sexta-feira, 4 de abril de 2025

A mais-valia ideológica explodiu


Lendo um artigo de Lucas Aguillera, no sítio Nodal, me deparo com a informação de que o argentino médio passa mais de oito horas com os olhos grudados no celular e que mais de 70% da população mundial já tem acesso a esse inoportuno telefone de mão, igualmente abduzido pelo rola-tela em horas a fio. Vejo isso aqui mesmo, na minha aldeia. Há, portanto, uma extraordinária concentração da vida nestes aparelhos que combinam trabalho, vida pessoal, lazer, espiritualidade, tudo ao mesmo tempo agora, desfazendo todas as fronteiras e limites. E, se até então, o capital consumia nossa vida apenas no horário de trabalho, roubando-a a partir da mais-valia, ele agora se imiscui em todos os espaços da existência, exigindo mais e mais, como o deus Moloc.

Com o telefone na mão as pessoas não têm mais horário para o trabalho. A qualquer momento uma mensagem exige algo, 24 horas pulsando. A pessoa está no ônibus e está trabalhando, não está no cinema e está trabalhando, está no parque e está trabalhando. Há quem criou que isso é um ganho, empreendedorismo.

Mas isso não é tudo. O celular também é espaço de roubo da mais-valia ideológica, para usar um conceito de Ludovico Silva. Esse pensador venezuelano, ao estudar a televisão, viu que o trabalhador quando chegava a casa (acreditando estar no seu momento de descanso) e ligava a televisão, estava igualmente capturado pelo capital. Na telinha, entre um programa e outro, as propagandas o incentivando a comprar, comprar, comprar, eram o capital concorrente, bem como as mensagens subliminares escondidas nas novelas, entretenimento etc… Nas palavras dele: “Assim como na oficina da produção material capitalista se produz como ingrediente específico a mais-valia, assim também na oficina da produção espiritual do capitalismo se produz uma mais-valia ideológica cuja finalidade é fortalecer e enriquecer o capital ideológico do capitalismo: capital que, por sua vez, tem como especificamente protegido e protegido o material de capital”.

Pois agora, com o celular, essa produção de mais-valia ideológica é colocada na enésima potência. Daí a importância de se voltar para Ludovico. As plataformas das redes sociais mudam a cada minuto os algoritmos que tentam empanturrar as pessoas com mercadorias para comprar e ideias de jerico para defender. É um carrossel alucinado. As informações são repassadas sem qualquer contexto virando uma algaravia sem sentido e, ao final de mais de 15, 20 horas de rolagem da tela, tudo o que fica é absoluta sensação de vazio e o desejo de comprar.

As plataformas não nos pertencem, então não dá para ter a ilusão de que podemos mudar por dentro. Não dá! O que nos leva ao óbvio. O problema não são as plataformas, mas o modo como o mundo se organiza neste modo de produção. As tecnologias só ajudam a fortalecer e manter essa barbárie. É na realidade material da vida, nas ruas, na luta política, na organização coletiva que pode haver alguma chance de mudar as coisas. É certo que as pessoas estão obnubiladas (cegas), anestesiadas pela luzinha azul da tela do celular, que incutem a ideia de que isto é o perfeito.

Mas, sempre é possível desligar o aparelho e olhar para a vida mesma. Quando a gente enxerga, a proposta de mudança é a única possível. Uma única!

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O livro de Ludovico Silva, “A mais-valia ideológica”, faz parte da Coleção Pátria Grande, do IELA, Volume 3, e pode ser encontrado em www.insular.com.br

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Do horror


Sim, sigo despertando no meio da noite, assombrado pelo horror que vem sendo cometido contra o povo palestino, todos os dias, pelo estado de Israel. Vi, ontem, que os soldados de Israel mataram, um a um, no mesmo esquema de execução, 15 paramédicos e uma equipe de resgate. Ou seja, não satisfeitos em arriscar o mundo dos palestinos, querem exterminar qualquer um que resolva ajudar. Isso não é crime de guerra. Não há guerra. O que há é genocídio. Essa gente não pode seguir impune.... E o que me tira o sono é saber que sim, seguirão impunes, e a gente nessa impotência sem tamanho... Os governos que podem mudar isso, não fazem nada.. é aterrador!

domingo, 23 de março de 2025

os perrengues



A vida da gente é esse rodopio incessante de pequenos sobressaltos. Na última semana, por exemplo, num calor de mais de 30 graus, o sistema desintegrado de ônibus me deixou na mão duas vezes. Na primeira vez, calor dos infernos, carro sem ar-condicionado, cheio até a boca, veio pela Gramal sofrivelmente, fazendo um barulho estranho. “Essa porra vai parar”, eu pensei, e os usuários se olharam cada um torcendo para que o busão fosse o mais longe possível. Não deu. Umas quatro paradas depois do Hiperbom o ônibus parou. “Tem que descer, pessoal”. Putz! Tinha quase todo o Gramal pela frente e depois ainda o caminho vicinal até em casa. Toca andar porque até chegar o ônibus reserva passaria um dia inteiro. Sol na moleira lá fui eu, suando em bicas. Obviamente cheguei a casa praguejando. Maldito Topázio. 

Na segunda vez foi dentro do mesmo terminal. Cheguei da UFSC vindo por Tirio/Titri. Ninguém na fila. Glória a Deus. Poderia ir sentado já que o horário que sairia em seguida era o Eucalipto, que leva uns 40 minutos até passar no meu ponto, depois de dar a volta em três bairros. Eu ali, bem faceira, primeira da fila. Chega o ônibus, abre a porta e eu entro, aboletando no meu banco preferido perto da porta. Os minutos passam. O ônibus enchendo. Quando dá a hora, vem o motorista. Liga o carro e nada. Só aquele barulho estranho, sem fazer a ignição. O motorista Pragaja. Liga e liga e liga, e nada. “Vai ter de descer, pessoal”. Puta merda. Desce todo mundo, sem qualquer respeito à fila e na confusão eu fico lá no final. Quando vem o carro novo, entra no mundo todo e eu fico em pé. Maldito Topázio. 

Ontem, calor da peste, desço eu no meu ponto na Gramal e venho me arrastando, ao sol, pela rua de casa, que dá quase uma milha até chegar. Lá longe avisto o “Malino” que é o nome que eu dei a um cachorrinho que vive numa casa da rua. Ele vez em quando escapa e fica deitado bem no meio da rua. É uma cruz de pincher com algum vira lata, porque é grandinho, mas tem o gênio pincher. Há que ter uma técnica para passar por ele sem ser atacado. A gente não pode fazer contato visual. Se olhar pra ele, arreganha os dentes e vem pra cima. Quando o pai ainda estava vivo era um perregue quando a gente saia porque eu dizia: não olha, pai. Pois aí mesmo que ele olhou e o malininho atacou. Pensei, vou dar a volta, mas isso significaria caminhar de volta até o final da rua e depois vir pela rua paralela, que dava mais um quilômetro. Era muita mão. Arrisquei. Ergui a cabeça como o olhar o céu e avançar. Ele deitadão bem no meio da rua. Estava tudo indo bem, eu passando, ele quieto, eu passando. Quando finalmente passei por ele arrisquei um revesgueio. Carambolas! Péssima ideia. Ele arreganhou os dentes e atacou. Lá vou eu correr do malino, me defendendo com a bolsa, enquanto ele me persegue até o portão. Desgrama! Aqui não posso dizer maldito Topázio, afinal desta o prefeito não tem culpa. Entro, esbaforida. É só mais um dia normal.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O pátio da Dona Noêmia




Quando eu tinha 4 e 5 anos morava numa casa de esquina na rua João Palmeiro, em São Borja. Era uma casa grande, com um quintal imenso, mas o que me atraia mesmo era o casarão que ficava em frente, na outra esquina: a casa da Dona Noêmia e do seu Aparício. Ali viviam os dois com os seus filhos, uma das quais, Maria Elena, seria aquela que me levaria para o colégio, meu inesquecível primeiro ano no Francisco de Miranda, no bairro do Passo. Tenho-a na lembrança como minha primeira mestra, ainda que não tivesse sido minha professora. Era ela quem me pegava pela mão até o ônibus que nos levaria para escola, bem longe dali. Imagino eu que minha mãe confiasse muito naquela guria para deixar que sua pequena, de apenas cinco anos, fosse estudar tão distante de casa. 

O fato é que eu aprendera a ler muito cedo, ensinada por minha irmã, que fazia seus temas num quadro verde no quintal de casa. Eu via e aprendia. Dizia a mãe que a Maria Elena, ao saber que eu já lia, insistira para que eu fosse logo para a escola e assim aconteceu. Com ela eu empreendia, todos os dias, a longa viagem de ônibus até o Passo, até hoje lugar de minhas mais doces memórias.

Por conta dessa amizade, era comum a gente estar por ali, no pátio da casa da Dona Noêmia, brincando. Era um desses lugares de encantamento, cheio de plantas e um pouco úmido, onde assomavam flores coloridas. No meio dele um enorme poço, do qual a família abastecia a casa. E no seu entorno não era raro a gente encontrar algum desses sapos enormes, acostumados a viver no meio dos musgos. Tenho marcada na memória a figura da dona Noêmia puxando o balde enquanto seu Aparício tomava chimarrão na sombra da área. 

Agora em janeiro passei por São Borja, bem rapidamente, quando fui levar as cinzas do pai. E não poderia deixar de visitar minha querida primeira mestra, Maria Elena. Para minha alegria, além de abraça-la pude encontrar, linda, lúcida e cheia de memórias, a inesquecível dona Noêmia, hoje com 99 anos. Foi um desses momentos estelares, quando a alegria se faz plena. Tomamos tererê (os termômetros marcavam mais de 40 graus) e revivemos os bons tempos, contando da vida. 

Dona Noêmia, quase completando um século, lembrava cada detalhe daqueles tempos nos quais fomos vizinhas. Foram muitas risada e uma profusão de boas recordações. Quando chamei para registrar o encontro numa foto, ela levantou, bem serelepe, e foi ao banheiro pentear o cabelo para sair bem bonita. Uma querida. Naquela tarde calorenta com a cidade ardendo sob o sol, nós três desfrutamos da frescura da amizade que não morre. Passados quase 60 anos daqueles dias na João Palmeiro, o pátio da dona Noêmia segue sendo lugar de absurda beleza. O grande casarão não existe mais, mas aquele jardim secreto continua vivo na nossa memória.



sábado, 25 de janeiro de 2025

Museu Getúlio Vargas








Dos seis aos 10 anos vivi colada na vida de Getúlio Vargas, em São Borja. Minha família morava numa casa de aluguel pertencente à Dona Dília, getulista roxa. Bem em frente ao casarão do qual ocupávamos a metade estavam os fundos da casa do filho de Getúlio, Viriato, e alguns metros à frente, a casa do próprio Getúlio. Andar por ali era caminhar na história. Foram incontáveis as vezes que brinquei nos jardins da casa do Viriato com outras crianças que eram filhas das empregadas da casa. Ao contrário da casa do Getúlio, que sempre foi um típico casarão da Banda Oriental, a casa do Viriato se destacava como uma mansoneta moderna, com um imenso pórtico de pedras. 

Neste janeiro fui à São Borja e como não poderia deixar de ser fui visitar minhas memórias. Lá estava a casa da Dona Dília, sólida e impecável, bem como a do Viriato, esta transformada agora em uma empresa. Mais dois passos e Getúlio me acolhia com uma boa cuia de chimarrão. É que hoje tem uma estátua dele, sentado num banco, em tamanho natural, bem em frente ao casarão. 

A casa que hoje abriga o museu foi construída em 1910 e para ela se mudou Getúlio no ano seguinte logo após o casamento com sua esposa Darcy. Era ali também que ele tinha seu escritório de advocacia, no qual atendia a gente de São Borja, ricos e pobres. O museu foi idealizado pelo seu filho mais velho, o Dr. Lutero, e em 1984 foi inaugurado.  Ali se pode acompanhar a trajetória política do caudilho, ver os seus objetos pessoais, móveis, livros, documentos, roupas, discos, retratos e até a máscara mortuária. Getúlio está sereno na sua expressão final. 

Aquele dia em São Borja estava especialmente calor, com a sensação térmica acima dos 40 graus, ainda assim, por conta do pé direito bem alto, a casa se mantinha fresca e a visita pode ser feita com vagar. Por conta das mudanças na política local, a professora que atendia como guia havia sido transferida para outro espaço municipal e a casa contava com apenas uma trabalhadora. Ela não sabia dar muitas explicações sobre os objetos e a vida de Getúlio, mas era visível seu carinho pelo presidente. “Ele foi o pai dos pobres”.

E assim, enquanto a cidade ardia no calor, percorremos os cômodos reverenciando aquele que muito fez pelo Rio Grande, pelo Brasil e pelos trabalhadores. Foi o presidente que abriu a porteira do capitalismo moderno, mas que, ainda assim,  mantinha firme seus ideais nacionalistas. 

Para mim, a Elaine menina, além de ele ser o pai do seu Viriato, em cuja casa nos esbaldávamos, já aparecia como uma espécie de herói visto que meu pai tinha por ele muito respeito. Naqueles dias eu pouco sabia de sua história, mas já lhe queria bem, porque meu pai dizia que ele protegia os empobrecidos. Hoje conheço sua vida e suas contradições, e continuo lhe querendo bem...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A segurança é matar


Foto: Luiz Damasceno (Ocupação lanceiros Negros – Porto Alegre) 

Circula um vídeo nas redes sociais no qual uma mulher, supostamente israelense, é entrevistada. O repórter pergunta: sabes quantos civis foram mortos em Gaza? Ela responde: são todos merda. O repórter insiste: ok, mas você não sente pelas crianças, os filhos? Ela faz uma pausa e arremata: filhos crescem para ser árabes. Ou seja, não importa. São árabes. E sendo árabes merecem o extermínio. Simples assim. Nenhum sentimento a não ser a indiferença. 

No Equador, quatro garotos negros que jogavam futebol nas ruas do seu bairro, Las Malvinas, em Guayaquil foram sequestrados por militares, sob a suspeita de que tivessem cometido um furto. Pois estes militares os levaram para o campo, próximo a uma Base Aérea, esquartejaram e tocaram fogo.  Eles permaneceram sumidos do dia 08 de dezembro até a véspera de natal, quando os restos foram encontrados. Meninos pobres, com idade entre 11 e 15 anos. Para os milicos e para a sociedade, potenciais criminosos. Logo, suas mortes podem ser encaradas com indiferença. 

Não precisamos ir mais longe. No Brasil, esse massacre contra os pobres acontece todos os dias nas periferias das grandes cidades. A cor da pele e situação financeira são elementos indissociáveis para que os indivíduos sejam vistos como suspeitos e a execução é segura. Quem não se lembra da família metralhada com mais de 80 tiros no Rio de Janeiro? E os policias saíram limpos, sem qualquer penalidade.  Na sociedade fica o sentimento de segurança, afinal, assim como para a mulher israelense, crianças pobres crescem e viram criminosas. Destino manifesto. Nenhum policial pensaria em agir assim num condomínio de luxo.

Em Florianópolis, policiais mataram um conhecido personagem da Praia da Solidão, Ernesto Schimidt Neto (o anão Betinho) que seguidamente tinha surtos de violência por conta de distúrbios psicológicos, mas sempre controlado por familiares e vizinhos. Desta vez não houve tempo. Os policias chegaram e, ao vê-lo com uma faca, dispararam mais de cinco tiros. Vários policiais contra um anão. 

E assim poderíamos seguir com os exemplos. O sistema capitalista precisa dos pobres para o seu exército de reserva. Precisa do trabalho vivo, aquele que potencialmente pode ser utilizado para gerar valor. Mas, como há muitos, ele não se importa, diante da menor suspeita, de exterminar alguns. A lógica é a mesma, em Florianópolis ou em Israel. Pessoas empobrecidas são ameaças em potencial. Pessoas acossadas pela violência, pelo desamparo, pela miséria são eternos “suspeitos” e uma bala nos cornos nunca será desperdício. Garante a segurança. 

Assim toca a banca, lá longe e aqui. E boa parte das gentes concorda que são “pequenas falhas”, “casos Isolados” e a “solução” para evitar problemas maiores. Leio os comentários que agora são possíveis neste tipo de matéria e me assusto. Cada dia mais me convenço que o que temos é uma espécie – o homo sapiens – mas que poucos deles conseguem se construir humanos. Haverá possibilidade de isso acontecer? Tenho dúvidas.