sexta-feira, 20 de março de 2015

Cruz e Sousa, ainda sem descanso

























A imagem é de abandono. No jardim do belíssimo palácio, que já serviu de abrigo aos governantes de Santa Catarina, um pequeno espaço foi construído há oito anos para receber os restos do poeta mais importante do simbolismo brasileiro: Cruz e Sousa. A ideia era tornar o memorial um espaço de consulta de sua obra e também de outras obras que falassem do seu trabalho poético. Mas, nada saiu do papel. O lugar onde deveria estar a biblioteca e informações sobre o famoso poeta está abarrotado de lixo e móveis velhos. O piso, de tábuas soltas, está interditado, pois pode desabar a qualquer momento. O painel de mármore, que abriga os restos do poeta, é a única coisa que persiste, impávido, numa resistência muda contra o esquecimento. Uma vergonha para Santa Catarina que Cruz e Sousa seja tratado assim, apesar de viver nas bocas das personalidades políticas da cidade. È como se, de novo, seu corpo fosse jogado entre os bichos, como quando ele morreu em Minas e foi transladado para o Rio, atirado dentro de um vagão destinado aos cavalos. 

Para denunciar esse descaso, militantes do Movimento Negro Unificado de Florianópolis, apoiados pelo mandato do vereador Lino Peres (PT), realizaram nesse dia 19 de abril – data que marca 117 anos da morte de Cruz e Sousa – um ato/protesto em frente ao memorial, nos jardins do Palácio que leva o nome do poeta. Como bem lembrou Maria de Lurdes Mina, a Lurdinha, do Movimento Negro Unificado, as condições do memorial do maior poeta do simbolismo concretizam o racismo da sociedade catarinense. Cruz e Sousa era negro. Seria por isso que sua memória estaria tão aviltada? Comparando com os cuidados que se têm com o Museu Vitor Meirelles, que reverencia um dos mais importantes pintores catarinenses – branco – Lurdinha pôs em relevo a qualidade do material da obra. “Em oito anos anos, o memorial cai aos pedaços, sem cuidado, sem manutenção. Não que o museu de Meirelles não mereça, mas esse memorial foi abandonado. É chegada a hora de os negros ocuparem esse lugar”. 

Iluminadas por lampiões e pelas luzes da rua, foram ecoando as vozes negras, um clamor na cidade de cimento, tão forte como a poesia rica desse homem único que expôs em verso o amor e a dor. 

“Ao menos junto dos mortos pode a gente 
Crer e esperar n'alguma suavidade: 
Crer no doce consolo da saudade 
E esperar do descanso eternamente. 
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente 
Não perde a sua viva claridade; 

Cantam as aves do céu na intimidade 
Do coração o mais indiferente. 
Os mortos dão-nos paz imensa à vida, 
Não a lembrança vaga, indefinida 
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos. 
Nas lutas vãs do tenebroso mundo 
Os mortos são ainda o bem profundo 
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.”

Filho de escravos alforriados Cruz e Sousa teve a sorte de contar com uma educação refinada, proporcionada pelo antigo “dono” de seus pais. Chegou a estudar com Fritz Müller, com quem aprendeu matemática e ciências naturais. Mas, logo sentiu o chamado da escrita e seu caminho natural foi o jornalismo. Dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual usava sua pena para combater a escravidão e o preconceito. Apesar de “estudado” sofreu na carne o racismo mais vil, sendo recusado para o cargo de promotor em Laguna unicamente por ser negro. Desiludido com sua terra natal, que lhe barrava a vida por conta da cor, foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil. O emprego lhe permitiu uma folga para escrever e produzir seu mais belos poemas. 

Casou e teve quatro filhos. Mas, ser negro no final do século 19 não era fácil. A vida se arrastava em misérias. Seus filhos morrem de tuberculoso e a mulher, gavita, enlouqueceu, também morrendo em seguida. Ele também, mergulhado em tristeza, ficou tuberculoso. Buscou tratamento em Minas Gerais, mas a ceifadora não o poupou. Morreu no 19 de março de 1889. Seu corpo, embrulhado num pano, foi jogado num vagão de cavalos, para que chegasse no Rio de Janeiro onde foi sepultado por poucos amigos. Só em 2007 os seus restos mortais foram trazidos para Santa Catarina, ocasião em que se construiu o memorial, nos jardins do palácio Cruz e Sousa. E, hoje, por ironia – ou por racismo mesmo, conforme foi denunciado – sua memória está ali, jogada, de maneira vil, sem o cuidado que merece. 

Na fala dos militantes que se manifestaram, uma certeza: o memorial não pode ficar como está. O governo do Estado terá de garantir os recursos par a recuperação e para o uso do espaço, que precisa ser visitados por estudantes, para que as novas gerações conheçam aquele que é cantado na Europa como o maior poeta simbolista do mundo, e que, na sua própria terra, é esquecido entre tralhas e abandono. 

O grito do povo negro fez-se dança, na capoeira, e fez-se música, na voz dos integrantes da velha guarda das escolas de samba Coloninha, Protegidos e Copa Lord, que se uniram para reverenciar o poeta. “Vai amanhecer, as flores vão crescer e enfeitar a cidade. E, sem repressão, o povo vai abrir o coração para a liberdade”, explodiu a música de Carvalhinho, enquanto o corpo malemolente do seu Lidinho bailou na noite. Foi um momento único. Na bruxuleante luz do lampião, a noite negra apontou “o assinalado”, o cisne negro, Cruz e Sousa, nosso poeta maior. E os que vieram se arrepiaram, cantaram e dançaram para ele. 

“Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma desventura extrema;
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco á pouco.

Na natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco.”

Cruz e Sousa, por ele mesmo. E, para os que celebraram essa vida linda, ficou o compromisso: dar vida ao espaço, ocupar e produzir cultura.  

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