quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Greve dos Correios segue, sem negociação



Nessa quinta-feira (13.02), bem debaixo do sol do meio dia, os trabalhadores dos Correios caminharam pelas ruas do centro de Florianópolis. Eles estão em greve desde o dia 30 de janeiro, mas, ao que parece, o governo está pouco se lixando para suas reivindicações, uma vez que sequer abriu mesa de negociação. Por outro lado, a direção geral da ECT imediatamente acionou a justiça para que o movimento fosse declarado ilegal e abusivo. Ainda assim, os trabalhadores seguem parados, já que o tribunal do trabalho remeteu a discussão para a comissão que discute o dissídio coletivo. Os trabalhadores deflagaram greve por conta das mudanças que a ECT fez no fez no plano de saúde. Até agora, a assistência da saúde dos trabalhadores tem sido feita pela própria empresa. Mas, com as mudanças propostas, eles terão de pagar por um plano privado, terão os pais excluídos do benefício e ainda terão de pagar co-participação por cada procedimento que fizerem. 

Outra reivindicação diz respeito ao horários das entregas. Desde há anos que a ECT acordou estudar a troca de horário para o trabalho dos carteiros, que atualmente é à tarde (do meio-dia às quatro), para o período da manhã. Segundo o diretor do Sindicato em Santa Catarina, Hélio  Samuel, a entrega na parte da tarde tem sido um tormento para os trabalhadores, principalmente agora no verão, quando ondas de calor tornam o dia um caldeirão. “Esse é o pior horário para exposição ao sol, comprovado cientificamente. Temos muitos companheiros com câncer de pele. Isso não é brincadeira.”

Talvez boa parte das pessoas das grandes cidades não tenha sentido os efeitos da greve, uma vez que nos dias atuais pouco utilizam os correios, a não ser para receber contas a pagar. Mas, nas pequenas cidades e entre as comunidades empobrecidas de todo o país, o correio ainda é a única opção de comunicação com parentes distantes, bem como o caminho para o envio de encomendas. E, apesar de muitos dos serviços dos correios já estaram privatizados, a entrega das correspondências e das encomendas ainda é feita por trabalhadores públicos. Pois são esses que, hoje, lutam pela garantia da assistência à saude e por melhores condições de trabalho.

Até 2011 a Empresa Brasileira de Correios era uma empresa pública que detinha o monopólio de todo o serviço postal. Mas, uma medida provisória, mais tarde transformada em lei, acabou com o monopólio e possibilitou a entrega de vários serviços para a iniciativa privada. Naqueles dias, o presidente dos Correios, Wagner Pinheiro de Oliveira, defendia a ideia, alegando que era necessário “modernizar” a empresa, justamente porque o serviço de entrega de correspondência tradicional vinha perdendo espaço para novas tecnologias. “A aprovação da MP possibilitará a transformação dos Correios em uma grande empresa de logística integrada, que poderá oferecer serviços de qualidade a todos os cidadãos brasileiros, objetivo do governo federal”, dizia. Essa modernização, é claro, veio para beneficiar o setor privado que hoje, inclusive, detém a parte do leão, que é o serviço de Sedex, o mais caro do país. Durante o processo de discussão dessa lei, apenas os trabalhadores dos Correios gritaram contra. A sociedade não se manifestou. Muitos sequer souberam que os Correios estavam se privatizando. 

Compreenda como caminhou a privatização dos Correios

Foi o decreto lei 509, de 20 de março de 1969, assinado pelo presidente Costa e Silva,  que transformou os Correios numa empresa pública, responsável pelo monopólio dos serviços postais em todo o território nacional. A sede era na capital federal, com regionais que, na prática , eram as que distribuiam as correspondências, as encomentas e todo o restantes do serviço. Como  uma empresa ligada ao Ministério das Comunicações, o Correio estava submetido a todas as regras orçamentárias federais, sem interferência de capital privado. As franquias postais e telegráficas eram permitidas, mas ficavam totalmente submetidas ao Conselho de Administração Central. 

A lei 6.538, editada em junho de 1978, pelo presidente Ernesto Geisel especifica melhor o que são os serviços postais, listando todas as atividades realizadas pelo correio, garantindo ao cidadão brasileiro o direito de enviar e receber correspondências e encomendas. Segue definindo que apenas a empresa pública pode prestar esse serviço, embora estabeleça algumas novidades como a possibilidade a exploração de publicidade em objetos de correspondência. Fogem do monopólio estatal apenas o transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, o famoso malote, e o transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento. No mês seguinte, um novo decreto – 83.726 - define o estatuto da empresa, sua organização e atribuições. 

Em 1989 é a vez do presidente José Sarney modificar a lei, acrescentando, através de um decreto, regras para licitação. Em 1995, o decreto 1.390, assinado por Fernando Henrique Cardoso, altera algumas regras com relação a cargos e especifica atribuições aos mesmo. Em setembro de 1997, outro decreto (2.326), incorpora novas atribuições ao cargo de presidente e diretores de regionais.

Em maio de 2011, o decreto 7.483, assinado pela presidente Dilma Roussef, dá uma guinada na história dos Correios revolgando todos os decretos promulgados desde 1970. Na prática, define um novo Estatuto para a empresa que, a partir de então, libera algumas atividades para exploração privada, além de poder firmar parcerias comerciais que “agreguem valor” à marca. É retirado definitivamente dos Correios o monopólio dos serviços postais. Contraditoriamente, a lei define um “Estatuto Social” aos Correios, ao mesmo tempo em que abre a porta para a entrada da iniciativa privada no setor.

Em setembro do mesmo ano, O Congresso Nacional aprova a lei 12.490, que trata de duas  questões importantes. Uma diz respeito a política de abastecimento e a outra está relacionada aos Correios. Vários pontos são acrescentados com relação aos serviços postais. Finalmente, no ano de 2013, no mês de maio, o decreto 8.016, define um novo estatuto para a empresa, revogando assim o promulgado em 2011.

No novo estatuto também não se vê mais a palavra “monopólio”, a qual acompanhou todos os decretos e leis desde 1969. Prevê exclusividade em alguns serviços e permite a contratação de subsidiárias. Apenas o serviço de entrega de correspondência (carteiros) ainda é vedado às empresas privadas. Muito bom negócio para o empresário que pode lucrar à vontade com o serviço, enquanto o estado segue bancando a entrega. E assim foi regularizado o serviço de Sedex – que hoje é privado e que encareceu o envio de encomentas de forma astronômica. 

Mas, para garantir um serviço de encomendas a preço menor o governo instituiou o PAC, definido como um serviço da linha econômica. Nele, encomendas de 500 gramas até 30 quilos podem ser enviadas com tarifas bem menores que as do Sedex. A diferença é que demora mais de 15 dias para chegar. Não bastasse isso, nos postos privados de Correio ainda há funcionários que se recusam a enviar encomendas que não estejam embaladas nas caixas específicas de empresa, que custam de três a 20 reais, mesmo que isso não seja obrigatório. As pessoas, desinformadas, acabam cedendo à venda casada.  É bom que saibam que o documento que cria o PAC especifica no item 7 - Toda encomenda deverá ser acondicionada e fechada pelo remetente em embalagem que resista ao peso, à forma e à natureza do conteúdo, bem como as condições de transporte. Isso significa que não necessariamente precisa estar numa caixa.  

A luta por serviço de qualidade

Para os trabalhadores não tem sido fácil ver a deteriorização dos Correios, empresa que até bem pouco tempo era considerada um exemplo de confiabilidade e pontualidade. Hoje, conforme pesquisa divulgada pela ONG ProTeste, as correspondências não-comerciais chegam a atrasar em até 75% dos casos. O que mostra que houve uma priorização para o serviço postal empresarial, enquanto que as pessoas mais simples, que ainda precisam do Correio para se comunicar, amargam os maus serviços.

Agora, não bastassem todos os problemas decorrentes do sucateamento da face pública dos Correios, também os trabalhadores estão sendo entregues ao sistema privado. E é por isso que estão em luta. “Nós amamos o nosso trabalho, queremos ver as pessoas bem atendidas. Mas, tudo parece só estar piorando”. 




terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A cidade se movimenta na luta por terra, trabalho e teto

Foto: Rubens Lopes

No dia sete de fevereiro, sob um sol escaldante, mais de mil pessoas caminharam desde o trapiche em frente ao Koxixos, até o Fórum da capital. Trajeto todo realizado no âmbito de um dos espaços mais caros da cidade: a Beira Mar. As gentes que marchavam eram moradoras da Ocupação Amarildo de Souza - nascida em 16 de dezembro de 2013, nas margens da estrada que vai para a praia de Canasvieiras - mais os apoiadores, estudantes, sindicalistas, militantes sociais. Carregavam faixas, nas quais expunham suas reivindicações - terra, trabalho e teto. Dos grandes prédios da Beira Mar, a elite espiava, entre assustada e perplexa. Havia muito tempo que não via mais esse tipo de "demanda" por ali. No geral, as questões envolvendo terra em Florianópolis, desde há anos estão circunscritas a lutas pontuais, tais como a da chamada "Favela do Siri", nos Ingleses, ou a recente ocupação Palmares, na Trindade, sempre tratadas como casos excepcionais, sem maiores repercussões na mídia vinculada ao poder.

Então, o que faz da Ocupação Amarildo um elemento bem mais perturbador, capaz de atrair uma violenta campanha de desqualificação e repúdio por parte das velhas bocas alugadas da mídia? Seria o fato de ali estarem hoje mais de 700 famílias, unidas num sonho semelhante? Seria porque estão em terreno de gente muito graúda? Ou seria porque a cidade definitivamente entra num outro ponto de viragem no que diz respeito ao tema da terra? Para responder essas questões temos de voltar na história...

1985 - ondas de migração

Até o final dos anos 70 Florianópolis era uma pequena cidade que abrigava o mundo administrativo do estado. Conviviam os funcionários públicos, pescadores, pequenos produtores, alguns engenhos de farinha. A vida urbana se concentrava na região da matriz e do mercado, e as regiões praieiras era totalmente rurais. Mas, os anos 80 trouxeram uma novidade em todo o país. A ditadura se esfacelou e o Brasil rural começou a migrar. Desde o campo emergiam as massas de gente pobre, expulsas da terra por não serem proprietárias. Sem trabalho nas cidades do interior, sem terra e sem esperanças, o único farol visível eram as capitais ou as grandes cidades.

A cidade de Florianópolis começou a receber essas levas de migrantes a partir de 1986. Na época, o prefeito era Edson Andrino, primeiro prefeito eleito depois da ditadura militar. Era do PMDB, portanto dentro do escopo progressista. Nativo da ilha, Andrino mostrava preocupação com as famílias que chegavam sem qualquer apoio. Por conta disso, quando surgiu - a partir de uma proposta do padre Wilson Groh - a ideia de fundar um Centro de Apoio ao Migrante, a prefeitura decidiu apoiar. Naqueles dias e até o ano de 1989, chegavam na ilha, de 10 a 15 famílias por dia. Era uma avalanche. A cidade estava despreparada para tanta movimentação. E foi diante desse fenômeno humano que nasceu o Caprom (Centro de Apoio e Promoção do Migrante), uma iniciativa do então jovem padre Wilson Groh e da irmã Ivone Perassa. Com um pequeno grupo e contando com ajuda da prefeitura, eles montaram uma estrutura para receber essa famílias que aportavam na ilha sem nada mais do que a vontade de trabalhar e participar do sonho do progresso.

Nos anos de 87 e 88 a cara de Florianópolis mudou. De cidade provinciana, com pacatos funcionários públicos, passou a uma ebulição de luta pela terra. Com a chegada de centenas de novas famílias era preciso garantir espaço de moradia. Mas, já naqueles dias, o aluguel era proibitivo para os mais empobrecidos. E, organizados, eles foram ocupando espaços na beira das estradas ou em vazios urbanos. Algumas dessas ocupações fizeram história como a do antigo Pasto do Gado (hoje, Chico Mendes), onde mais de 200 famílias levantaram barracos de lona e insistiram em garantir ali, a sua morada. Também foi nesse período que nasceram as ocupações da Ilha Continente, Santa Terezinha, a beira da Via Expressa e outras mais. Em dois anos de migração vertiginosa, a cidade contabilizou 12 comunidades de ocupação. E todo mundo fazia a luta pelo espaço onde morar, e pela estrutura do lugar.

Foi nessa conjuntura que em 1988 aconteceram as eleições municipais. A direita, representada pelos então PDS e PFL, há muito vinha se articulando para dar outra caracterização para a cidade. Aquele número exacerbado de "gente pobre" que chegava não era visto com bons olhos. Havia a perspectiva de alavancar o "progresso" via indústria do turismo. O candidato desse grupo era o ex-prefeito biônico da época da ditadura, Esperidião Amin, que apontava no topo de uma campanha denominada de "Florianópolis vale a pena", assumida também pela elite local. Amin venceu as eleições com 48,2% dos votos, e com ele iniciava-se o "leilão" que iria descaracterizar as velhas comunidades do interior da ilha, a partir daí transformadas em paisagens especuladas. E começava também um ano de grandes lutas do movimento popular.

1989 - as batalhas pelo direito de morar

Com a explosão imobiliária exacerbada pelas campanhas nacionais que mostravam Florianópolis como um paraíso, também mudou a vida do povo nativo que até então vivia pacatamente à beira-mar. Atraídos para as armadilhas da "vida moderna" eles foram vendendo as terras, que aumentavam de valor. Por que morar num casa próxima ao mar, que dava tanto trabalho para cuidar, se era possível viver num apartamento acarpetado e com ar condicionado? O mundo moderno os aguardava. E, assim, onde antes pastavam as vacas e rodava a mó do moinho foram crescendo os hotéis, os condomínios, os prédios.

No que diz respeito aos migrantes, aqueles que chegavam com muito dinheiro para consumir os melhores lugares da ilha eram muito bem-vindos. Mas, os que aqui chegavam em busca de melhoria de vida, foram sendo rechaçados. Em vez de um grupo de acolhimento, como era o Caprom, o que se tentava era mandar de volta os pobres. E os que já tinham chegado desde 85 e amargavam as ocupações, esses haveriam de pagar o preço mais alto por querer compartilhar desse lugar que a propaganda alardeava como uma cidade que "valia a pena".

Então, quando Amin começa seu governo em janeiro de 1989 Florianópolis tinha 12 comunidades de ocupação, envolvendo 783 famílias, somando quase quatro mil pessoas. Sem opção de moradia, essas famílias de migrantes tinham armados seus barracos na Via Expressa, em áreas do continente e em alguns morros, tudo próximo ao centro da cidade. Como famílias pobres, todos tinham empregos que se interconectavam com a vida no centro: papeleiros, carpinteiros, pedreiros, faxineiras, garçons, empregadas domésticas, empregados do comércio. E foi assim que Florianópolis conheceu as primeiras grandes levas de luta pela terra da pós-ditadura. A derrubada dos barracos na Via Expressa, com as máquinas destruindo os poucos pertences das pessoas foi um dos momentos mais tristes e marcantes dessa batalha. As demais ocupações resistiam e faziam luta. Ocupavam a prefeitura, a Câmara de Vereadores, as ruas. Nas reuniões realizadas com o prefeito, as famílias eram obrigadas a ouvir a indefectível pergunta que Amin fazia, para desqualificar os manifestantes: "Tu és de onde, mesmo?". Já era o germe de todo o preconceito que a cidade foi criando com relação aos "de fora". Mas, que fique claro, os de fora sem dinheiro.   Aquele foi um tempo de grande efervescência e visibilidade do caráter excludente desse novo modelo de cidade. No mês de julho de 1989 a cidade viveria a I Romaria dos Sem-Teto, uma caminhada história que reuniu centenas de pessoas na luta por moradia e vida digna.

Anos 90 - conquistas

Com toda a explosão das lutas que brotavam das comunidades, a prefeitura não teve outra saída a não ser ir legalizando esses espaços que tinham sido criados naqueles anos de batalha. O Caprom rompeu de vez com o executivo e desapareceu. Já não havia migrantes para acolher. Era tempo de organizar a luta. Assim, seus integrantes fundaram outra instituição, o Centro de Educação e Evangelização Popular, também comandado pelo padre Vilson e a irmã Ivone, cujo objetivo maior era auxiliar as comunidades recém-nascidas a garantirem as conquistas e avançarem na organização. Então, paralelo ao processo de regularização das terras e moradias, havia que organizar compras coletivas (eram tempos de inflação alta), hortas comunitárias, padarias comunitárias, a educação das crianças. 

Assim foram se fortalecendo e se consolidando as comunidades outrora de ocupação. E é bom que se diga, para que não venham os mentirosos de plantão a disseminar enganos. Todos eles pagaram por suas casas e terrenos. Nada foi de mão beijada. Nunca é. Além de terem sido pagos em dinheiro, seus espaços de vida tiveram de ser conquistados à custa de muito sacrifício. Foram anos e anos sob barracos, enfrentando a polícia e o terror do despejo. Hoje, a cidade já incorporou essas comunidades, mas naqueles dias, o discursos sobre os "de fora", os "marginais", os "favelados" era exatamente igual ao que se vê na imprensa atual, no que diz respeito às novas comunidades que ocupação que começam a nascer.

2014 - esgotamento do leilão

Durante todos esses anos a cidade de Florianópolis foi submetida a um festim imobiliário. Praias foram ocupadas, terras foram griladas por gente poderosa, prédios se ergueram como espigões. O turismo se firmou como "a" indústria local. E, nesse crescimento vertiginoso, as gentes empobrecidas ficaram para trás. Cada vez mais longe, nas periferias, ou nos morros, que também cresceram. Nos dois mandatos de Dário Berguer esse processo se exacerbou e, agora, com César Júnior chegou ao seu auge com a aprovação de um novo Plano Diretor, o qual não respeitou as longas discussões feitas pelas comunidades, que exigiam outro modelo de cidade.

Aprovado pela maioria dos vereadores - três votos contrários - o plano aponta para uma cidade ainda mais verticalizada, com previsão de até hum milhão e 200 mil habitantes. E tudo isso sem levar em consideração que esse espaço é uma ilha, sem mobilidade e sem capacidade energética  - de luz e água - para suportar uma carga tão grande de gente num mesmo lugar. O plano foi atropelado pelo prefeito e pelos vereadores, sem levar em conta o desejo da população, mas dentro dos planos dos grandes empresários locais.

O que ninguém imaginava era que no exato momento em que a elite política e empresarial aprovava - ao arrepio da lei e com violência policial - um novo plano de expansão exponencial da cidade (sempre mirando os ricos), as gentes empobrecidas iriam assomar com uma ação concreta de rebeldia contra a ganância e transformação da terra em mercadoria de luxo. Pois foi o que aconteceu.

O que era um pequeno número de famílias na calorenta noite de 16 de dezembro - 60 apenas - em pouco tempo passou dos 100. E com o andar dos dias, mais e mais gente foi chegando. Aqueles barracos fincados na estrada de Canasvieiras eram a chaga viva da exclusão dos novos migrantes que foram chegando no final dos 90 e durante todo o início do século XXI. Confinados aos barracos das periferias, pagando altos preços pelos aluguéis, esses trabalhadores decidiram que era hora de pressionar o governo para fazer valer a Constituição. Afinal, morar é um direito.

A terra escolhida foi um terreno da União, terras de marinha, devolutas. Mas, que, no melhor estilo da velha grilagem, já estava cercada. Corria a informação de que ali, uma imensa propriedade de 900 hectares, seria construído um clube de golfe. Há que lembrar que um hectare equivale a 10 mil metros quadrados. Novecentos é terra que não acaba mais. O proprietário em questão é Artêmio Paludo, ex-deputado pela antiga ARENA e depois pelo PDS, e um dos donos da empresa Seara Alimentos, uma das maiores indústria na área em Santa Catarina. No decorrer do processo de discussão sobre o terreno - foi uma fazenda de camarão, do dito proprietário, e faliu - o ex-deputado só conseguiu comprovar através de escrituras nove dos 900 hectares. Ainda assim, a Secretaria do Patrimônio da União está colocando em dúvida essas escrituras, alegando que a terra é terreno de marinha.

No dia da caminhada que atravessou a Beira-Mar as famílias estavam indo para uma reunião de conciliação. Como estão questionando na Justiça a posse da área, que é da União, ele apresentaram a proposta de ficar no acampamento por pelo menos um ano, até que a Justiça se manifeste sobre de quem é a propriedade. Mas, os advogados de Paludo, mesmo com escrituras de apenas 1% da área, insistiram na retirada imediata das famílias. O coordenador da conciliação não quis discutir o debate sobre se a propriedade é legal ou não. Era uma tentativa de resolver o conflito entre Paludo e as famílias. Então, o mérito mesmo da questão ainda está em outro fórum e segue sendo questionado. Ainda assim, as famílias aceitaram a proposta da conciliador, de sair da área no mês de abril. Acreditam que até lá possa haver algum fato novo sobre o mérito. Para os que ali estão lutando por reforma agrária popular, aquela terra é da União e eles devem manter firme a luta para que seja realidade o sonho que vem sendo acalentado nas noites calorosas desse verão: tornar o espaço da ocupação uma agrovila, com produção orgânica, comida boa para a mesa não só dos que ali vivem, mas dos demais moradores da cidade.

Como a área é um latifúndio urbano improdutivo, as famílias acreditam que a Justiça será feita. Segundo a Constituição, uma terra que não cumpre sua função social é passível de desapropriação. A terra está parada e é da União, logo, as chances são boas. E, caso vençam a peleia, os moradores que hoje estão sob os barracos poderão pagar pela terra e Construir sua agrovila. Nada será de graça, como insistem algumas bocas alugadas. O que vai acontecer é as famílias pagarão um preço justo, dentro das suas condições. A terra não é coisa para ser vendida como um bem suntuoso. Ela é direito das gentes.


Assim, as 750 famílias da Ocupação Amarildo vão colocando em questão o tema da terra, num momento crucial para a cidade. A batalha pelo Plano Diretor ainda não acabou e os novos tempos podem reservar muitas surpresas.      

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Isaltina



Rememorando o passado

1894. Uruguaiana. Primeira e única cidade do Rio Grande criada pela revolução farroupilha. Fronteira com Argentina e Uruguai, espaço de amplos horizontes, reduto de gente acostumada às duras lides do campo. Numa de suas ruas, perto do rio, viviam Isaltina e José Antônio, com seus seis filhos. Isaltina era “pelo duro”, mulher nascida na terra, possivelmente com sangue índio. Casara porque era assim que as coisas eram. Mas, o marido revelava-se um homem de gênio ruim, e ela não suportava mais. Não era mulher de aguentar desaforo. Tinha fogo nas ventas e ternura no olhar. Haveria de fazer bastar. 

Assim, decidida a não mais aturar a violência e a ruindade, um dia ela fez assomar a valentia que tinha guardado e mandou o marido embora de casa. Ele a mirou, espantado. Não a reconhecia. Mas aquela faísca nos olhos dizia que o melhor era ele se arrancar. Na pequena cidade, uma mulher descasada não seria bem vista, mas Isaltina não se importou. Ela daria conta. Não precisava de homem para se garantir. Juntou as poucas tralhas num balaio de vime, segurou a fieira de crianças e marchou para  a casa da mãe. Ela iria cuidar dos filhos da forma que pudesse. 

Cabeça erguida e peito cerrado ela se mudou para os fundos da casa dos pais, onde se aninhou com a gurizada. Nunca reclamou da vida e logo começou a costurar para fora, buscando assim o sustento dos bacorinhos. No começo a olhavam de revés, mas, depois, foram acostumando com a “separada”. E ela trabalhava dia e noite, batendo os pés na rampa que fazia a velha máquina funcionar. Difícil era o dia que alguém a encontrava cabisbaixa ou com ares de tristeza. Sempre com um riso nos lábios, ela cantava milongas em castelhano. Criou todos os filhos, saudáveis e trabalhadores. Um deles veio a ser meu avô. 

Soube dessa linda história nesse último natal, quando a casa de meu pai foi palco de uma “roda dos anciãos”. Minhas tias Wilma e Teresa, meu pai e minha tia Dalva jogavam conversa fora na mesa da cozinha, falando de quando eram crianças, lá pelo início do século. E eu, que amo histórias, ia puxando o fio das lembranças, para conhecer as origens dos meus ancestrais. Penso que cada um deles é parte daquilo que faz a gente ser quem é. Foi assim, nessas conversas, que também descobri meu sangue charrua, originário de uma trisavó que apareceu em Itaqui fugida da batalha de Salsipuedes, na qual os Charrua foram traídos e praticamente exterminados. 

Por isso, gosto de vivenciar esse encontro com os mais velhos, para sondar o passado longínquo, me buscar. E então, de inopino, me aparece essa Isaltina, a qual imagino com os cabelos negros, compridos, os olhos de jabuticaba, o corpo franzino, mas teso.  Uma mulher inusitada, naqueles dias, e num lugar tão conservador como a então pequena cidade de Uruguaiana, nos confins do nada.  Essa Isaltina Silva Tavares que ousou dizer basta a um homem ruim e trilhou outro caminho, segurando ela mesma os tentos de sua existência. Nenhuma concessão. 

Tomada de emoção por essa desconhecida bisavó, típica mulher aguerrida dos descampados orientais, eu agora a mantenho no altar dos meus afetos. Tal qual ela, também tenho o costume de trabalhar cantando e me bateu a louca esperança de ter herdado dela, bem mais do que isso. Agora, quando sopra o vento, gosto de ir para a varanda, a chimarrear com sua lembrança. Isaltina, a mulher dos olhos de fogo, pequenina e valente. E sinto que ela se achega e me sopra ao ouvido as canções castelhanas... “desde la banda oriental, se viene el minuano, fuerte, fuerte, fuerte...”


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A cultura do medo e da violência



A mídia comercial, principalmente a televisão aberta, é, sim, uma tremenda usina ideológica. Num país onde a oralidade ainda é o mais eficaz meio de comunicação - em função dos analfabetos funcionais serem milhões - é justamente esse veículo que acaba sendo o meio mais importante de informação da maioria das pessoas. No mais das vezes, se apareceu na TV, o fato assume status de verdade. Se a pessoa não vê na TV, a coisa parece que não aconteceu, daí as estratégias "espetaculares" dos movimentos sociais para poderem aparecer na telinha. Não é sem razão. A Globo já foi mais poderosa no que diz respeito à audiência, mas, mesmo hoje, dividindo espaço com outros canais, como a Record, Band e SBT, segue ditando o modelo de jornalismo e de informação. No geral, todas as emissoras divulgam os fatos com a mesma abordagem, o que, sistematicamente, só fortalece o sistema atual vigente no mundo: o capitalismo - reino do consumo, do egoísmo, do individualismo, no qual o outro é o inimigo a ser eliminado.

Como bem definiu o pensador venezuelano Ludovico Silva, a televisão é o espaço privilegiado do sistema para aprisionar as pessoas na mais-valia ideológica. O trabalhador, já consumido pelo trabalho, chega em casa, depois de uma longa e terrível jornadas nos transportes públicos, e senta-se em frente à TV, única opção de "lazer". Com um copo de água gelada ou uma cerveja, ele pensa estar descansando enquanto as imagens que saltam da tela seguem aprisionando-o no mundo do trabalho. Compre isso, compre aquilo, veja a moda da novela, observe esse costume de vida. Tudo ligado na trama da mercadoria. E a pessoa vai absorvendo, completamente amarrada a grande roda do capital, no giro interminável do consumo. Consome-se até mesmo a própria vida. É claro que a pessoa não é um quadro branco onde as coisas são gravadas. Mas, o poder desse veículo é deveras avassalador. A pedagogia da sedução - usada com maestria pela publicidade - opera no cérebro e conquista os "consumidores" para coisas que sequer necessitam. E, assim, o trabalhador, durante o dia, entrega a mais-valia para o patrão, e à noite, segue entregando a mais-valia para outros patrões. É um círculo macabro. Uma forma bem bolada de domar o “rebanho desgovernado”, que era como o incensado teórico da comunicação, o estadunidense Walter Lippmann, chamava o povo.

A competição

Mas, além da sedução para o reino das coisas, o sistema capitalista preciso atuar em outra área na vida humana, para poder garantir a perpetuação do círculo. Há que incutir o medo do outro, para estimular a competição. Afinal, a regra é simples: para que um tenha muito, outro há que não ter nada. De alguém é preciso "chupar" o trabalho e a alma. O biólogo Humberto Maturana, ao discutir os sistema biológico da vida, insiste em dizer que a competição é uma coisa artificial, anti-humana, criada pelo sistema de opressão. Segundo ele, o que é natural no humano, e mesmo nos animais, é a cooperação. Na cooperação, todos podem ter o que precisam. Na competição, sempre um vai vencer - ter  - e outro vai perder, não-ter. Logo, é uma lógica de exclusão. Mas, se o natural é cooperar, como chegamos a esse mundo violento e competitivo? É, segundo ele, uma construção que tem por objetivo a consolidação de um pequeno grupo de poder. É o centro da opressão.

E, assim, a competição vai sendo incentivada em todas as áreas da vida. Desde a família, onde começa a educação para o sistema, passando pela escola, onde a criança vai se moldando mais ainda para a vida competitiva, chegando, depois, no trabalho, espraiando-se de maneira igual para a vida pessoal, as relações afetivas (não é sem razão que aumentam exponencialmente os casos de assassinato de mulheres, quando essas decidem sair de uma relação. O outro não suporta "perder". Prefere matar).

E todo esse processo de competição é igualmente incentivado e bombardeado na cabeça das pessoas pela maquinaria da indústria ideológica. As novelas, os programas de auditório e, agora, essa nova febre, os "shows de realidade", tipo Big Brother ou a Fazenda. Nesses espaços, que deveriam de entretenimento, toda a sociedade vai sendo alfabetizada e formada na lógica da competição. Para ganhar uma casa do Gugu, há que desbancar o outro. Para ganhar um carro novo no Hulk, há que vencer o outro. Para ganhar um milhão, há que eliminar os próprios amigos. É a pedagogia da selvageria lícita.

A pedagogia do medo

E todo esse processo segue uma ordem muito lógica. O próximo passo é incutir o medo. Fazer com as pessoas pensem que, em todo o canto, por toda a parte, tem alguém querendo "tirar-lhe" alguma coisa. Novamente a indústria ideológica age com sabedoria. Proliferam os programas policialescos, nos quais são apresentados crimes horrendos, assaltos, mortes e toda uma sorte de barbaridades. Assistir a esse programas nos leva a um terror abissal. Porque todos os dias, a todo instante, tem algo muito terrível acontecendo. Sair de casa pode significar a morte. Ficar em casa também. Não há escapatória. Tudo é apresentado como  se fosse algo natural. Todos os casos de violência cotidiana parecem brotar do nada, fruto apenas da "maldade" alheia. Não há relação nenhuma com a pedagogia da sedução - na qual se aprende a querer o que não se precisa - , nem com a pedagogia da competição - na qual o outro é sempre o inimigo. Não há história, não há contexto. É só a violência por si. O que é óbvio, porque se esses programas contextualizassem a violência desenfreada e crescente, ficaria claro para as pessoas os motivos disso. Não há interesse em criar conhecimento sobre a realidade. O objetivo da indústria ideológica é atuar no reino da sensação.

Com a pedagogia do medo vem a lógica da justiça invertida. A pessoa, submetida ao bombardeio ideológico, só consegue ver que a polícia é corrupta, os bandidos andam soltos, não há salvação. O que aparece nesses programas é que os cidadãos estão reféns de uma violência que não tem solução. Começa a se gestar aí o germe do "justiçamento". Se não há justiça, então eu mesmo vou fazer.

Não bastassem os Datenas e Rezendes da vida, ainda tem toda uma linha de filmes, da indústria cinematográfica da matriz do sistema, que exacerba ainda mais essa visão de mundo. Uma olhada nas séries de mais sucesso entre a classe média que pode pagar uma TV à cabo ou digital ( e que mais tarde vêm para a TV Aberta), o que se vê é que as do topo da lista são as dos "justiceiros". Aqueles mocinhos - geralmente brancos e ricos - que caçam e matam os bandidos que a justiça formal deixa escapar. Um caso extremo é o do seriado Drexler (maior audiência nos EUA), no qual um policial é o serial killer (assassino em série). Ele persegue, tortura barbaramente e mata aqueles que a justiça não aprisiona. É um psicopata que inclusive cataloga fotos e amostras de sangue de cada assassinado. Pois esse cara é um herói. E assim, poderíamos elencar outras séries e filmes que povoam nossas televisões, cotidianamente, fortalecendo a pedagogia do "justiçamento".

Por isso que a cena bárbara de um jovem negro sendo espancado por mais de 30 pessoas e amarrado num poste com uma corrente de bicicleta, parece natural a maioria das pessoas. Porque aquele guri negro, morador de rua, feio, maltrapilho, é o "inimigo" que povoa a cabeça de cada um que vive sob a opressão da usina ideológica - aí incluída a família, a escola, as relações pessoais. Então, nada pode parecer mais "certo" do que justiçar, fazer justiça com as própria mãos. Se não há polícia, se a corrupção grassa e eu vivo apavorado com o mundo ao meu redor, a qualquer sinal de ameaça, eu me defendo. É assim que as pessoas pensam. Estão intoxicadas com essa pedagogia voraz, que nos tira a humanidade, isso que Maturana chama de "natural cooperação".  

É o que ocorre também em relação aos homossexuais. As pessoas passam a vida toda ouvindo que aquilo é antinatural, que é vergonhoso, que é pecado, que é sujo, que são uns desavergonhados, umas aberrações, a escória do humano. Então, quando um grupo de jovens agride ou mata um homossexual, eles entendem que estão fazendo uma "limpeza", ajudando a sociedade. Foram alfabetizados nessa concepção. E não é coisa fácil de mudar. Há que se trabalhar toda uma nova pedagogia, que vença essa, que é hegemônica no mundo. Essa visão de mundo grega, que venceu no mundo ocidental, na qual o outro, que é diferente de mim, é o "não-ser", o "inimigo", o que precisa ser eliminado em nome do meu bem-estar. Enrique Dussel, um filósofo argentino, ensina que no mundo antigo, antes da vitória da visão grega, o outro não precisava ser igual a mim. Ele era respeitado como outro, diferente, mas real. Nesse mundo, cujas raízes ele encontra nos povos do deserto, o outro podia ser aceito na convivência, porque a matriz da existência era a cooperação. Dussel crê que essa forma de viver pode ser recuperada, mas não é coisa fácil. Há um longo caminho a percorrer, desfazendo toda essa teia ideológica que vem massacrando a humanidade por tantos séculos.

Hoje, quando as redes sociais deram espaço para a voz de tão distintas gentes, não deveria causar espanto as opiniões de um número expressivo de pessoas respaldando as ações de justiçamento ou de violência contra os que eles consideram "escória", aberrações. No mais das vezes, essas pessoas acreditam piamente - de boa fé -  nas "verdades" que foram sendo sedimentadas ao longo de uma vida. Estranhos, mas muito estranhos mesmos, são aqueles que, de alguma forma, observam essas verdades e duvidam delas, buscando criticamente uma explicação para os fatos, na história, no contexto, no ambiente. Porque não é fácil enxergar as falhas da "matrix", aquelas que nos permitem ver que, para além do mundo de sedução que o capitalismo nos oferece, há toda uma cultura de medo e violência que vem no pacote, fazendo com que vejamos como "inimigos" aquele que não compartilha - por opção ou por condicionantes históricas, econômicas e políticas - dessa ilusão.

O exemplo e a linguagem

Wittgenstein, um filósofo da linguagem, dizia que os limites da linguagem são os limites do mundo. Logo, para ele, se a pessoa não consegue verbalizar ou entender coisas como cooperação, solidariedade, amor, equidade, jamais poderá entender aqueles que falam sobre isso. Maturana, desde a biologia, concorda com o filósofo austríaco, mas oferece uma luz nesse universo que aparece tão determinista. Ele diz que o ser humano só se fez humano a partir do toque sensual, da carícia, do amor. E oferece muitos elementos científicos que podem comprovar sua teoria. Só depois veio a linguagem, essa, tal qual conhecemos. Logo, há uma pré-linguagem, calcada na emoção, no movimento do corpo, na ação. E é desde aí que pode vir a mudança. O que Maturana diz, cientificamente, já disseram os grandes avatares que caminharam sobre a terra, filósofos, homens de fé: o exemplo é poderoso. É a grande linguagem que chega ao mais profundo do humano. Assim, palavras como amor, solidariedade, respeito ao outro, cooperação, não podem ser ditas se não vierem acompanhadas de uma ação correspondente. Os astecas, nossos mais remotos ancestrais, já sabiam disso: "As palavras que não andam, não devem ser pronunciadas".

Com isso, o que quero dizer é que há uma larga batalha a ser travada contra as pedagogias da sedução, do medo e da violência. E ela não será ganha apenas no discurso falado. Ele precisa viver na ação cotidiana, no que se ensina aos filhos, no que se trabalha na escola, nas relações familiares e pessoais, no sindicato, no movimento social, no partido político. Para isso, precisamos da renitência, da ação diária e sistemática, da prática cotidiana desses valores humanos tão ancestrais. Gritar contra o racismo, contra a discriminação, contra a violência ao "outro", desigual. Mas também atuar, em todos os espaços da vida, em consonância com as palavras que usamos. Só assim elas começarão a andar.

Já no campo da política essa mudança não pode acontecer se não houver uma luta radical pelo controle dos meios de comunicação. Há que derrotar o monopólio, o oligopólio, que mantém a usina ideológica em funcionamento. Não basta atuar no campo da “democratização da comunicação”. Ajeitar o que está aí consolidado não é solução. Assim, ou derrubamos o poder dessa elite entreguista que hoje domina a mídia, ou seguiremos jogando palavras ao vento. Palavras que não terão pernas para andar. Soberania comunicacional, produção popular, reforma agrária no ar. Sem isso, o “rebanho desgovernado” de Lippmann seguirá domesticado, reacionário, racista e criminoso.


É tempo de desgovernar...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A história do Rio Tavares

Vídeo recupera a história das gentes nativas do Rio Tavares, bairro do sul da ilha de Santa Catarina. Produção de Marcelo Dias. Lindo demais...


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O capitalismo de Wall Street



O lobo de Wall Street é um filme aterrorizante e fascinante. Mesmo para aqueles que sabem bem como funcionam os mercados do dinheiro de papel (a bolsa de valores) ver o processo desde dentro provoca vertigens. O filme, dirigido pelo veterano Scorsese é baseado em uma história real. Mostra um jovem corretor que, em meio a uma crise, e já iniciado nas artimanhas da bolsa, decide montar uma empresa para atuar com ações de baixo valor. Ou seja, os clientes em potencial seriam as pessoas mais pobres, pequenos investidores interessados em participar, ainda que com ínfimas fatias, do banquete do mercado de capitais. Todo o esquema é baseado numa fé cega no dinheiro. Todos querem enriquecer, mas, naquele processo, só o corretor envolvido é quem consegue.  Não importa se isso tiver de ser feito enganando as pessoas. Gente que aplica as economias de toda uma vida, igualmente envolvida pelo apelo do enriquecimento fácil.

O filme escancara a formação desses trabalhadores, que mexem com as finanças alheias. Os tais clientes não são pessoas. São caixas de grana, cujos conteúdos devem vir para o bolso de cada um. Nesse mercado de ações de baixo valor, se uma pessoa investe quatro mil dólares, a metade vai para o bolso do corretor. É dinheiro vivo. Na hora. Enquanto que aquele que investe está sujeito à montanha russa da bolsa. No geral, perde tudo, porque as ações são podres. Tudo é inventado. Uma rede de mentiras.

O que aparece de maneira muito clara é a forma messiânica como todos vivenciam a coisa. O protagonista, vivido por Leonardo de Caprio, faz exortações como se estivesse, num púlpito, reproduzindo as palavras de deus. Os seus jovens comandados o veneram como um. É como uma igreja fundamentalista, cheia de rituais selvagens. Danem-se as pessoas. Danem-se as economias. Danem-se todos. O negócio é ficar rico. E assim, segue o festim da grana alheia, movido a drogas, sexo e muita adrenalina. Nos olhos dos corretores é visível o arrebatamento, enquanto batem no peito murmurando uma canção gutural.

O filme tem três horas de duração, mas passa num átimo. Vale a pena conhecer essa engrenagem por dentro, porque, afinal, ali não há nada de ficção. As coisas são bem assim. A bolsa de valores é uma invenção do sistema. Um tigre de papel, passível de se despedaçar a qualquer momento, fazendo virar pó fortunas inteiras, ou as economias amealhadas durante anos.  Não há cenas mostrando a situação de quem é enganado, para que a gente se apene deles. Não. Tudo gira em torno do jovem corretor que consegue roubar até 200 milhões de dólares.

No paralelo, de forma bem coadjuvante, há um agente do FBI disposto a desvelar o esquema de roubo e engano.  Mas a gente não fica sabendo muita coisa dele. Não é um personagem. E sua cena final é um tanto quanto piegas. Mas, tudo bem. Scorsese talvez tenha querido salvar o estado, ou passar alguma esperança.

Ao final desse turbilhão, Scorsese mostra que o FBI pode ser renitente e desbaratar pequenos esquemas, como foi o caso desse Jordan Belfort. Mas, nas palavras do próprio Jordan, os grandes ladrões seguem por aí. A ciranda do dinheiro fictício não é espaço para “refeições” minúsculas. Todos os dias, megaempresas de corretagem fazem o mesmo que Jordan, dentro dos limites legais, o que não deixa de ser um engano ou uma fraude, uma vez que no geral, o sobe e desce das ações é quase sempre fabricado. 

E, no admirável “mundo livre”, parece não haver espaço para esperanças. O mesmo homem que rouba, engana, subverte e trai, não encontra problema algum em voltar ao topo, sendo reverenciado justamente por ser quem foi: um insensível, uma máquina de vendas, ainda que não vendesse nada real. Apenas o sonho de ficar rico, sentado em casa, a custa do trabalho de outro.  

Um lobo, diz o título do filme. Não! Um lobo não seria tão cruel. 


O transporte em Florianópolis: mudando para não mudar




Desde que foi implantado, durante a gestão da prefeita Angela Amin, em agosto de 2003, o chamado “transporte integrado”, a vida de grande parte das pessoas que utilizam o transporte público na capital catarinense virou um verdeiro inferno. Aqueles que moram em bairros próximos ao centro raramente reclamam do sistema, uma vez que a fluência de ônibus é boa, com horários regulares entre 10 a 15 minutos no máximo. É assim para quem mora no Estreito, Coqueiros, Abraão e Itaguaçu, que não precisa fazer baldeação.

Já para os que moram nos bairros mais afastados, o cotidiano é um suplício. Os veículos que saem do centro não sãos os mesmos que o usuário usa para chegar ao seu bairro. Em alguma parte do caminho, no geral, bem próximo de casa, a pessoa precisa descer no “terminal de integração” e pegar outro ônibus que, aí sim, vai levá-lo até em casa.  Nesse ínterim, o usuário precisa viver duas grandes batalhas: a de enfrentar as longas filas no terminal do Centro, sofrendo ônibus lotados, sem sistema de ar condicionado (muitos deles sequer têm janelas que abrem), passando por longas horas nos engarrafamentos, e, depois, viver a mesma situação no trajeto do terminal de integração até em casa. No geral, para as pessoas que vivem nos bairros mais distantes, o tempo dentro do sistema de transporte aumentou com a “desintegração” – que é como a população chama. Linhas que faziam o percurso em 40 minutos, como era o caso da do bairro Campeche, agora podem levar até duas horas. Um tempo absurdo se consideramos que é um trajeto de pouco mais de 30 quilômetros. 

Não bastasse tudo isso, o sistema de integração “loteou” a cidade para determinadas empresas. Cada uma detém o monopólio de uma determinada região e, assim, o usuário é refém da empresa que faz o seu bairro. Não há opções. No terminal do Rio Tavares, se a pessoa perde o carro da hora cheia, por exemplo, terá de esperar 30 minutos até que tenha novo horário para o seu bairro. Muitas vezes a pessoa está a cinco minutos de casa e precisa ficar esperando. É um sistema gerador de estresse e doenças. Se formos considerar o período de férias, a situação fica ainda mais caótica. Esse ano, por exemplo,a prefeitura retirou os carros que fazem horários extras no horário de pico durante o ano letivo. O argumento é de que não há fluxo de estudantes. Mas, os tecnocratas não levam em consideração que o fluxo de turistas representa duas ou três vezes mais do que o número de estudantes. Então, os terminais ficam ainda mais insustentáveis. Gente demais, calor demais, preço das tarifas altos demais, estrutura de menos. Sem contar a falta de informação aos turistas que ficam feito barata tonta pelos corredores sem saber qual ônibus tomar. 

As lutas

Por conta de todos esses problemas que os milhares de usuários enfrentam no dia-a- dia muitas foram as lutas protagonizadas pelos estudantes, movimentos sociais e população em geral. A primeira delas, pós-integração, foi a batalha pela CPI dos tranportes, junto à Câmara de Vereadores, comandada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Transporte que queria transparência na concessão dos terminais do  sistema integrado. Mesmo com mobilizações e abaixo-assinado, a Câmara se recusou a investigar. Mais tarde, vários dos terminais, que haviam custado milhares de reais aos cofres públicos, tiveram de ser desativados por absoluta falta de sentido.

Depois, em 2004, veio a Revolta da Catraca, quando o povo foi para a rua em luta contra o aumento das tarifas. O protesto foi tão significativo que abriu uma vereda em nível nacional para lutas semelhantes em vários estados do país. Desde aí, consolidou-se na cidade um movimento de luta pelo transporte que veio protagonizando diversas outras batalhas na tentativa de garantir um serviço público de qualidade na área do transporte. Vieram as lutas pelo Passe Livre, com os estudantes à frente, e, mais tarde, tudo isso desembocou na luta pela Tarifa  Zero, reivindicação que foi tomando conta de todos os que começaram a se envolver com o assunto. Se há um direito de ir e vir, garantido na Constituição, e tão caro á sociedade burguesa, então por que não garantir esse direito aos usuários do transporte? Afinal, a maioria dos que utilizam o transporte coletivo são trabalhadores e estudantes. E essa é a bandeira que comanda as lutas hoje em todo o país. 

Mas, em Florianópolis, um dos capítulos dessas grandes batalhas pelo transporte também tem sido pela realização de uma licitação, já que as empresas que hoje atuam no sistema - Insular Transportes Coletivos Ltda. (antiga Empresa Ribeironense Transporte Coletivo Ltda.), Empresa Florianópolis de Transportes Coletivos Ltda. – Emflotur, Transporte Coletivo Estrela Ltda., Transol Transporte Coletivo (antiga Viação Trindadense Ltda., que absorveu a Viação Taner) e Canasvieiras Transportes Ltda – são as mesmas desde a décadas, sem que tenham passado por qualquer sistema de licitação. Muitos protestos com relação a isso foram realizados ainda na gestão da Angela Amim e depois na de Dário Berguer. Nada foi feito. 

Cesar Souza

O atual prefeito, Cesar Souza Junior, se elegeu tendo como proposta fazer a licitação do transporte. E, nos primeiros meses da sua gestão lançou o edital. Mas, para supresa da população, o fez sem qualquer participação das gentes, daquelas que sofrem o sistema todos os dias. A proposta de licitação foi apresentada numa segunda-feira, as oito horas da manhã, com chamamento feito no dia anterior pela televisão. Ou, seja, a prefeitura não queria povo “melando” o que seus tecnocratas haviam desenhado desde o conforto de suas salas, sem qualquer processo de conversa com os usuários. É que, na verdade, o foco estava no interesses das velhas parceiras  - as empresas do transporte – e não na população. 

E assim, os poucos representantes populares que puderam estar na apresentação tiveram de ouvir, estupefatos, um discurso de apresentação de “maravilhas” tecnológicas. Haveria um sistema interligado por computador, as pessoas poderiam ver onde estava o ônibus desde seus tablets, os motoristas teriam contato com a central via internet em tempo real, e outras tantas “modernidades”. Falou-se mais de uma hora disso tudo. E sobre as linhas, os horários, os problema de desintegração? Nenhuma palavra. As pessoas que fossem procurar nos anexos da lei, que sequer estivavam à disposição. Foi preciso muita luta para que a prefeitura divulgasse a lei da licitação. E, apesar de todos os protestos e críticas feitas por especialistas no setor, o prefeito fez-se surdo e não alterou em nada a proposta. Era aquilo e ponto. O estilo “democrático” que depois também foi imposto no debate e aprovação do Plano Diretor.  

Agora, nos primeiros dias de fevereiro, a prefeitura realizou reunião para abrir os envelopes das empresas interessadas em atuar no sistema de transporte da cidade. Ninguém dos movimentos sociais, nem mesmo a representação do sindicato dos trabalhadores foi autorizada a entrar, apesar de ser uma sessão pública. Tudo feito a portas fechadas, sob o argumento de que estava sendo transmitido via internet. Só depois de muita discussão, foi permitida a entrada de 15 pessoas, das que se postavam em frente a prefeitura exigindo participação. Mas, como estava proibido qualquer manifestação, os populares se retiraram em protesto.  

Ao final da sessão de abertura dos envelopes, a “surpresa”: havia um único envelope. E quais eram as empresas que, unidas num consórcio denominado de Fênix, estavam ali representadas? Um doce para quem adivinhar! Nada mais, nada menos, que as mesmas cinco empresas que já atuam na cidade desde sempre. 

A imprensa fez sua parte, divulgando no dia seguinte os fatos, sem qualquer senso crítico, sendo que os dois principais jornais ainda fizeram questão de frisar que a população seria “beneficiada” com a diminuição da tarifa, em 0,10 centavos. Os demais “grandes ganhos” que a população vai ter serão os 447 ônibus convencionais e 60 executivos - todos acessíveis para quem tem deficiência, com GPS e câmera de monitoramento. De novo, nada sobre trajetos, horários, linhas ou o monopólio regional. 

Mudando para não mudar

Então, agora aí está. Como não apareceu mais nenhuma proposta, o único consórcio a concorrer é o Fênix, que poderia até ser nominado como “duro de matar 666”, porque significa que as mesmas empresas que exploram o serviço seguirão vivas e firmes, apesar do aparente “tropeço” causado pela licitação. Nada muda para que se diga que tudo mudou. O prefeito agora garante, com licitação, mais 20 anos para os mesmos “parceiros” de sempre.

É fato que as mudanças tecnológicas serão benéficas para a população. Mas, não há aí nenhum mérito. Adequar-se a realidade é obrigação das empresas. Também é certo que a diminuição de 20 centavos na tarifa é coisa boa. Mas, isso, ao longo do tempo, vai se perdendo no caos que é o sistema. Para os que lutam por um transporte de qualidade, o processo licitatório não toca em nada nas questões cruciais que envolvem os diários transtornos vividos pelos usuários. Seria preciso que o prefeito, num ato de sabedoria, ouvisse aqueles que sofrem o transporte. Cada um e cada uma que usa o transporte sabe como fazer para melhorar. É a forma do pé que ajusta o sapato. Mas, sabedoria seria pedir demais de um jovem prefeito que prefere administrar como um se fosse um rei. É dele que emana toda a decisão. Um rapaz que possivelmente nunca, ou raramente, andou de ônibus.

Agora, aos movimentos sociais, sindicatos e população ativa resta a luta sistemática, como sempre foi. Já se tinha como certo que o edital era uma maquiagem mal feita para uma velha amiga. Há questionamento sendo feito via judicial e existem as ruas. Ah, as ruas… esse espaço libertário que, vez em quando, é palco das mudanças.