sexta-feira, 28 de junho de 2013

A mulherzinha pequena




Era um menino. Seu cotidiano era correr pela rua de areia, perseguir os gatos, empinar pipa, caçar corujas, jogar carreira com os cães, pular poças de água, jogar amarelinha. O momento mais tenso era o ir para a escola. Fechava a cara, resmungava renitente e seguia pela estrada afora, carregando, mal-humorado, a velha sacola dos livros. Não lhe agradava aquele tipo de lugar. Muitas regras, muita atenção, muito cuidado com coisas desinteressantes. Assim, àquelas horas da manhã era puro aborrecimento. Passava a maior parte do tempo olhando para a janela, como se o simples fato de ver o “lá fora” trouxesse a liberdade. E o tempo ia escoando, enquanto ele contava os minutos para sair feito um bólide, perseguindo alguma borboleta.

Ele não lembra bem quando ela chegou, como foi, o que aconteceu, sequer o seu nome. Só sabe que aos poucos, aquela mulherzinha pequena foi prendendo sua atenção. De alguma forma ela colocou mágica nos aborrecidos deveres de matemática, os números passaram a fazer sentido, dançavam, coloriam, inventavam mundos. Seu cheiro de hortelã, sua risada sapeca, e aquela piscadela marota quando queria convencer que a coisa mais bela do mundo era a tabuada, tudo somava para enreda-lo numa deliciosa rede de descobertas. Quando a sineta batia e ele arrancava para fora da escola, a rua ia assumindo outros contornos e ele se via fazendo contas. Uma borboleta, mais uma joaninha, mais uma cigarra eram três integrantes da banda de música do jardim. Bem assim ela ensinava.  E ele ria o riso cristalino de quem estava a descortinar as coisas importantes da vida. A rua e a escola agora combinavam. Conhecer era isso: combinar, sem alienar a fantasia.

O tempo passou, o menino cresceu. E por mais que a turba de alienados fosse grande ao longo de toda sua vida escolar, aquela mulherzinha pequena que lhe ensinara matemática nunca saíra de sua cabeça. Fora por ela que seguira a louca ideia de ser cientista, de arranjar-se com números a descobrir os segredos do universo. Vez ou outra, quando as coisas embaralhavam ele sentia o cheiro de hortelã, e mergulhava outra vez. Nas manhãs de outono, quando fraquejava diante de uma equação insolúvel, podia ouvir a risada de cristal anunciando que bastava olhar para a vida mesma que ali estariam as respostas. Os números voltavam a dançar e tudo clareava.

Ontem, de inopino, ele prestou atenção ao filho pequeno que ruminava pragas enquanto se arrumava para ir à escola. Era um pequeno homenzinho, sem rua de areia, sem pés descalços, sem nariz ranhento,  sem borboletas. Seu mundo era o quarto, onde visitava universos inóspitos através do vídeo game. “Conte-me sobre os teus professores... Existe algum que faça os números dançarem? Alguma que tenha riso de cristal e cheiro de hortelã?” O guri olhou de revés. “Bebeu, pai? Na escola só temos regras, e ordens, e gente chata”. E saiu, emburrado, carregando o mundo nas costas. O homem ficou, perplexo, dando-se conta que a escola já não é mais espaço mágico onde a rua combina com os saberes formais. Mudou o tempo? Mudou a escola? Não existem mais mulheres que conseguem ser meninas de riso solto, saltitando pela fantasia, apesar de já serem gente grande?

Sentiu pena do filho e de todos os outros que não se encantarão com números, ou letras, ou fórmulas, ou fatos. Pensou que é preciso que haja mais gente capaz de entender, de fato, de almas de meninos, como aquela mulherzinha pequena, de tantos anos atrás...

Um comentário:

José Alberto Lopes disse...

Belíssimo texto vc. escreveu.Adorei tê-la visitado.--Valeu-- Bjsss-- JAL.