenfreado. Nas telas da TV tudo o que se fala é da porcentagem do aumento das vendas e nas ruas já começa o frenesi dos pacotes. Impossível andar pelo centro.

Eu não dou presentes no natal. Busco o refúgio interior e o encontro com a ideia de Jesus, o cara do aniversário. Também conspiro com as demais culturas originárias do hemisfério sul que celebram o solstício de verão. Faço minhas cerimônias, minhas rezas e celebrações. No dia do solstício, que é o 21, o sol parece ficar estacionado no céu. O dia é longo e a gente faz reverências àquele que nos dá calor e propicia a vida. Kuaray.

Então, natal é isso: festejar a vida. Celebrar com os que amamos a ideia de que o mundo precisa ser justo, que as riquezas devem ser repartidas, que as pessoas precisam ser solidárias e amorosas. É dia de comungar com os ancestrais, com a natureza, com a vida que vive. Dia de agradecer por poder estar neste lindo jardim. Se há algo a presentear, que seja essa ideia, de que o natal não é um dia para comprar presentes impessoais, impostos pelo mercado capitalista. O natal é dia de armarmos nosso presépio interior, com todos os personagens do nosso grande advento.

Aqui em casa ele já está montado, no meu "canto rojo" e em mim... Feliz Natal... Feliz Solstício... !!! 

E que venha o Pachakuti... 


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os vereadores de Florianópolis e rapinagem






Nosso mercado público, transformado para sempre...














Quem esteve na votação do Plano Diretor, em dezembro de 2013, no apagar das luzes do ano, sabe o que viu. No espaço dos vereadores, uma turba inquieta. Diante das falas de Afrânio (PSOL), Lino (PT) e Pedrão (PP) exigindo novas audiências públicas, uma vez que o projeto estava todo alterado pelo IPUF, os demais vereadores esbravejavam, balançavam as cabeças e sapateavam. Não houve acordo. O projeto haveria de ser votado. Não importava que o mesmo tivesse sido alterado, não importava que ninguém soubesse sobre o quê tratavam as quase 700 novas emendas, nem importava que não tivessem sido entregues os mapas. A ordem era aprovar. E assim foi, apesar dos protestos nas galerias. Com o voto contrário dos três citados vereadores, os demais votaram de olhos fechados, contra a população.

A pergunta que fica é: se votaram contra a população, a qual deveriam representar, estavam a favor de quem? A quem interessaria aprovar um Plano Diretor que descaracteriza totalmente a cidade, levando-a para um caminho sem volta, ao estilo Miami? A quem interessaria a possibilidade de construir espigões e seguir especulando com a paisagem e com as belezas naturais?

Pois a operação da Polícia Federal conhecida como “Ave de Rapina” aponta algumas respostas para essa nossa questão. Projetos de menor envergadura e de interesses menos custosos foram votados com o tradicional pagamento de propinas. Relações perigosas entre os vereadores e empresas, outra vez indo contra os interesses da população. Pagamentos variando de 5 a 100 mil reais para funcionários públicos e vereadores, fraudando contratos públicos e mudando as leis, garantindo vantagens para as empresas “amigas”.

Dos 23 vereadores, um está preso, 12 já foram indicados pela polícia e dois ainda estão sob investigação, o que mostra a “qualidade” da Câmara Municipal.

É fato que sempre me surpreendeu a eleição de determinadas pessoas, com número expressivo de votos. Figuras que nunca tiveram qualquer atuação comunitária, que nunca foram vistas em qualquer situação em que estivesse em jogo a vida da cidade. Ainda assim, lá estavam, eleitas para representar os cidadãos de Florianópolis. No rastro de boa parte das campanhas, o que conduzia eram as benesses, ou a simples compra de votos, para ser mais clara. No Brasil patriarcal, um favor, uma caçamba de brita, uma camiseta podem ser moeda de troca, sem maiores esforços.

- Por que votou no fulano?

- Ah, ele me deu tal coisa! – Ou: Ele é amigo do meu pai. Ou ainda: É meu amigão!

Mas, afinal, o que faz alguém que vende seu voto para vereador, ou que vota simplesmente por amizade? Pois bem, coloca na Câmara Municipal alguém que vai definir o destino da cidade, o que, em última instância decide os destinos de todos nós. Os vereadores, apesar do quem pensa a maioria, não é eleito para resolver o “nosso” problema pessoal de falta de empregou, ou o calçamento da “nossa” rua, ou a arrumação do “nosso” esgoto. Ele vai decidir sobre como a cidade vai ser no seu conjunto, incidindo sobre a vida de todos.

Foi assim com o projeto Cidade Limpa. Pode parecer uma coisa boba isso de tirar ou por um outdoor, ou a instalação de radares, que são os objetos da investigação policial. Mas não é. O projeto Cidade Limpa tem a ver com como a cidade se organiza, como enfrenta a criação de necessidades induzidas pela propaganda, como se relaciona com a lógica do consumismo. Os radares dizem respeito à segurança das pessoas no trânsito, podem significar a diferença entre a vida e a morte. São coisas sérias e importantes. E olha como foram tratadas? Como uma moeda de troca de favores. Um voto por dinheiro. Ou seja, muitos desses vereadores reproduzem neles mesmo a idêntica fórmula que usam para ganhar os votos. Tudo se resume a um lucrativo mercado no qual só eles saem ganhando.

Um ou outro realiza seus compromissos rituais, aprova um calçamento aqui, uma obra ali, para ficar bem com seus eleitores. Mas o que fazem por trás deles – e agora vimos que com lucro pessoal - é o que realmente influi na vida de cada um.

Outro dia vimos nas redes sociais a indignação de muitos moradores de Florianópolis com o novo Mercado Público, que agora, depois da licitação levada a cabo pelo prefeito César Souza Junior , está completamente descaracterizado. Empresas do tipo Bobs, ou de sorvete italiano, ocupam as portas que antes vendiam panelas, comidas típicas ou artesanato, coisas possíveis de serem desfrutadas por qualquer cidadão. A cara típica da cidade não existe mais naquele lindo prédio amarelo, agora um pastiche da cultura local, exposto apenas para os turistas que podem pagar até seis reais por uma bola de sorvete. Pois todo esse processo deveria ter passado pela Câmara de Vereadores. Não passou. E entre os “nobres” poucos levantaram a voz contra a forma atabalhoada como foi conduzida o processo. Omissão da maioria, calada pelos interesses.

Agora, feito o estrago, e expulsos os comerciantes que já eram patrimônio imaterial da cidade, as pessoas se dão conta do que perderam. Pois naqueles dias em que os movimentos sociais denunciavam o absurdo do processo, que não levou em consideração os aspectos culturais, a maioria apontava em acusação os que não queriam o “progresso” da cidade. E o progresso veio, pela omissão daqueles que deveriam ser os guardiões dos interesses da comunidade. O que fazer? Tudo foi destruído!

O mesmo se deu no processo do Plano Diretor, que haveria de ser investigado também. Os vereadores Lino, Afrânio e Pedrão eram apontados como os que queriam igualmente barrar o progresso da cidade, travando a aprovação do plano desconhecido, ou quem sabe muito conhecido pela maioria que o aprovou. O fato é que a vida da cidade toma outro rumo com esse plano. Bairros como o Estreito e o Saco dos Limões terão suas populações adensadas de maneira brutal, mudando radicalmente o cotidiano, com implicações na mobilidade e na cultura. E todas essas mudanças são provocadas pela ação dos vereadores que sustentam a irracionalidade que vem do executivo.

Agora a investigação sobre os componentes da Câmara está a todo vapor. Um ou outro acabará preso, outros se safarão, e a vida seguirá seu curso. Resta saber se a população de Florianópolis também vai seguir sua vida como se nada tivesse passado, como se não importasse muito um vereador cair na malha da corrupção. Tudo pode ser facilmente esquecido com algum novo escândalo.

Mas pode ser que esse caso sirva como uma pedagogia, a construção de um caminho. Pode acontecer de as pessoas começarem a entender que o voto num vereador é coisa que tem reflexos duradouros na vida de todos. Que o voto não pode ser comprado por um simples churrasco, ou uma carrada de areia. O vereador precisa ter o compromisso não com a rua ou o bairro, mas com a cidade inteira. Ele vai definir coisas que fazem parte da grande política, que colam no cotidiano da gente, que modificam as paisagens, que mudam uma cultura, um modo de vida. Imaginem se os vereadores alteram o zoneamento de um lugar de residencial para comercial. Muda tudo! A coisa é muito séria. É claro que o voto num vereador não define a vida, mas nesse regime representativo no qual vivemos têm a sua importância. Daí o cuidado.

Não tenho muitas ilusões quanto às punições aos envolvidos na operação Ave de Rapina. Como o que aconteceu na famosa “moeda verde”, quando empresários conhecidos foram envolvidos e nada aconteceu, com eles aí, circulando nas colunas sociais, como pessoas nobres e boas. Mas tenho a ilusão de que as pessoas possam pensar sobre as coisas e começar a perceber quem de fato representa os desejos da cidade na Câmara de Vereadores. E quando os hoje vereadores Lino e Afrânio, os quais têm minha confiança, defenderem isso ou aquilo, possam ser ouvidos como aqueles que estão discutindo a favor da cidade, da maioria da população. E não como uns moleques que querem “atrasar” o progresso de Floripa.

Uma cidade desenvolvida não é aquela que tem os prédios mais altos, o trânsito caótico, muitas indústrias e outros empreendimentos monumentais para uso quase exclusivo dos ricos.  Uma cidade desenvolvida é aquela que é boa para se viver, que mantém viva a cultura, que respeita o outro, que garante uma movimentação fácil e uma existência segura.


Sigo acreditando que essa vida da gente é um largo aprendizado e que, um dia, haveremos de ficar livres da rapinagem, seja dos políticos ou dos poderosos. Mas, para isso, é claro, precisaremos bem mais do que aprender sobre o predador voo da ave. 



domingo, 30 de novembro de 2014

Passeando por Novgorod


























Novgorod é a cidade mais antiga da Rússia. Contam que já exista desde 862 antes do presente, tendo sido fundada por grupos eslavos e húngaro-finlandeses. Por conta disso é considerada, junto com Kiev, capturada em 882, do império bizantino, no outro lado extremo, o nascedouro do estado russo. Para o povo, Novgorod seria o pai, Kiev a mãe e Moscou o coração. 

É ali que está a catedral mais antiga de toda a Rússia, Santa Sofia, o mais importante templo cristão do país, construído em 1045. A conversão do povo russo ao cristianismo ortodoxo, de tradição bizantina, se deu em 988 antes do presente e desde então tomou conta de todo o território. É por isso que o que mais se vê pelo país são as belíssimas igrejas, todas com luminosas cúpulas, ao estilo de Bizâncio. 

A bonita cidade de Novgorod também tem um linda história de lutas. Foi ali que se deu a primeira revolução da história da nação, em 1136, quando a população decidiu que não iria mais aceitar ser dirigida por um governante que estava em Kiev. Toda a família que representava o czar foi expulsa da cidade e foi criada a assembleia do povo. A cidade era chamada de República de Novgorod, pois qualquer decisão tinha que passar por assembleia. Seu poder era tão grande que havia um ditado entre o povo: “quem pode contra Deus e a Grande Novgorod”?

Localizada na foz do rio Volkhov, que liga a Rússia ao Mar Báltico, ela era um grande centro comercial e conquistou rapidamente a sua condição de cidade mais moderna da antiga Rússia. Foi lá que os primeiros textos em língua russa foram escritos, em 1077, e esse cuidado com a cultura foi o que ajudou o povo a enfrentar a ocupação mongol. O fato de ser tão rica fez com que a cidade comprasse a liberdade e continuasse sendo “russa”. 

No final do século XV, Novgorod acabou sendo anexada ao principado de Moscou, e a Rússia ganhou um grande império já formado na parte oriental. Por outro lado, a queda da cidade acabou marcando também o fim da democracia. Já não havia a assembleia do povo e as decisões partiam outra vez de um lugar distante, desta vez, Moscou. O mais simbólico dessa derrota foi a perda do Grande Sino, da catedral de Santa Sofia, que os moscovitas levaram embora. Sem ele e sem a assembleia, Novgorod perdeu seu poder.  Mesmo assim, seguiu sendo uma cidade importante, suscitando inveja aos czares. Tanto que em 1550, Ivan, o terrível, devastou o lugar e transferiu grande parte das propriedades para os monges.

Ao longo dos anos Novgorod sofreu novas invasões e percalços. Mas, na contemporaneidade, a mais violenta ocupação foi a dos nazistas, durante a segunda grande guerra que é chamada pelos russos de “Guerra Patriótica”. Ao longo de suas estradas podem-se ver centenas de marcos, indicando momentos de luta do povo contra os alemães. Naqueles dias a população chegou a afundar os sinos da catedral Santa Sofia no rio Volkhov para evitar o roubo e a profanação. Também foram escondidas as estatuas e objetos sacros. Mesmo hoje, quando um camponês ara seus campos, é possível encontrar lembranças dos dias terríveis da guerra, tais como bombas, armas, objetos militares. É impossível circular pela cidade sem se deparar com essas amargas recordações, as quais os moradores fazem questão de preservar. Afinal, a cidade foi praticamente destruída durante a guerra e depois reerguida pela força de sua gente.

Atualmente, muito do seu patrimônio turístico está centrado na arquitetura das suas antigas catedrais, entre elas a velha Santa Sofia, que segue resistindo. Também está totalmente restaurado o seu kremlin, que é a fortaleza onde fica o centro administrativo e político da cidade.

Hoje, com a queda do regime soviético, a religião assoma com força em Novgorod, com em todo o país. Assim, as igrejas têm sido restauradas e recuperadas para os cultos. Durante o governo soviético, elas foram usadas como espaços administrativos, celeiros e até estrebarias. Esse foi, no dizer dos mais velhos, o grande erro cometido pelos “comunistas”. Segundo eles, o regime soviético foi muito bom para o povo do campo, mas deveria ter respeitado a religião. “Nossos templos foram profanados. Mas, agora, estamos recompondo cada um deles”.

Na verdade, a igreja russa, antes da revolução de 1917, era tão poderosa, politicamente, quanto o czar. Tanto que na falta dele quem tomava as decisões era o arcebispo maior. Isso se espraiava para cada cidade ou região. A decisão de varrer as igrejas do imaginário russo por parte do regime soviética teve muito a ver com isso, já que igreja e czar tinham o mesmo peso. 

Hoje, sem czar, quem manda na Rússia é o deus mercado, e as mudanças já se percebem. O campo voltou a ser espaço de misérias, as igrejas retomam o poder, articuladas ao estado e o futuro não se sabe o que será. De qualquer sorte, passeando pela beira do rio Volkha, o que se pode sentir é a força das gentes, que parecem sempre preparadas para enfrentar qualquer desafio.


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O voto na Dilma e alguns equívocos de interpretação



O anúncio dos novos ministros do próximo mandato de Dilma Roussef vem gerando, outra vez, uma onda de violências e agressões nas redes sociais. Mesmo entre companheiros de esquerda que, agora, cobram uma posição daqueles que ofereceram à presidente o tal do "voto crítico", contra o ex-governador de Minas, Aécio Neves.

A primeira coisa a esclarecer é que não existe voto crítico. Quem inventou esse conceito? Existe o voto, e pronto. O voto é um dos momentos da nossa democracia representativa e aquele ou aquela que decide votar em alguém e não nulo, simplesmente vota. Não há como embutir criticidade a esse voto.

Pelo menos não foi o que aconteceu nesse segundo turno das eleições. Aqueles e aquelas que, no campo da esquerda, decidiram não votar nulo tinham suas razões.  Um bom número acreditava que com o "susto" dado pelo crescimento da figura do Aécio levaria a presidente e seus aliados mais para a esquerda, uma vez que haveria de firmar alguns compromissos com esses grupos para garantir o voto. Outros, menos ingênuos, votaram na Dilma por saber que, de alguma forma, esse governo seria mais sensível às emergências do povo mais pobre, ainda que não saísse da borda da direita.

Terminada a contenda, aqueles que conseguem fazer um mínimo de análise - aí sim, crítica - da realidade, sabem que não podem esperar nenhuma mudança estrutural, nenhuma reforma mais ousada, desse governo que agora inicia seu segundo mandato. Infelizmente, apesar de vivermos num regime presidencialista, nossos últimos presidentes nunca usaram desse poder para impor suas propostas. Como avalia o professor de Economia, Nildo Ouriques, há, por parte do executivo,  uma equivocada dependência do Congresso Nacional e uma busca de "governabilidade" a partir de acordos que, obviamente, apenas atendem a parcelas poderosas do jogo político. O povo está excluído desse momento.

O que parece é que os mandatários temem um novo 64, já que, naqueles dias, apoiado no desejo popular que havia rifado o parlamentarismo, preferindo continuar no regime presidencialista, o então presidente João Goulart decidiu - ouvindo a maioria - iniciar um processo de reformas. Não eram propostas comunistas, nem mesmo socialistas. Eram reformas dentro da estrutura burguesa. E ainda assim teve o rechaço violento da minoria que sempre constituiu a classe dominante. Vindo dali, o golpe.

Talvez venha desse temor a fraqueza presidencial, que prefere aliar-se ao que há de mais podre no tabuleiro do poder.  E é tão tolo esse medo que, mesmo servindo aos interesses da classe dominante, como já fez Lula e agora Dilma, ainda assim, os velhos e os novos coronéis da política conseguem colar nesse governo a etiqueta de "comunista" e "bolivariano". Nada mais fora de propósito. 

O governo que Dilma começa agora a montar para o segundo mandato vai lidar com um Congresso Nacional ainda mais atrasado e conservador. Poder quase supremo da bancada ruralista, grande bancada evangélica fundamentalista, poucos deputados e senadores de esquerda. Esses, aliás , conformam uma minoria quase ritual. Muito pouco poderão fazer - desde dentro - para que avancem as pautas populares. E, justamente por conta disso, Dilma e seus aliados, procurarão ajoelhar diante da ideia que sempre se manteve na condução dessa nação: progresso para uma minoria, desenvolvimento para os ricos e algumas migalhas para os pobres - o suficiente para que não se movimentem.

Poderíamos ter apostado no  "quanto pior, melhor", votando no PSDB, que representa a velha direita e sonhar com o levante das massas. Mas, isso seria também ingenuidade. O governo petista domesticou boa parte do movimento social, houve um retrocesso no campo da luta organizada. E esse campo sempre foi  um grande componente fomentador da rebeldia. Haveria que ter um longo trabalho de reconstituição da radicalidade perdida, para evitarmos perder energia em conflitos pontuais e desorganizados.

Esse é o trabalho que nos espera, aos da esquerda. Haveria que realizar longas análises de autocrítica, compreender o que nos divide e definir um programa de luta com aquilo que nos une. Um longo tempo de medidas conservadoras e até reacionárias aponta no horizonte. Podemos ficar  atirando pedras nos companheiros que votaram na Dilma, ou podemos reconstituir o bonito tecido de uma esquerda revolucionária. Só que esse não é um trabalho para ser feito dias antes das novas eleições. É trabalho para uma vida.

Como exigem alguns companheiros nas redes sociais: Cadê os que deram o "voto crítico"?, eu me apresento e  assumo meu voto. Mauro Iasi no primeiro turno e Dilma, no segundo. Mas, dei meu voto sem estabelecer nenhuma ilusão programática. Não foi voto crítico, foi voto. Esse governo não me representa. Votei porque entendi que era minha obrigação evitar o pior, principalmente no que diz respeito às políticas sociais compensatórias que, de alguma forma, tiram dos mais pobres a indignidade da fome. Isso não impede que eu agora faça uma autocrítica, observando que o que vem por aí pode não ser o "menos pior". Talvez tenha errado - isso ainda está sujeito à análise  -  mas considero que a participação política de quem tem compromisso com seus país, com o mundo com o qual sonha, não se esgota no voto. Essa participação é cotidiana, na rua, no movimento, no partido, no grupo político. E, nesse compromisso sigo atrelada.

Estamos numa encruzilhada. E é nossa responsabilidade palmilhar o caminho da transformação. Para isso, temos de trabalhar em alguma medida de unidade. Um desafio, para partidos e movimentos. E, como dizia Simón Rodríguez, essa é nossa hora histórica: Ou inventamos, ou erramos! 


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Na rodoviária de Porto Alegre



Novembro de 2014. Ali estava eu na rodoviária de Porto Alegre. Chinelo havaiana preto, um vestido colorido, colares e pulseiras multicores, aquele jeito meio hippie de ser. Esperava a hora de volta para casa. Na mesa, acompanhava-me uma Polar, bem gelada. Olhava, distraída, o passar das gentes. Os anos se sucediam e nada ali parecia mudar. Tudo estava como há 40 anos, quando eu pisara naquela rodoviária pela primeira vez. Era 1974, eu viera com meu pai para conhecer a capital. Ele a trabalho e eu para visitar uma amiga que se mudara há pouco tempo. Pois naquela tarde de quase verão, no vai e vem das pessoas, parecia ver a mim mesma descendo do ônibus de São Borja. Cabelo longo e cheio, chinelo de couro e aquele ar de quem busca descobertas. 

Não foi a mesma cara do ano de 1977 quando ali arribei de novo, desta vez acompanhada apenas da mãe, minha irmã mais velha e o irmão caçula. Naqueles dias vínhamos, não para conhecer a capital, mas para realizar uma longa e dura travessia até Minas Gerais. Meu pai havia perdido tudo o que tinha, enganado por um “amigo”, seu sócio numa bomboniere. Fora então buscar horizontes nas terras do norte, onde tinha um irmão. E, naquele ano, nos tocava, ao restante da pequena família, subir o mapa em busca de vida melhor.

Carregávamos duas malas grandes e uma caixa com a máquina de costura da minha mãe. Era tudo o que nos restara. Lembro-me de mim. O mesmo cabelo armado, uma blusa azul, velha, de crochê, uma calça jeans desbotada e as indefectíveis havaianas. Os olhos estavam assustados, mas curiosos. Sempre fui boa com mudanças.  

Agora, em 2014, eu estava na mesma velha rodoviária que tão pouco mudara. Podia me reconhecer no vidro da lancheria. A guria de blusa de crochê azul olhava para mim, com os olhos ainda cheios de susto e curiosidade. Sorri para ela. A vida fora boa para nós. Desde aquele triste 1977, quando abandonamos tudo pela promessa de Minas, quantas águas rolaram. Quantas dores, lágrimas. Mas também quantos risos e conheceres.

Sorvendo a Polar eu voltei a sorrir para mim mesma. “Gosto dessa mulher”, murmurei. Guerreira, braba, de nariz empinado e olhar inquieto. Mas, nos rastros das minhas havaianas bem sei o que já passei. Por isso a cerveja gelada me caia tão bem, como a celebrar uma vida plena. Tive todos os apertos, mas fui feliz. Abri meus caminhos a facão, sem reclamar. Construí uma vida.
Tenho cada coisa que sonhei. Um homem para amar, bichos para cuidar, uma caneta, uma folha de papel e todas essas histórias que me pulam na cara a cada tanto. Como aquela mulher que, do nada, arrancou de si as calças, o bustier e saiu gritando, só de calcinhas, pela rodoviária. Que coisa esse Porto Alegre...

Os garotos da lanchonete saíram às pressas, com os celulares, e eu, algo cansada, apenas gritei ao que sobrara: 

- Quirido, mais uma Polar!

Ah, o quanto gosto da pessoa que sou, toda feita de caminhos. E o quanto gosto de fruir esses momentos estelares, plenos de felicidade. Foi aí que o garçom bonito colocou na mesa o prato com o “à la minuta”.

Bueno, nada mais a dizer. Só esse sentimento de pura gratidão. 


domingo, 23 de novembro de 2014

A luta pela moradia

Fincada bem no centro da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a Comunidade Autônoma Utopia e Luta tem sido um exemplo para a luta pela moradia em todo o país. Sua história começa no ano de 2005, quando organizadamente algumas famílias decidiram ocupar um prédio abandonado do INSS, durante o Fórum Social Mundial. A ocupação resistiu, prosperou e hoje é uma cooperativa que inclusive obteve regularização fundiária pelo Programa Crédito Solidário do governo federal. Conversamos com Eduardo Solaris, que vive na comunidade e participa de todo o processo de organização.