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O pai e as lembranças
Quando eu era pequena, dizia-se “caduco” para os velhinhos que esqueciam coisas, e faziam algumas peraltices. Hoje colocaram nome de doença na simpática caduquice: Alzheimer, demência. Naqueles dias eu achava que as pessoas esqueciam só as coisas que lhes traziam alguma dor. Entendia aquilo como sabedoria. Os velhinhos voltavam a fazer coisas da meninice e isso só lhes trazia prazer. Vi muitos dos meus queridos envelhecerem: tios-avôs, tias-avós, avôs e avós. Alguns deles acompanhei bem de perto. Minha vó materna por exemplo era eu quem carregava para lá e para cá, do Rio Grande à Minas, até quase ao final da vida.
Hoje, com o pai, percebo isso também. Ele esquece o que já lhe doeu. Mas, lembra muito bem o que abre nele espaços de alegria.
Uma coisa que descobri, por acaso, é que ele lembra de falar espanhol. E penso que é porque isso evoca nele momentos de muito contentamento. Somos da fronteira, e o espanhol é praticamente língua-mãe. A vida toda ouvimos rádio, vimos televisão e passeamos pelas “calles” argentinas e uruguaias, portanto o “castelhano” nos é muito familiar.
Outro dia, quando o pai acordou emburrado, pensei em falar com ele em espanhol, acho até porque estava lendo alguns contos de Roa Bastos.
- Buenos dias, señor Tavares, que tal estás?
E ele abrindo um sorrisão.
- Muy bien, señorita, por aqui nos vamos muy bien.
Desde aí procuro falar com ele em espanhol, e ele sempre responde prontamente. Às vezes, quando me ajuda a secar a louça, encerra os trabalhos, pendurando o pano e dizendo pra mim: todo listo!
Quando saímos para o passeio diário, digo: Adelante, compañero. E ele responde: a la carga, señora.
Acho isso incrível, porque sem que eu precise perguntar se ele lembra de algo da vida na fronteira, essa vida assoma naturalmente, nesses pequenos flashes de lembranças. E eu quase volto a ser a guriazinha curiosa que ia com ele para Santo Tomé comprar balas Mumu. É uma maneira bonita de seguirmos conectados com nosso passado.
A la carga, nos vamos!
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