quinta-feira, 20 de março de 2014

Ocupação Amarildo começa nova fase: SPU diz que as terras são da União








Quando o pedreiro Amarildo de Souza, morador de uma favela do Rio de Janeiro, entrou naquele camburão que o levaria para a morte talvez já estivesse ciente de seu destino. Pobre, negro, rebelde, perguntão, impaciente com a dureza da vida, deve ter intuído que tudo se acabaria nas mãos de uma polícia que não tem por princípio a defesa do cidadão. Mas não. Sua morte sob tortura, seu corpo desaparecido, seus olhos graúdos de espanto, semearam um movimento nacional de solidariedade e desejos de justiça. Hoje, na longínqua cidade de  Florianópolis, no sul do Brasil, ele é o nome que impulsiona uma luta inédita, de gigantescas proporções, que está colocando em cheque nomes e fortunas até então jamais questionados.

Amarildo de Souza é como foi batizada uma ocupação de terra improdutiva no norte da ilha de Santa Catarina. São 900 hectares de terra vazia, à beira do Rio Ratones, que já foi uma espécie de celeiro da ilha, com plantação de feijão, mandioca, batata e hortaliças. Isso sem contar a generosa produção de peixe, ofertada pelo rio, piscoso demais. Bem próximo a uma badalada praia de alto padrão - Canasvieiras - o acampamento fincou suas primeiras barracas no dia 17 de dezembro de 2013.  Eram apenas 60 famílias, premidas pelos altos aluguéis da famosa "ilha da magia", que propagandeia suas belezas por todo o país, mas só aceita moradores "nobres". Aos pobres, o que se oferece é uma passagem de volta para casa. Mas, gente há que vem de longe e exige seu espaço de cidadão da cidade. "Somos todos brasileiros, qualquer lugar é nosso lugar". 

Quando chegou o natal de 2013, mais gente já tinha se somado à insólita ocupação. E quando 2014 despontou já eram mais de 700 famílias montando suas tendas, trazendo seus poucos pertences, seus bichos e suas crianças. A ocupação Amarildo abriu um espaço de esperança para centenas de pessoas que não tinham mais como comer e morar ao mesmo tempo. 

A reação da cidade foi de espanto. Para quem estava acostumado a paisagem bucólica do caminho para Canasvieiras, aqueles barracos de lona eram uma provocação. Mal sabiam que os verdes campos de mato baixo logo seriam derrubados para um empreendimento milionário de um novo Campo de Golfe. Até então o que se sabia era de que aquela terra toda pertencia a uma empresário local, Artêmio Paludo, que há muito tempo tentara criar ali uma fazenda de camarões, sem sucesso. O negócio faliu e tudo ficou abandonado. Agora, o projeto para a área era esse campo de golfe, espaço de diversão para gente rica, que daria mais dinheiro a quem já tem. Foi com essa conjuntura que a ocupação foi armada. Terra sem cumprir sua função social, diz a Constituição brasileira, é passível de reforma agrária. E, também como diz a lei, uma terra serve à reforma agrária independentemente de estar na área rural ou na cidade. 900 hectares é uma latifúndio, e se não produz, há que se destinar.  Assim, as famílias que entraram na área vieram com essa intenção. Morar e plantar, produzir comida. No centro da luta estava a reforma agrária. 

Já no mês de janeiro, passado o susto e as festas, a reação da elite florianopolitana se fez notar através de suas bocas alugadas na imprensa. Jornalistas raivosos começaram a algaravia de sempre: são bandidos, são favelados, são ladrões, vão trazer insegurança para o bairro que é nobre, estão quebrando um princípio sagrado de não respeitar a propriedade privada. Na verdade, esses jornalistas estavam defendendo o "sagrado" direito dos ricos proprietários, que agora já se sabia, incluía outros sócios como o Grupo Habitasul e o dono do complexo do Santinho (condomínio de alto luxo). E foi assim que começou a reação aos "favelados" que ousavam se apropriar de terra de gente de bem. Durante semanas, as notícias nos meios massivos e nos pequenos jornais de bairro que são financiados por partidos de direita ou empresários, derramaram todo o seu show de preconceito e desinformação.

Mas, a ocupação Amarildo, sem querer, mexeu num vespeiro bem maior do que se podia imaginar. Na tentativa de expulsar as famílias o então suposto proprietário da área entrou na Justiça exigindo a desocupação. Para isso, a justiça precisou pedir a ele as provas de sua propriedade sobre a terra. Não havia. Depois de muitas semanas ele conseguiu apresentar as escrituras de apenas 9 dos 900 hectares que dizia serem seus. Mais tarde, mesmo esses nove hectares foram colocados sob suspeita, uma vez que a certificação em cartório tinha se dado na época em que ele ocupara o cargo de Secretário de Agricultura do Estado. Isso podia significar grilagem de terra, em função do poder do cargo. A confusão estava armada. Ponto para Amarildo. Sem provas de propriedade, e com os títulos sob suspeição, não houve despejo.  

Ainda assim, nos dias em que a Justiça ainda não sabia da grilagem, uma reunião de conciliação entre acampados e o suposto proprietário acertou a saída das famílias nos primeiros dias de abril. Esse acordo agora está sendo considerado sem valor, uma vez que as terras não são do empresário. Por conta disso, novas frentes de luta se abrem e os "amarildos" (como são chamados os ocupantes) disputam nos órgãos competentes o direito de permanecerem na terra e seguirem com o projeto de agrovilas.

Uma reunião histórica

E foi para ouvir a resposta de vários órgãos do Estado sobre essa questão que a Assembleia Legislativa abriu suas portas nesse dia 19 de março, em reunião convocada pela Comissão de Direitos Humanos, com a presença dos deputados Luciane Carminati, Angela Albino e Sargento Soares. Além deles, também vieram representantes da Justiça Agrária, da Secretaria do Patrimônio da União, Ministério Público, Procuradoria Federal e Municipal, Ouvidoria do Incra e Instituto Chico Mendes. Era o momento de saber, oficialmente, a resposta da SPU sobre de quem eram, efetivamente, as terras que estavam servindo de morada a todos os amarildos.

Assim, eles vieram com suas camisetas vermelhas, bandeiras, crianças, faixas, músicas e aquele sorriso na cara de quem acredita estar numa luta justa. Quando bateu cinco horas, pelo menos umas 300 pessoas já estavam em frente a Assembleia. Queriam entrar e ver com os próprios olhos tudo que seria discutido ali. Depois de muita conversa, a casa do povo finalmente decidiu que o povo podia entrar. Mas, como ali estavam os pobres, tiveram de passar pelo constrangimento da revista policial, abrindo suas bolsas, braços e pernas para a passagem do detector de metais. Algo jamais feito quando são empresários ou pessoas brancas e bem vestidas. Tudo, bem, o pessoal aturou mais essa, fazendo piada e levando na flauta. Organizados pela equipe de segurança foram entrando, um a um, e ocupando as cadeiras do auditório Antonieta de Barros. Uma imagem simbólica, já que a professora Antonieta foi a primeira mulher negra a assumir um cargo de deputada. E seu retrato, no alto da porta, sorria para os amarildos, a maioria seus irmãos de cor e de luta. Ali se daria uma batalha histórica. Sem armas. Com canções e palavras de ordem. 

Auditório cheio, vieram as falas. Os deputados, reafirmando a ideia de que morar é um direito humano. O jovem juiz agrário, Rafael Santi, que já visitou o acampamento várias vezes, deixou claro que a área em Canasveiras tem todas as características de um imóvel rural, podendo, portanto, se prestar à reforma agrária. Segundo ele, esse é movimento que não tem precedentes em Santa Catarina - uma ocupação rural, na cidade -  e, por isso, no início, a justiça ficou confusa sobre como proceder. Mas, agora, não resta dúvida de que essa questão deve ser tratada no âmbito da Justiça Agrária. Em seguida, o ouvidor do Incra, Fernando Souza, também reafirmou a possibilidade de o Incra atuar no acampamento criando um projeto que já existe no âmbito do órgão agrário, que é o Projeto Casulo, justamente o plantio coletivo da terra, como querem as famílias da ocupação Amarildo. A fala mais esperada, da superintendente da SPU, Sílvia de Luca, foi curta e incisiva: as terras são da União. O único entreve para ocupação seria a questão ambiental. Afinal, ali existem mangues e restingas que são de preservação permanente. Mas, o representante do Instituo Chico Mendes, deixou claro que há espaço para ocupação e utilização da área, principalmente se for de uso coletivo.

Ao final do encontro, diante da posição de todos os envolvidos, ficou a certeza de que existem todas as chances de a ocupação garantir o espaço para a vida de todas as famílias que hoje lá estão. A terra é da união, tem espaço para utilização, é passível de desapropriação para a reforma agrária. Ainda existem muitas portas burocráticas a serem abertas, mas quem vê os olhos cheios de eternidade de cada uma daquelas pessoas sabe que toda a espera valerá a pena. Para as bocas alugadas da imprensa fica a lição: antes de sair em defesa esganiçada de um de seus amigos, sempre é bom buscar a informação correta. Se houve alguém que "passou a mão" nas terras públicas, não foram os amarildos. Eles e elas reivindicam hoje um direito humano, de ocupar um espaço de terra para morar e plantar. A propriedade da terra é do Estado e as possibilidades estão dadas. Mas, ainda que fosse uma propriedade privada, também poderia ser questionada. Em várias situação, dentro do estado liberal, a propriedade privada por ser desapropriada, ela não é intocável, como querem fazer crer os pretensos  defensores da lei. A própria lei diz que uma área privada pode ser usada para uso coletivo, público, ou desapropriada quando não cumpre sua função social, ou quando mantém gente em trabalho escravo. 

Na noite chuvosa desse 19 de março, pode-se ouvir o leve arrastar de chinelos de Mara Dilci Tavares, uma senhora de 74 anos, chamada, carinhosamente, por toda a gente da Amarildo, de "vózinha", que se converteu na figura símbolo da ocupação, por sua força de luta e pelo desejo inarredável de terminar a vida numa casa que pode chamar de sua, e numa comunidade onde uma mulher velha pode viver sozinha, sem nunca estar só. Amparada pelo braço de uma jovenzinha, ela se foi, sorrindo. Com ela, a esperança, dançando, graciosa. E talvez, também Amarildo que, com seu sangue, pavimentou a realidade de todas essas vidas. 

Amarildo, vive!


domingo, 16 de março de 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

A lição da ternura





Para Gina e Javier

A ternura é uma escolha política para o gênero humano, diz Carlos Rochetta, no seu livro Teologia da Ternura, uma dessas belezuras que a gente acha escondida nas prateleiras da Paulus. Pois eu respaldo totalmente essa afirmação. A vida é barra pesada, todos os dias nos colocando à prova. Baques, desenganos, desilusões, tristezas, perdas, doenças. Não é fácil, diante de tantas coisas que poderiam nos endurecer e amargurar, escolher a ternura. Rochetta usa muito bem a antiga parábola do bom samaritano para mostrar o quanto a ternura é gesto arriscado, destituído de egoísmo, porque definitivamente é uma abertura para o outro, para a alteridade.

Conta a história que havia um homem caído na estrada de Jericó, que lá pelo ano I da atual era, tinha a fama de ser muito perigosa. Tanto que aqueles 30 quilômetros eram chamados de “a estrada do sangue”, cheia de salteadores, bandidos, ladrões. Muitas pessoas passaram pelo homem desfalecido e ninguém ajudava. Apenas um samaritano o amparou e o levou até uma estalagem, onde o deixou, com tudo pago. Optando pela ternura, o samaritano correu o risco. Enquanto os outros pensavam: “se eu parar, o que poderá me acontecer?”, aquele homem, então considerado um impuro pelos judeus, pensou: “se eu o deixar, o que poderá lhe acontecer?” Outra mirada. Outra escolha política.

Pois, por ter crescido ouvindo essas histórias de assumir o risco pelo outro sou, desde sempre, afeita à ternura. Penso que essa é a escolha mais bonita que se pode ter diante do outro. Uma delicadeza, um toque macio, um sorriso, uma afago, um poema, essas coisas que se oferecem como se fossem um cristal, tão frágeis, mas ao mesmo indeléveis. Por isso, diante de lugares e seres que amo, deixo pequenas marcas de ternura, como se fossem mesmo “pequenos estupores de beleza”. Um desenho tosco, um poeminha, palavras soltas, bilhetes de amor, acenos poéticos. Faço isso por pura graça, como um gesto de profundo carinho ante o que marca minha vida.

Como o caminho tem sido longo, para mais de meio século, essas marcas vão ficando, perdidas na estrada. Nunca sei de verdade se esses delicados gestos poéticos que me permito fazer tocam, de fato, a emoção das pessoas. A gente vive a ternura e se vai. É parte da vida mesma, esse fluxo de vivências humanas. Mas, vez ou outra, acontece alguma coisa que mostra o quanto a ternura realmente nos deixa num permanente estado auroreal (como se estivéssemos sempre nascendo), tal qual diz Rochetta.  

Dia desses encontrei um velho amigo. Separados pelo tempo e pelo espaço de 30 anos, nos achamos nas vias internéticas.  Ele mesmo, eu lembrava, era também, nos dias em que compartilhamos a vida, um desses poços de ternura que a gente encontra e bebe, devagar. Pois, depois de toda alegria do re-encontro, ele me mandou, escaneados, alguns desenhos e bilhetinhos que eu fizera para ele milênios atrás. Teve a decisão política da ternura de guardar aqueles gestos poéticos com o mesmo amor com que foram feitos. Epifania.
É quando se percebe que a ternura é mesmo coisa que exige um itinerário, que se aprende, construída dia a dia, uma arte. E ela depende também das teia de relações que ousamos criar.

Diz Carlos Rochetta, nesse livro lindo que inventaria a ternura, que ela dá o sentido da maravilha, que é capaz de dar voz à silenciosa exultação do cosmos e à nostalgia da plenitude que tudo invade.  Sim, é isso. Coisas assim nos mostram que o caminho percorrido, sempre optando pelo encontro amoroso – arriscado por demais -  é a única coisa que dá sentido á vida. O amor exige ternura capaz de riscos. E eu gosto de saber que tenho feito essa escolha todos os dias.

Muitas vezes nossa ternura não consegue entrar nas couraças que algumas pessoas vão construindo, justamente por conta de nunca se renderem à ela. E, aí, ela se perde, triste e solitária. Mas, momentos há, como esse, da visão de um singelo desenho feito há 30 anos, em que ela abre suas asas e nos embriaga.

Então, apesar de todas as dores, vou caminhando para o meu lá-na-frente tão sonhado, de vida boa e bonita para todos, carregada de minhas pequenas ternuras. Afinal, como diz o poeta, tender ao horizonte, já é possuí-lo...

quarta-feira, 5 de março de 2014

Um ano sem Chávez


















A vida na Sabana Grande

Fizemos uma volta em torno do sol, sem Chávez. Quando anoiteceu, abri uma cerveja, bem gelada, e fui sorvendo gole a gole. Como se estivesse de novo na Sabana Grande. Foi ali que descansei o corpo nos dias em que vivi a Venezuela de Chávez. Era 2006. Tinha reservado hotel aqui do Brasil, sem saber como era, nem onde se localizava. Tudo que sabia é que era em Caracas. Pois o Hotel Cristal era um desses hotéis de fluxo contínuo, que serve aos amantes do grande bulevar da Sabana Grande. Só por isso já aparecia belo aos meus olhos. Porque abrigava esses amores fortuitos, apressados, de delicado estilo, cheios de urgência. 

Na recepção, nos aguardava um mal-humorado Jesus, anti-chavista, portanto sem qualquer afinidade com seu homônimo, nazareno, que por certo amaria a revolução bolivariana. Achando ruim que chegassem tantos estranhos – e o que é pior, nem eram casais – o tempo todo ficou criando caso. Talvez não conseguisse conceber hóspedes normais, sem a marca do amor que urge se consumar. Os chegantes, alguns já intimidados com a simplicidade do lugar e com sua peculiar especificidade, se olhavam sem saber o que fazer. Mas, com o passar dos dias, tudo foi se acomodando, O hotel Cristal virou casa. O mau humor dos porteiros foi tirado de letra e alguns deles, como o Abrão e o Omar, viraram amigos. 

Saindo do Cristal, assomava toda a beleza do bairro onde ele estava situado: Sabana Grande. O bairro era um amontoado de barracas de lona e um universo caótico de sons de salsa, merengue e música llanera. E, bem ali, no coração da Sabana, estávamos nós, um pequeno grupo de catarinenses. “Cuidado! É muito perigoso! Não se desgrudem das bolsas! O povo aqui ataca com faca! Fiquem longe dos drogados!” Estes eram alguns dos conselhos do povo do hotel e de quem mais a gente encontrasse na cidade. Pois a Sabana Grande era um espaço de pobres, onde vicejavam os hotéis de encontros e as tascas, casas de shows com mulheres de preço bom. Pelas ruas, tão logo levantavam acampamento os trabalhadores informais, chegavam os mendigos, drogados, prostitutas e as gentes sem porvir que buscavam um pouco de amor, ainda que em braços e bocas alugadas. 

Mas, apesar de todos os avisos, ninguém ali teve problemas. Terminadas as funções do Fórum e as visitas a grande Caracas, voltávamos e nos aboletávamos em alguma mesa de um dos bares mais animados. Depois de algumas “polares” geladas, muito bem atendidos pelo simpático Jairo – chavista de coração - a gente vinha saltitando pela calçada suja, sem que ninguém interpelasse. Nenhum roubo, nenhuma agressão. Por conta desses paradoxos da vida, na perigosa Sabana, nosso refúgio era o Cristal. E assim, por tão frágil, não podia quebrar. Os perdidos do bulevar, num átimo de beleza, compreenderam a metáfora e nos deixaram em paz. Garrafadas, assaltos e confusões? Sim, tudo isso aconteceu, mas só depois que os catarinas já estavam seguros nas camas repartidas do Cristal.

Aquela vivência na Sabana Grande nunca mais saiu das retinas. Lembro até hoje o ranger do elevador do Cristal,  pequenino, fatigado de tanto levar os seres do bulevar rumo às camas do amor urgente. Era irascível. Sacudia, balançava, travava, demorava. Parecia triste. Não via mais aqueles olhos oblíquos de quem se esconde, aquele trote no coração de quem escapa da vida certinha, aquele suor assustado de quem sabe que vai viver uma delícia proibida, aquele tremor de mãos que anseiam por toques, aquele cheiro de corpo de fêmea e macho, fremindo de paixão. A velha engrenagem do Cristal estava a ponto de falhar. Na sua caixinha entravam e saiam todos aqueles viajantes estranhos, espantando os hóspedes fortuitos. Morreria o elevador se não pudesse ver florescer o amor, esse, feito de carne, dor e segredos. Ainda bem que os dias passaram rápido e, quando saímos, parece que ele retomou seu ritmo normal, sem paradas e sustos. Mas seu barulho ainda ressoa em mim. Saudade!

Aqueles foram dias de vertigem. A revolução bolivariana estava no seu auge. Por todo lugar a luta de classes se expressava. Anti-chavistas, chavistas, venezuelanos apartidários, sindicalistas. Tudo estava em ebulição. Era o Fórum Social Mundial e também havia gente de todo mundo, doida para ver e sentir as transformações que tinham começado em 1998, com Chávez.  Andávamos pelos bairros conhecendo os “simoncitos”, espaços para a educação infantil, as escolas novas, as estruturas para atendimento médico, os trabalhos das missões. 

Ficou nas retinas o Maracao, populoso bairro da periferia, misto de reduto português com venezuelanos da gema. Com Raul e Daniel, dois moradores locais, circulamos por ali, sentindo a força da transformação e o sentimento de profundo amor que as gentes tinham pelo “comandante”. Chovia forte e os estudantes se amontoavam nas paradas, entrando aos borbotões. Ao saber que ali viajavam brasileiros logo queriam saber de coisas. Faziam perguntas, contavam de suas vidas e confirmavam o que dizem quase todas as gentes mais humildes de Caracas. “Com Chávez, é bom!” 

Depois circulamos pelo “23 de Enero”, o famoso bairro que cerca Miraflores, o palácio presidencial. Dizia Daniel que até poucos anos atrás ninguém poderia andar por ali, assim, como fazíamos. “Era um reduto de violência, de assaltos, de gangues. Agora não, a comunidade assumiu o controle. A gente pode passear, os velhos podem ficar ao sol e as crianças brincam nas praças. Tudo isso só foi possível com o poder popular”. Dos milhares de apartamentos populares que compõe o bairro, assomavam, nas janelas, as cabeças dos mais ferrenhos defensores da revolução bolivariana. Foram eles que, no golpe de 2002, desceram rua afora até o palácio, prontos a defender com armas e com a vida o governo de Hugo Chávez. Aquele era um bairro mítico e não havia como não se arrepiar ao andar pela calle La Silsa , uma rua imensa, cheia de casas e muros pintados com grafites pró-revolução. 

É essa Venezuela, prosaica, que hoje me assalta, enquanto celebro a semeadura desse homem que marcou a vida da América Latina. Sinto o cheiro do Cristal, o barulho do elevador, a alegria da Sabana Grande, o olhar cheio de eternidades daqueles que acreditaram na revolução bolivariana, dos que o amaram e o amarão. Como eu! 

Um trago, comandante!  


sábado, 1 de março de 2014

Sob o olhar de um menino





Ele é um espoleta. Guri ainda miúdo, que presta atenção em tudo, com olhos graúdos e coração alerta. No meio dos cachorros e das galinhas, ele brinca de super-herói. Mascarado, pula pelos troncos e pedras do quintal, salvando o mundo. Porque, afinal, são tantas as maldades que precisam ser vencidas. Dia desses, numa das tantas praças do Uruguai, abraçou-se a Artigas, porque o general dos povos livres parecia solitário. Identifica-se com os perdidos da história e sonha viajar de Rivera até Florianópolis num balão. Já tem até uma bússola para guiar seu voo de felicidade. Faz perguntas difíceis e guarda as respostas como quem vigia um tesouro.

Outro dia, ouviu atento as conversas da casa sobre a notícia de que a Câmara de Vereadores de Porto Alegre havia votado e decidido que, a partir de agora, seria crime participar de qualquer manifestação mascarado. Matutou, correu para lá e para cá, seguiu sua vida. Hoje, ouvindo as notícias sobre o Carnaval no Brasil, ficou, de novo, daquele jeito pensativo. Então, com sua carinha franzida e os olhinhos apertados, perguntou, curioso e perplexo:

- Mãe, o carnaval é um tipo de manifestação?
- Sim!
- E as pessoas vão poder ir mascaradas?
Pois é, Simón Ernesto.. quem pode entender todas essas contradições!!!

E ele, ainda matutando as incongruências dos governantes, pegou seu uniforme de herói e saiu a esgrimir os inimigos imaginários. Sabe deus que caraminholas andariam a pulular na sua cabecinha de menino. Mas, estava de máscara, porque lá no Uruguai, elas ainda podem ser usadas, seja no carnaval ou não. 

Tarrafa elétrica - uma beleza!

Fotos: Leandro Pellizzoni



Aquele que canta sua aldeia, canta o mundo. Está no rumo do universal. E assim é o Tarrafa Elétrica, um grupo de músicos de Itajaí que está há dez anos dizendo das coisas da cultura do litoral de Santa Catarina. É tarrafa porque nasce na beira do mar da cidade dos contêineres, vigiando a sardinha e os sentimentos cheios de pureza da gente praieira. E é elétrica porque, além de incorporar a guitarra numa pegada bem boi-de-mamão, acende uma beleza profunda em qualquer um que escute suas canções cheias de simplicidade e de raiz.

E foi para esse encantamento que o Teatro Alvaro de Carvalho se abriu no último dia 25 de fevereiro. Recebeu os garotos de chapéu de palha e sotaque litorâneo para um passeio no barco da cultural local. Um espécie de risoto de marisco com caldo de peixe. Foi hora de mergulhar nas letras que nascem da vida mesma, da observação sistemática da vida das gentes que trabalham e sonham na beira do mar, que contam das alegrias e tristeza de pessoas reais. E foi hora de viajar na música que mistura ritmos de todas as partes desse imenso brasil, de coloridos gostos, mas sempre fincada na raiz de um povo que decidiu enfrentar as idas e vindas do rio Itajaí, no seu eterno romance com o mar.

Assim que uma hora de música com o Tarrafa Elétrica é esse balançar nas ondas, esse gingado da brincadeira do boi, essa malemolência da gente do mar. É respiro dessa mistura índia, branca, negra, capira, que nos faz quem somos. Na percussão, sente-se o chamado vital, telúrico, que sobrevive na cultural litorânia, a despeito de tanto colonialismo cultural e mental.

O Tarrafa Elétrica  traz a gente de volta para a beira da praia, para o princípio dos tempos e, num átimo, nos atira para o futuro, misturado e mestiço. É beleza, é balanço, é riqueza.

Nesses dez anos de estrada, cantando as coisas do litoral, a banda pouco toca nas rádios movidas a jabá ou dominadas pela indústria ideológica. Mas, vai avançando através daqueles que a conhecem e que, fatalmente, se apaixonam pela música peixeira. Das cordas, metais e percussão vai se desfiando uma linha que eles lentamente soltam pelo mar da vida, e da tarrafa saltam aos borbotões toda a sorte de  belezas que não apenas o que vivem nessa terra podem apreciar. “É um pouco do tarrafa que é linhada, é linhada de cultura”....

Ouçam, que maravilha...

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A difícil arte de ser desimportante



No geral, sou uma otimista. E crente. Acredito piamente no outro. Para mim, como diz o poeta, o outro sempre é o paraíso. Então, não raro me surpreendo – para o bem e para o mal. Assim há dias que venho mastigando uma mágoa, uma dor, um não-sei-que. Tem a ver com essa coisa demasiado humana, que é o desejo de comandar, de ser o dono, o que decide, o que determina, o que faz acontecer. E, que, por isso, não admite qualquer sombra. Para esses seres, o outro é sempre uma ameaça. Tudo bem que sintam medo, mas há os que agem com má fé. E intrigam, puxam o tapete, fazem denúncias vãs. Tentam assim, afastar de si, com maledicências, aqueles que, como eles, buscam a mesma coisa.  

Ruminando essas coisas, estive a falar com uma mulher que é uma grande mestra pra mim. E, ela, na sua generosidade, me lembrou de uma velha parábola, dessas que contava Jesus. Pois diz que andava ele a passear pelos caminhos quando um dos discípulos lhe chegou a contar, esbaforido, que outras pessoas andavam a tirar demônios das gentes. Coisa que só Jesus podia fazer, segundo ele. “É um absurdo”, vociferava. E Jesus, tranquilão, mastigando uma haste de trigo, perguntou: - E os demônios estão saindo? – E o discípulo: - Pois, sim – E Jesus: - Mas, então está bem. É o que importa. Não quem está tirando.

E é essa observação tão simples e certeira que deveria valer nesse nosso miserável mundo da luta política. Teríamos de andar todos a “tirar demônios”, sem hierarquias, sem temores. Fazer o que é preciso para acabar com esse mundo de exclusão, de violência e de opressão que o capitalismo aprofunda. Deveríamos ser solidários com quem trabalha, faz coisas boas, participa das lutas. Mas, não. Pessoas há que querem o monopólio da revolução. E muitas vezes, nem é com a radical mudança que realmente sonham.  Pois é aí que muita coisa desanda.

O fato é que, como diz Maturana, o nosso imperativo genético é a cooperação. Não há espaço para  competição no mundo humano. Ela é anti-natural, não constrói, não ajuda. Só a junção das forças, a solidariedade, o trabalho em comunhão faz a raça avançar. Essa coisa que os zapatistas entendem tão bem quando colocam o pasamontañas e tornam-se todos um só. São comunidade, porque é o que importa preservar. Cada um de nós vai voltar ao pó dia desses, e a raça seguirá seu caminho, sem a nossa intervenção. Somos esse sopro ínfimo, esse atma, essa poeirinha cósmica. Desimportantes no grande livro da vida, se pensarmos na nossa ação singular. Somos mais, no coletivo.

Vai daí que essa é a grande tarefa ainda a se cumprir. Compreender nossa pequenez e, na grande teia comunitária, ser um nó, forte e definitivo. Não importa quem protagoniza, quem comanda, que está na frente. Importa que a gente avance e expulse os demônios, caminhando com o próximo e o distante, afastando a dor, a miséria, a violência, a opressão.  Mas, esse ainda é um longo caminho da raça... tão distante quanto necessário!


Enquanto não se aprende essa lição, há que se tentar compreender o que intriga, e desarma, e destrói. O que não significa aceitar. E a vida segue, no galope...