sexta-feira, 28 de junho de 2024

Universidades perderam seus HUs

Dr. Wladimir Tadeu / UFF

Quem vive em Florianópolis sabe a importância que o Hospital Universitário tem. Inaugurado em 1980 foi se tornando uma referência de saúde pública em todo o estado, por conta da qualidade de seu pessoal. Os mais importantes professores da UFSC, das mais variadas especialidades da saúde, ali atuavam, e o corpo técnico, formado por trabalhadores públicos, sempre foi considerado de primeira qualidade. Não é sem razão que todas as manhãs podiam ser vistas as ambulâncias de inúmeros municípios de Santa Catarina trazendo pessoas para tratamento ou emergências. Além disso, o HU era um hospital escola. Ali eram formados trabalhadores da saúde em várias especialidades, com milhares de atendimentos por dia. Por isso, dizer HU era dizer qualidade. 

Mas, com o sistemático desmonte do serviço público e o rebaixamento de verbas para a universidade federal, aos poucos o HU também foi sofrendo as consequências. Dificuldades crônicas foram se agravando e começou a se consolidar o discurso de que o grande problema era estar vinculado às verbas da UFSC. A gritaria privatista que vinha crescendo desde o primeiro mandato de Fernando Henrique, encontrou abrigo no coração do primeiro governo de Luís Inácio. A partir daí começou a se gestar a ideia de desvincular os HUs das Universidades, para dar aos hospitais “mais capacidade de gestão”. E foi assim que, no último dia do segundo mandato, Lula encaminhou a proposta da criação da Empresa Brasileira Serviços Hospitalares (EBSERH), um fundação pública, mas de direito privado. Ou seja, toda a lógica de gestão obedece ao privado. A palavra pública é só para garantir que recursos do estado fluam para lá. A mesma velha lógica de assalto ao estado e da entrega do patrimônio público a uma meia dúzia de mercadores.

Para o médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Wladimir Tadeu Baptista Soares, trazido pelo Sintufsc em atividade de greve na UFSC, a Ebserh é verdadeiramente uma aberração administrativa. Não há argumento plausível que justifique sua existência a não ser a completa rendição ao Banco Mundial e à iniciativa privada. Sua criação, em 2010, foi um experimento do braço neoliberal do capital no Brasil. “Se desse certo, poderia ser aplicado em outras áreas”, denuncia. 

Wladimir aponta que no contrato firmado entre a Ebserh e o governo está bem claro, no artigo primeiro, qual a sua função: ser exploradora de atividade econômica. Ora, saúde é atividade econômica? Parece que agora sim. A empresa tem sede em Brasília, ocupando um prédio imenso. “Lá, parecemos estar em Dubai”, diz Wladimir. A Ebserh é uma empresa unipessoal, ou seja, não têm acionistas, não tem assembleias para discutir seu fazer e é totalmente dependente da União. Portanto, é o dinheiro público que viabiliza sua rica existência com uma imensidão de cargos, de salários altíssimos. O professor fluminense afirma que se todos esses recursos fossem para os hospitais, como antes, hoje eles seriam umas joias. Mas, o que se vê é o contrário. Onde a Ebserh tomou os HUs os serviços à população só pioraram, bem como também piorou o ensino. A ideia de público se perde.

Para Wladimir a autonomia universitária foi quebrada com o aceite da Ebserh, pois a universidade perdeu completamente o controle dos hospitais. Inclusive não tem nem mais o controle do ensino visto que é a Ebserh quem contrata os médicos e enfermeiros. Não estão mais lá dentro os professores da UFSC, por exemplo, só os contratados pela empresa.  “Existe uma prova nacional da Ebserh com questões de múltipla escolha. Como avaliar um profissional médico assim? E é esse médico que vai ensinar os estudantes residentes. Perdeu-se também a qualidade do ensino dentro do hospital porque ao fechar enfermarias ou setores como emergências, a Ebserh tira do estudante a possibilidade de aprender o cotidiano da medicina. Quem está ensinando nos hospitais da Ebserh são preceptores escolhidos pela empresa, não são mais professores das universidades”. 

Outro problema gravíssimo é que a Ebserh não sofre o controle social do SUS, portanto pode fazer o que bem entender. E, como uma empresa privada, sua função é gerar lucro, logo, sua meta é não gastar com paciente, daí a lógica de acelerar a alta dos internados para que não gerem prejuízo. “Essa empresa não tem patrimônio algum, tudo é público, ela se apropriou dos HUs, nenhum recurso ali é posto pela Ebserh, tudo vem do estado através do REUF e das verbas do programa Mais Médicos”, diz Wladimir. Ele explica que antes desta aberração, os recursos ficavam vinculados ao MEC que os distribuía às universidades. Agora vai tudo para a Ebserh. 

Outro drama que se expressa nos antigos HUs diz respeito aos trabalhadores. Com a chegada da Ebserh há dois tipos de contratos: os trabalhadores públicos, que já atuavam no HU, e os trabalhadores celetistas, que vivem a lógica privada. E o mais grave. Como são geridos pela CLT estes trabalhadores têm data base e recebem reajuste todos os anos, enquanto que os trabalhadores públicos ficam até 10 anos sem qualquer ganho nos salários. “E o cofre público de onde sai o aumento para o trabalhador Ebserh é o mesmo de onde deveria sair para o trabalhador público. Só que não sai,  e isso gera muito conflito dentro dos hospitais  porque há casos de trabalhadores públicos ganharem menos do que o privado, na mesma função”. 

Wladimir também denuncia que os antigos HUs, agora da Ebserh, também não tem porta aberta para os trabalhadores nem para os estudantes. Ou seja, se um trabalhador ou um médico residente enfartar dentro do HU, será encaminhado para outro hospital. “Vários casos assim já foram levantados. É algo inadmissível”.

O que parece ser um absurdo completo tem uma lógica bastante clara: a proposta embutida nessa forma de gestão dos hospitais é a de destruir o SUS (Sistema Único de Saúde). O governo criou uma empresa para fazer o que as universidades já faziam, e bem, que era administrar os hospitais escola. Agora, a universidade não interfere em mais nada e os reitores que permitiram essa barbaridade são cúmplices do crime. É sabido que o SUS é um dos sistemas de atendimento à saúde mais reconhecidos no mundo. Nele, o atendimento é universal. Pobre, rico, brasileiro ou estrangeiro, qualquer um é atendido sem pagar um centavo. Para o capital isso é aberração. Para a população é vida. 

Wladimir aponta que a proposta do Banco Mundial é ir sufocando o SUS até acabar com ele, criando o que chamam de CUS (Cobertura Universal de Saúde), cuja sigla já diz tudo: fazer merda. Os mercadores da doença querem que o atendimento gratuito fique só para os miseráveis, e que o restante da população pague pelo atendimento. O que fica óbvio é que se o CUS passar, o atendimento aos empobrecidos será de péssima qualidade. Hoje, por atender a todas as faixas econômicas, o SUS é de primeira. 

Enfim, no caso da UFSC, onde a comunidade universitária se expressou em mais de 70% contra a aceitação da Ebserh, a entrada da empresa foi aprovada pelo Conselho Universitário em 2014, numa polêmica reunião levada para dentro das dependências da Polícia Militar pela então reitora Roselane Neckel. Todos os envolvidos, a seu modo, são responsáveis pela decadência do HU, que só piorou depois de ser entregue a Ebserh. Hoje, os trabalhadores do regime RJU (públicos) são considerados intrusos dentro do hospital. 

Segundo Wladimir, ainda há tempo de reverter a situação. Em 2026 as universidades poderão rever os contratos e provar que nada do que foi prometido foi cumprido. Isso dá base para a rescisão do acordo. Mas, claro, isso não pode ser uma decisão isolada de um reitor particular. Tem de ser uma articulação nacional, que envolva também as comunidades. Hoje, o contrato da Ebserh é de adesão, a empresa decide tudo, logo, os HUs estão mortos. O que existem são filiais da Ebserh. O nome "universitário" é só uma grife, para pegar trouxa. Recuperar os HUs exigirá uma luta gigante, mas que precisa ser travada em nome da saúde pública. 

Uma grande tarefa para todos nós. Ou fazemos isso, ou estaremos sendo igualmente cúmplices da morte do SUS. 


Securitização só segura os bancos


Está na mão do Lula vetar mais um assalto ao estado aprovado “democraticamente” pelo Congresso Nacional, inclusive pela bancada do PT. É a tal da securitização da dívida pública que é uma triangulação maluca feita para, em bom português, roubar o dinheiro público. A história é assim. As prefeituras, o país ou os estados, tem cada um, um montante de dívidas não pagas. Podem ser dívidas com a previdência, com o IPTU, ou outros tributos de toda natureza. Dizem os governantes que são dívidas de difícil cobrança que, no mais das vezes, não são pagas. Por isso chamam de dívida “podre”. Pois agora, com a aprovação de um antigo projeto do senador tucano José Serra/PL,  o PLP 459/2017, que garante a securitização da dívida, os governantes terão como fazer desaparecer essa dívida de seus balanços contábeis, ainda que ela não desapareça de fato. Uma jogada sacana que permite que role grana para a empresa de cobrança, que haja isenção fiscal para um número expressivo de devedores, e que o dinheiro público seja usado para pagar duas vezes a mesma dívida. Como bem diz o economista Nildo Ouriques “o bom e velho assalto ao estado”. 

A coisa funciona assim: o governo cria uma nova empresa estatal (que depende de recursos públicos) e ela emite papel financeiro (com os valores da dívida). Joga no mercado oferecendo 23% de juros ao ano, um valor altíssimo. “Não existe isso em nenhum lugar do mundo”, diz Maria Lúcia Fatorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida. Aí vem um Banco, ou outra instituição qualificada que opere com milhões, e compra todos esses papéis. Pois bem, qual é garantia que o Banco tem de lucro, se esses são papéis podres? De novo, Fatorelli explica: a garantia passa a ser o fluxo total de arrecadação tributária do município, do estado ou do país, que entra no rolo do negócio. 

Supondo que essa empresa de cobrança consiga cobrar a dívida, o que acontece? Uma parte do dinheiro paga o trabalho da empresa, outra parte do dinheiro remunera o dono da dívida (com juros altíssimos), no caso o Banco que comprou, e só uma terceira parte vai para os cofres públicos. O argumento é: o estado não conseguiria cobrar então é melhor entrar uma parte do que não entrar nada. Parece correto. Mas não é. 

A dívida que é vendida aos bancos ou instituições outras deixa de ser contabilizada como dívida pública e não entra mais no limite de endividamento do município. O dinheiro da cobrança não cai na conta do município, mas nas contas criadas para esse fim específico. Por outro lado, no caso da dívida com a Previdência, por exemplo, a prefeitura, o estado ou o país terá de pagar ao trabalhador. Então, quando chegar a hora deste trabalhador receber seus benefícios, a prefeitura terá de arcar com essa dívida, que na contabilidade não conta mais como dívida. Parece confuso, e é. Uma engenharia bastante intrincada com o único objetivo de abocanhar o dinheiro público. 

Fatorelli explica que essa lei é flagrantemente inconstitucional. Está escrito no artigo 167, inciso 4,  da Constituição, que é proibido vincular impostos, e no caso dessa lei os impostos do município ficam vinculados como garantia aos Bancos. Ela alerta que ao aprovar essa lei a tendência é o orçamento público definhar, porque será necessário pagar os juros dessa securitização. Além disso, é preciso saber quanto as empresas que compram a dívida recebem por fora dos controles orçamentários. No caso de Belo Horizonte, onde isso já acontece, o governo repassou para uma estatal a dívida de 230 milhões, e recebeu de volta 200 milhões, mas, por fora dos controles orçamentários repassou mais de 880 milhões, mais a atualização monetária, para o banco comprador. Fatorelli pergunta: quem aceitaria receber 200 milhões e ficar devendo 880 milhões, mais juros, mais correção monetária? Isso é um assalto. É um sistema insustentável, que endivida ainda mais o município. 

Toda essa engenharia de ¨roubo¨ de dinheiro público servirá para enriquecer uns poucos e para tirar do orçamento os recursos para investimentos na saúde, na educação, na segurança, na moradia, enfim, nas políticas públicas. 

Esse projeto de lei passou no Congresso, sem passeatas, sem atos de protestos, sem nada. E agora só resta a última esperança que é o veto do presidente. Mas, é pouco provável que isso aconteça porque a bancada do PT votou a favor. Ainda assim, ainda é tempo de a sociedade gritar. E exigir o veto a mais essa aberração.