Alzheimer/Velhice

domingo, 23 de dezembro de 2018

Quem cuida do cuidador?



Desde que comecei a cuidar do meu pai, diagnosticado com Alzheimer, há uns três anos, tenho procurado encontrar caminhos para melhor atender as exigências desse tempo da vida. O velho não é criança, então não dá para aplicar as regras do trato infantil com ele. É preciso dar autonomia, fazer com que se sinta capaz, respeitar suas escolhas e vontades. É um processo intenso e difícil.

As coisas ficam ainda mais duras se a gente tem de trabalhar. São pelo menos umas oito horas longe de casa, sempre em sobressalto. Há pessoas que cuidam, mas a gente não descansa. Se o telefone toca, o coração pula, se chega mensagem no celular, o peito aperta. Fica aberto aí um caminho para a doença porque a sobrecarga é grande. O sono é pouco, a pressão aumenta, e a gente parece viver num eterno torpor por conta da vigília intermitente.

Não bastasse o ataque físico, o psicológico também fica roto. Afinal, aquele que cuida está sozinho. Com o tempo, já não há mais tempo para os amigos e muitos vão sumindo. Não é culpa deles, cada um tem seus próprios dramas para viver. A família ajuda, mas a confiança do velhinho se fixa em uma única pessoa e ela é quem carrega o cuidado inteiro. Não é qualquer um que pode dar banho, não é de qualquer um que aceita a comida, o processo de dependência vai criando um torvelinho no qual o cuidador pode sucumbir.

Nesse diapasão, quem cuida do cuidador? Pois, ele mesmo. Ao longo desse tempo nos cuidados com o pai fortaleci em mim uma certeza que eu já tinha de que somos mesmo seres da solidão.  E é isso aí. Não dá para esperar nada de ninguém. Se a ajuda chega, é bom, mas não podemos querer que as outras pessoas venham em nosso auxílio.  Vejo nos grupos de ajuda a familiares o quanto as pessoas sofrem por estarem sozinhas nessa batalha danada. Mas, toda hora de angústia sempre é vivida na solidão. Não tem jeito. Nem mesmo a pessoa que mais nos ama pode viver nossa dor. Ela é nossa. E temos de nos virar com ela. Sei que isso é duro, mas é assim que é.

Podemos nos enterrar na tristeza ou podemos encontrar pequenos pedaços de beleza espalhados pela estrada do cuidado. Aprendi que o meu pai, apesar de seus devaneios, está muito bem. Faço por ele tudo o que posso, o que não posso e um pouco mais. Dedico a ele meu tempo inteiro e sei que isso o faz feliz. Vejo no seu rosto, sinto na sua risada, no seu passo miúdo, sempre me procurando pela casa. Percebo sua confiança na forma como segura meu braço quando vamos passear ou como fecha os olhos, quietinho, quando lhe faço a barba. E mesmo quando explode em violência querendo “ir para casa” compreendo que é coisa da doença e deixo que a raiva passe para depois estreitá-lo em meus braços, dizendo que estarei sempre ali.

Quanto a mim, me esforço para cuidar da casinha que abriga a minha alma. Faço pequenos momentos de meditação. Tomo uma boa cerveja enquanto cozinho. Busco encontrar momentos para encontrar as amigas e os amigos mais próximos, tomar um café, jogar conversa fora, ver as tendências. Também faço ginástica, muita ginástica, fortalecendo o corpo, os músculos, cada pedaço de mim. Basta o pai dar uma folga e lá estou eu estendendo minha toalhinha no chão, dando duro nos abdominais. Procuro ficar forte porque sei que é só comigo que posso contar. Pode parecer meio arrogante, mas não é. Saber da nossa solidão, aceitar isso, é a única maneira de não sucumbir na auto piedade.

Sei que não é bolinho cuidar de uma pessoa velha, com demência, sem grana para cuidadores, ou massagens, ou fisioterapias. Mas, busco me virar à moda cubana, inventando, inventando e inventando, todos os dias e a cada minuto. É assim que eu mesmo descubro as massagens, os exercícios, os entretenimentos. E vou dando jeito, até quando preciso for.  

Por fim, nossos velhos não são incômodos, muito menos castigos de deus. Eles são uma janela para nossa mais profunda humanidade. E se a dureza do cuidado com eles pesa, ela também estende o tapete vermelho para que assome tudo aquilo que é de mais bonito em nós: o riso sem razão, o carinho, a picardia, a ternura, o amor, a compaixão, a vontade de acertar, o cuidado conosco mesmo.

Assim, vamos ficando melhores pessoas. O outro sempre é o paraíso quando ele já existe dentro de nós.



quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Um conto de natal


Um menino palestino

Na madrugada, bateu um vento. Tocou, de leve, o sininho que fica na porta da frente. Acordei, sonolenta, pensando que fosse, talvez, o gato querendo entrar. Mas, surpresa, vi que ali estava um menininho. Olhou pra mim com os olhos imensos, feito duas jabuticabas, e sorriu. Acercou-se da árvore que piscava em luzinhas e acarinhou o pequeno presépio andino que ali sossega, lembrando a sagrada noite. Sentou na poltrona e quis conversar. 

Não tenho problemas com visões. Costumo ver gente morta em todo lugar. Aqueci a água, preparei um chá de hibisco, e ficamos ali, na madrugada calorenta, papeando. Perguntei o que fazia ali se a hora ainda não havia chegado. “Não sei, quis vir”. Falamos das coisas que andam acontecendo. Das pessoas que falam de Jesus como um vingador. Dos que em seu nome matam, agridem, causam dor.  Falamos da longa viagem que ele e seus pais fizeram na velha Palestina, fugindo de um rei louco que queria matar todos os meninos com medo de perder o poder. E a família, no burrinho, atravessando desertos. E, no caminho, pedindo uma ajuda que não vinha. Migrantes de terras estranhas tentando se salvar. Ignorados, chutados, esquecidos à própria sorte.

Falamos sobre as guerras no oriente médio, na sua amada Palestina, lugares de onde, todos os dias saem famílias como a dele, buscando vida. Falamos dos centro-americanos caminhando em direção aos Estados Unidos, querendo comer na mesa do banquete. E ele com aqueles olhos graúdos, tristes, tristes. Falamos do Brasil, da triste rota de ódio ao pobre, ao caído, ao excluído. Bebericamos em silêncio. E nos abraçamos. Forte, forte.

O meu jesusinho, esse que eu amo, é o que caminhou com os pobres, os cegos, os perdidos, os desgraçados, as putas, os difamados, os paralisados. Ele trouxe uma mensagem de puro amor. “Ame o outro como a ti mesmo. Semeie em todos os campos. Divida o que tens, não o que sobra. Dance e tome o vinho entre amigos. Abra teus olhos para a beleza. Caminhe em direção ao sumo-bem”. Sobre isso falamos e eu, cética: “Tá difícil, menininho”. E ele, manso. “Não desiste. Tamu junto”. O meu deusinho sabe que a vida aqui depende mesmo é de nós, não dele.

A noite correu. Comemos biscoitos, gargalhamos, brincamos com os gatos e cachorros, tomamos chimarrão. De manhãzinha, ele já sonolento, apertou-se ao meu peito e depois partiu. “Passo de novo no natal, ou qualquer hora pra brincar”. Fiz o sinal de positivo. Sorri. E ele foi sumindo, não sem antes olhar pra trás, com seus olhos de lâmpada. “Não desiste, fica firme no amor”. “Podexá”. 

O sol veio vindo e eu fiquei no alpendre, pensando. 2019 será duro, mas, a despeito de tudo, vou seguir no amor. Nunca sozinha, sempre em comunhão, com todos aqueles que lutam por um mundo no qual não as riquezas sejam repartidas e cada um possa viver conforme suas necessidades. Porque nada pode ser mais forte do que uma gente unida, que atravessa os desertos, sem medo. 

Estaremos juntos. Na noite sagrada, quando vier o menininho. E nos dias que se seguem, porque a vida é presente, é dádiva, é comunhão, é amor. 

Aos amigos, aos compas, aos parças,  Feliz Natal e Feliz Ano Novo. 



segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O pai e o banho



Quem cuida de pessoas velhinhas sabe, levar para o banho é o maior desafio. Tudo é motivo para não tomar banho. Não entendo isso. Só falar em banho e tudo já fica tenso e emburrado. “Agora não”. “Tomo banho é de noite”. E quando chega a noite: “agora não, tomo banho é de manhã”. É uma longa corrida de gato e rato.
Com o pai eu defini assim. Chamo pra tomar banho e se não quer, deixo pra lá. Faço uma coisa, faço outra. Pergunto de novo, para medir o nível do emburramento. Tá alto. Sigo fazendo outra coisa. E vou toda hora perguntado. “Vamos agora?” “Que tal um banho”. A brabeza firme. Tem dias que eu deixo quieto, ficar sem banho não vai matar. Passo um paninho úmido nas partes, com muita gritaria e protesto, mas fico firme. “Sem banho, ok, mas tem de limpar a bundinha”. A brabeza é grande, mas dura pouco. Creio que ele fica envergonhado.
Hoje o calor estava forte. E a novela do banho foi novamente encenada, desde as duas da tarde. Só lá por perto das cinco horas que ele apareceu na porta. “Vem, vamos tomar esse banho”. E lá fomos nós para a nova novela de tirar a roupa que demora um eito. “Não vou tirar a roupa com esse monte de gente aí”. O monte de gente são as pessoas na televisão. “É a TV, pai, eles não estão te vendo”. “Ahhhh, mas não mesmo, tira eles dali”. Tá bom, apaga a televisão.
Finalmente no banho quentinho a zanga se desfaz. Fica brincando com o sabão até mais não poder. “Bora sair, chega”, e ele nada. Vai entender.
Findo o banho, última etapa rocambolesca. Colocar a roupa. Uma confusão danada. Quer por a camisa nos pés, a cueca na cabeça. Então, cada peça tem e ser alocada, com cuidado e com explicação. Nisso tudo já se passou mais de hora. O banho é uma expedição perigosa e cheia de loucas aventuras.
Banhado e perfumado é hora de ir para o alpendre, onde ele calmamente saca o cigarro, acende, e fica fumegando, com os olhos no infinito. Então me olha e repete o mantra: “amanhã eu vou pra casa”.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Violência de quem, cara pálida?


"Chamam violento o rio que tudo arrasa, mas não as margens que o oprimem". Li hoje um comentário sobre os protestos na França. A pessoa dizia que aquilo tudo ( a violência) era fruto do multiculturalismo. Ou seja, uma racista que evitava dizer ser culpa dos negros e árabes. Como se fossem só eles os que protestam. 

Os que protestam na França são os pobres, os que vivem o cotidiano da fome, da desnutrição, do desemprego, da violência mais vil. O aumento do preço da gasolina tem reflexos em toda a cadeia de preços. A vida fica pior. E coisas assim detonam toda a dor, todo desespero. A luta que muda o curso das coisas sempre é violenta, porque violento é o modo de vida que põe milhões na miséria para que meia dúzia vivam à larga. 

Os fatos na França não têm a ver com o "multiculturalismo", até porque os negros e árabes que ali estão hoje apenas buscam viver um pouco do bem viver que lhes foi tirado por um país que tornou colônia muitos povos, que roubou e matou para extrair as riquezas desses povos. Os fatos tem a ver com o momento em que uma pessoa diz: basta, não posso mais.  E responde como pode aos opressores. 

Como no Brasil de 2013, os manifestantes não estão ligados a partidos, e realizam atos marcados via redes sociais, aparentemente sem coordenações centralizadas, mas os partidos já estão pegando carona no movimento. Todos os que são contra Macron já mostram as unhas. Macron já sinalizou que é preciso prestar atenção às reivindicações do protesto social, porque sendo ou não espontâneo ele expressa reivindicações de grande parcela da sociedade. 

Pepe Pereira dos Santos - mago da luz


A vida é um sopro. Uma hora estamos, outra não mais. Por isso entendo que aos que amamos e admiramos temos de homenagear enquanto estão aí, fazendo coisas lindas, trabalhando, lutando, agindo no mundo para torná-lo melhor. 

Uma dessa pessoas que quero hoje homenagear, é Pepe Pereira Dos Santos. Repórter cinematográfico, repórter fotográfico, companheiro de caminhada na batalha pela terra e pela vida. O conheci há muitos anos, logo que cheguei no Desterro na década de 80 do século passado. 

Juntos trabalhamos em um vídeo incrível "O país dos sem", mostrando a dura realidade das gentes que ocupavam a Via Expressa e outras comunidades nascentes, como a Chico Mendes, Vila Aparecida e outras. Foi um trabalho lindo, num tempo em que os equipamentos eram grandes, pesados, caros. Um tempo em que para editar um vídeo tínhamos de buscar parcerias externas, como a que encontramos com o então padre Jaci Rocha Gonçalves. E para andar pelas comunas, contando com a presença sempre forte do padre Vilson Groh. 

Foi um trabalho lindo, de parceria harmônica. Uma honra ter trabalhado com ele naquele então, e uma honra ter seguido a vida contando com ele sempre que foi preciso. Pepe é um homem doce, apaixonado, entregue a causa da vida do empobrecido. Um homem que caminha junto, se mistura e até se some no meio do povo que elegeu como seu. 

Tenho um baita orgulho de tê-lo como amigo e principalmente parceiro na grande batalha pelo mundo novo, de paz e de Justiça para todos os que hoje padecem a tragédia do capitalismo. Hoje ele é agricultor e faz o sonho acontecer na Comuna Amarildo.

Te amo Pepe, e te reverencio como mago da luz.


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Vale a pena ser parceiro dos EUA?

Panamá - Bairro Chorrillo, destruído na invasão, segue sendo reduto de muita pobreza
Iraque - Mossul, uma cidade esplendorosa destruída pela guerra


Posso entender as pessoas que pensam que estar próximo e aliado dos Estados Unidos é bom para o Brasil. A indústria cultural mostra isso o tempo todo. Os Estados Unidos como o guardião da liberdade, o salvador dos povos, o pai da democracia. Há um bombardeio massivo dessa “verdade”, e as pessoas creem. Está na televisão, está nos filmes, está no jornal, nas revistas. Mas, se prestarem bem atenção, verão que não é bem assim. 

É muito comum aos Estados Unidos usarem da mentira para fazer crer aos povos de que seus motivos são bons. Para comprovar isso, é só fazer o teste da realidade. Qual invasão estadunidense acabou bem para o país invadido? Só para lembrar algumas invasões recentes na história, vamos ver a situação do Panamá, invadido em 1989, a pretexto de salvar o país de um presidente narcotraficante. 

Na verdade, o que o os Estados Unidos queriam era recuperar o controle do canal, visto que seu velho aliado, Noriega, que inclusive tinha sido agente da CIA, estava aumentando os impostos para o uso da passagem. Foi acusado de traficante e deposto do cargo de presidente por marines estadunidenses que entraram no país e deixaram um saldo de milhares de mortos, a maioria civis. Depois de tudo deixaram lá um presidente amigo e o Panamá segue sob suas asas, transformado que está em um paraíso fiscal. Lá, há visivelmente dois Panamás: um, que é dos financistas, na parte rica e outro que é o das gentes, o dos panamenhos, da maioria, sempre dependente e pobre. 

Outro exemplo, e ainda mais gritante é o Iraque, invadido em 2003, também com base em uma mentira: a de que Saddam, que havia sido agente da CIA também, tinha armas químicas e era uma ameaça ao mundo. A promessa era levar a democracia ao país árabe. E o que chegou foi a morte. Mais de um milhão de pessoas, civis, já foram assassinadas no Iraque desde a invasão, o país segue em conflito, com guerras intestinas e cada vez mais pobre. Toda a sua riqueza cultural foi destruída e hoje, nada mais resta a não ser o petróleo, que passou para as mãos das empresas estadunidenses. Nunca foram encontradas armas químicas.

Então, quando a família do presidente eleito vai para os Estados Unidos jurar fidelidade ao governo estadunidense está fazendo uma arriscada aposta. O Brasil tem riquezas demais, entregá-las aos Estados Unidos não trará nada de bom para a maioria da população. Alguns ganharão muito dinheiro, é certo, mas não seremos nós, não serão os trabalhadores que votaram em Bolsonaro acreditando que o Brasil estaria acima de tudo. Ajoelhar-se para os EUA traz o de sempre: roubo, guerra, dependência, pobreza, miséria, fome, desemprego, morte. 

Não é isso que queremos. Então, temos de lutar contra a entrega do país.

Para os que não acreditam nas informações que passamos, basta pesquisar e seguir o dinheiro. Quem lucra com a parceria? 

Onde nossa humanidade?








Milhares de pessoas caminham em direção aos Estados Unidos. Fogem em direção ao seu verdugo. Saem de seus países destruídos pelos Estados Unidos, em guerras de tiros, guerras culturais, guerras econômicas e seguem para esse mesmo país que os destruiu. Parece um paradoxo, mas não é. Na guerra cultural a mensagem que fica é que é lá a terra das oportunidades.

Os pobres e sua infinita fragilidade. Nada têm além de seus corpos nus, como dizia o grande repórter Marcos Faerman.

A carava na migrante passa pelo México e vai encontrando no caminho o ódio, o rechaço, o preconceito. Agora está em Tijuana, uma das fronteiras mais violentas. As gentes já enfrentaram os milicos estadunidenses e o governo mexicano fala em deportar todos os que lá estão. Mas eles não querem voltar para o terror de seus países. Quanta dor pode caber num só corpo? Quantas lágrimas ainda serão derramadas até que venha a morte, sempre próxima? E nós, como podemos dormir?

No rosto dessa menina, todo o sentimento do mundo. Ah..os empobrecidos da terra, os deserdados, os desgraçados. Se um dia soubessem a força que podem ser...

Cadernos do Terceiro Mundo



Era a metade dos anos 70, a ditadura ainda comia solta. Eu tinha uns 15 anos, não recordo como foi que consegui, mas me caiu nas mãos um número da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”, que trazia notícias da América Latina, da África e do mundo árabe, coisas que nem sonhávamos ver nos nossos meios de comunicação.

Como sempre fui uma leitora voraz, a revista me encantou pela abordagem totalmente diferenciada. Mostrei pro meu pai e pedi pra fazer uma assinatura. Ele fez. Mandamos o pedido para a Editora Terceiro Mundo, com sede no Rio de Janeiro. Então, a revista me chegava pelo correio e eu devorava com avidez.

Quando tivemos de sair do Rio Grande e fomos viver em Pirapora, Minas Gerais, a revista me seguiu pelos anos 80 afora. Esperar a “Cadernos do Terceiro Mundo” era uma alegria profunda. Eu mais ou menos sabia quando saia e ficava todos os dias enchendo o saco do carteiro, “tem carta pra mim, tem carta pra mim”. A revista era bem isso: cartas chegadas de um mundo desconhecido até então, um mundo aonde as gentes lutavam, um mundo que me enchia de alegria e de indignação.

Foi pelas suas páginas que conheci Yasser Arafat, Mandela, Samora Machel, Agostinho Neto, Kadaffi, Steve Biko e outros tantos que tinham suas vozes expressas na pequena publicação. Há pouco tempo o professor Waldir Rampinelli trouxe para o IELA vários números da revista. Estão aqui na biblioteca. Tem muitos números. E eu ainda me emociono até as lágrimas cada vez que passeio pelas suas páginas.

Nunca será demais agradecer aos fundadores, Beatriz Bissio, Neiva Moreira e Pablo Piacentini por esse presente. Tenho muito claro que essa revista é, em grande parte, responsável por eu ser quem eu sou.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Apontamento sobre a comunicação

Foto: Desacato

Na conversa com companheiros radialistas e jornalistas, no Seminário Internacional Direito Humano à Comunicação, promovido pela Frente Parlamentar pela Democratização da Comunicação da Assembleia Legislativa, apontei alguns elementos para a análise da realidade política e do jornalismo. 

. Já temos bastante informação e análise sobre como chegamos à eleição de Jair Bolsonaro, sendo ele a representação dos anseios de uma boa parcela da população que já havia mostrado seus desejos explicitamente quando tomou as ruas em 2013. As pessoas pediam pelo combate à corrupção (porque estavam influenciadas pelas denúncias contra o PT, que sempre foi um guardião da moral e agora tinha suas vísceras expostas)  e pela volta dos militares (porque tomadas pelo medo que sistematicamente é induzido também pelos meios de comunicação comerciais em programas estilo Datena). 

. Naqueles dias, em vez de compreender e desvelar criticamente os motivos que levavam as pessoas a querer intervenção militar, passou-se a ridicularização dos seus discursos.  

. Enquanto isso, grupos em blogs e canais do Youtube organizados (financiados por partidos de direita e por organismos internacionais), usando do direito à comunicação alternativa, iam fortalecendo e oferecendo cada vez mais motivos para que essas pessoas seguissem querendo o que queriam em 2013. Mamãe Falei, Revoltados on line, MBL e muitos outros vicejaram e nadaram de braçada no meio desse pessoal. 

. Assim, atuando em uníssono com a mídia comercial, uma série de outros pequenos grupos de comunicação, foi tecendo redes de confiança, buscando apoiar e fortalecer essas pautas. Jair Bolsonaro então aparece como o cara que poderia incorporar esses discursos e ser uma alternativa ao PT e a “tudo isso que tá aí”. Ele não nasce do nada, ele unifica um desejo que estava nas ruas e nas pessoas. 

. No campo da esquerda, as vozes mais radicais foram ofuscadas pela defesa, muitas vezes cega, do PT. Na denúncia do golpe, de Dilma e de Lula, não aparecia uma resposta para os anseios daquela parcela da população que, por conta das redes sociais, adquiria agora o espaço público para falar e expressar seus desejos. 

. Houve quem prestou atenção nisso e foi construindo o candidato perfeito. E tudo se fez fora dos grandes meios – ainda que os meios tenham arado muito bem a terra. A partir dos blogs, Youtube, feicibuque e uatizapi o diálogo foi se fazendo. As mentiras foram a cereja do bolo. Cada uma delas fortalecia o medo, a raiva, o preconceito que já habitava no coração das gentes. Comunicação simples, direta, bombástica.

. E foi a mentira, amalgamada ao personagem criado (Bolsonaro) que trouxe a vitória. Nem Bolsonaro é quem as pessoas pensam que é, nem as coisas que afirmava são verdadeiras, nem fará o que prometeu. Mas, por enquanto, isso não importa. O discurso vencedor foi o que foi construído com a mentira.

Nossa comunicação

. A comunicação popular, independente e alternativa, no espectro majoritário, ficou refém da defesa do PT e do Lula, sem problematizar com criticidade a pauta que vinha das ruas e da massa inflamada pelas mentiras disseminadas nas redes sociais. Foram dois anos até que chegassem as eleições. Dois anos, nos quais o terreno foi arado e a semente plantada. Nesse tempo o discurso raivoso de uma parcela da população seguiu sendo tratado com desdém e ridicularizado. Quando se percebeu o poder que crescia nas redes, com a pauta conservadora tomando conta também da classe trabalhadora e do lumpesinato, foi tarde demais. O estrago já estava feito e não seria nos poucos dias antes das eleições que isso mudaria. 

. Agora, vencida batalha pelo discurso fundamentalista/ ultraliberal e conservador o que resta a nós, comunicadores? 

. Primeiro: Não continuar com a tática de ridicularizar e diminuir os sujeitos que vão formar o novo governo. Há que desvelar o que eles farão, suas propostas, seus atos. Discutir com seriedade e com verdade. Não adiante dizer que o Alexandre Frota fez filme pornô. Ele já foi perdoado. E para a massa evangélico/cristã, quem se arrepende e é perdoado está limpo. Isso não cola. O que pode colar é o que ele fará, seus atos contra o povo, ou seja, a verdade material e política, não o julgamento moral.  

. Segundo: No nosso campo, o da comunicação, fazer um trabalho sério de jornalismo, coisa que há muito tempo não se vê. Não se vê nos meios comerciais – por isso a imprensa é apontada como mentirosa – e pouco se vê no jornalismo alternativo de esquerda. É tempo de praticar o jornalismo mesmo, esse que é forma de conhecimento e cuja forma de fazer já foi desvelada com maestria por Adelmo Genro Filho. Narrar os fatos na sua singularidade, mas fazendo com que o leitor possa compreender a universalidade do tema, para que esse leitor/espectador possa realmente compreender a coisa. 

. Sei que isso não é coisa fácil, exige comprometimento e muito trabalho, por isso penso que essa proposta demorará para encontrar eco. É mais fácil responder na mesma moeda, com preconceito, com o fígado, com mentiras também. Sim, há mentiras sendo divulgadas por companheiros nossos também. Mas, como jornalista, não vejo outro caminho. No campo da política teremos de encontrar a forma de vencer a batalha do discurso com formação dos trabalhadores via partidos, sindicatos, movimentos etc... Acolhendo seus medos, seus desejos e discutindo generosamente, sem julgamentos morais.

. E, na comunicação, nosso trabalho tem de ser a garantia do bom jornalismo, o que investiga, o que checa a veracidade, o que desvela, o que mostra as contradições. O jornalismo como forma de conhecimento. 

. Se a comunicação é um direito humano, não podemos defender qualquer comunicação. Já vimos o terror que pode ser. Penso que é hora de adjetivar essa comunicação, trabalhando com o conceito de uma comunicação veraz, capaz de dar resposta à mentira. E, seguindo a sugestão do amigo Glauco Marques, também substantivar essa comunicação. Porque se hoje ela é dominada pelos monopólios, pelos conglomerados gigantescos, haveremos de ter de fortalecer a comunicação dos trabalhadores, sendo então ela, nossa e veraz, capaz de ajudar as gentes a compreenderem o mundo. 



quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Sobre os médicos cubanos

médico cubano no Haiti

Escrevo, porque é tudo que sei fazer. Mas, nesses tempos de surdez, sei que é um grito no vazio. Quem eu gostaria que lesse, não lerá. Minhas palavras morrerão na cova das mentiras fabricadas e distribuídas por bispos, robôs ou gente sem qualquer visão crítica. Ainda assim, escrevo. Quem sabe algumas das palavras consigam chegar a algum recôndito coração aberto para conhecer o que ainda não sabe.

Falo sobre os médicos cubanos, ofendidos e vilipendiados pelo presidente eleito. Sei que é difícil para a maioria das pessoas entender a lógica de um governo que não é capitalista. O que vale aqui no Brasil não vale em Cuba. São sistemas radicalmente diferentes. O que o recém-eleito presidente quer é estabelecer com os médicos cubanos uma relação capitalista, coisa que não tem sentido para eles, ou pelo menos para a maioria.

Em Cuba a faculdade de medicina é gratuita e o médico formado não sai dali correndo para abrir um consultório onde vai cobrar para atender as pessoas. Não. Isso não acontece em Cuba. É inconcebível para um cubano pagar para ter atendimento médico. Não há lógica nisso. Os médicos cubanos são trabalhadores do estado. Atendem nas clínicas do estado, nos postos de saúde. Ninguém lá ganha dinheiro com a medicina. É possível compreender isso?

Então, o convênio entre Brasil e Cuba é um convênio com o estado cubano. E Cuba manda para cá seus trabalhadores públicos, assim como manda para outras dezenas de países com os quais tem convênio ou os que vai ajudar por conta própria, como é o caso do Haiti, na sua permanente tragédia. O recurso do convênio vai para o estado e o trabalhador/médico recebe o seu salário. O estado cubano é socialista e todos os recursos que recebe são usados para o bem comum, um comum do qual o médico também faz parte. Assim, o dinheiro do Mais Médicos que não vai para o bolso do médico, vai para todo o povo cubano. Logo, a família desse médico cubano lá em Cuba poderá ter médico também, e moradia, e educação e cultura e segurança. Num estado socialista todos trabalham para o bem comum e não para uma oligarquia ou para meia dúzia de empresários.

“Ah, mas tem cubano reclamando e querendo fugir de Cuba”. Sim, tem. Porque são apanhados pela mosca azul da propaganda capitalista de que podem ter mais e melhor. Uma ilusão que muitos pagam para ver. Alguns se dão bem, a maioria não. Basta ver as comunidades cubanas nos Estados Unidos. Quantos conseguem “chegar lá”?

Num estado socialista não há ricos. As pessoas dividem o que tem entre todos. Há garantias fundamentais: saúde, educação, moradia, segurança. Por isso os salários são baixos em Cuba. Porque os salários são quase desnecessários.

“Ah, mas é um horror não poder ter tudo o que temos”. E o que temos? Quem “temos”? Somos um país no qual um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza, ou seja, mais de 52 milhões de pessoas. E o que é viver abaixo da linha da pobreza? É viver com 300 reais por mês. Viver? E quantos são os que vivem com um salário mínimo? Mais uns cem milhões. Então quem pode ter tudo o que temos? Quem?

O presidente eleito, ao oferecer aos cubanos uma relação capitalista, pessoa-a-pessoa, atacou um estado soberano, que tem resistido por 60 anos a força de um império que o bloqueia e o mina. Fez de caso pensado, para atacar Cuba, que é socialista, não comunista. E fez sem pensar um segundo sequer nesses 150 milhões de brasileiros empobrecidos, muitos dos quais votaram nele com profunda esperança. Uma gente que nunca teve a possibilidade de ser atendida com carinho, com cuidado, com atenção e com uma qualidade técnica que é reconhecida no mundo todo. Os médicos cubanos são os melhores do mundo. Pois essa gente agora ficará sem médico, sem atenção.

Espero que os médicos brasileiros se disponham a ir aos cantões do Brasil, como fizeram os cubanos. E que essa gente toda possa continuar tendo atenção. Espero, mas não sei...

O que sim, sei, é que seria bem bom se as pessoas pudessem também compreender que a realidade cubana é bem diferente da brasileira. Pessoas há que acham um horror um povo ter saúde, educação, segurança e moradia. Pessoas há que acham que isso é escravidão. Outras entendem que isso é a conquista de um povo inteiro que lutou e morreu por isso. Há que respeitar.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sobre a vida, sobre nós


Essa foto me tocou como se fossem dois raios. Um, pela maldade. Quem poderia pichar um retrato assim, de alguém que passou a vida – e por isso foi morta – lutando contra o terror? O terror que mira no pobre, no preto, no caído. Atingida no peito, verti lágrimas, que caíram mansinhas, sustentadas num ódio são. Pensei que se tivesse sido alguém da ordem, desses que gosta de matar e torturar, tudo bem. Faz parte do show dele e está dentro do seu script odiar a mulher que estava fazendo uma devassa na Polícia Militar do Rio. Mas, e se não foi? E se a pessoa que manchou o retrato é uma dessas pessoas comuns que trabalham e vão à igreja rezar, ajoelhadas aos pés de um Jesus de amor? Como poderia? Como foi inoculada no ódio aos seus?

O ódio de classe é o motor do mundo. É com ele que aqueles que são oprimidos, roubados, massacrados, pisados, avançam e mudam o estado das coisas. O ódio aos vilões do amor, como dizia o grande poeta Cruz e Souza. E o ódio de classe é o ódio de quem é explorado pelo explorador, assim como o explorador odeia o pobre, aquele do qual visceralmente depende, afinal, só o que trabalha gera valor.

Mas, como odiar aqueles que são como a gente, que lutam com a gente, que buscam cuidar, proteger, garantir a justiça? Que estranho vírus é esse que toma o empobrecido e o faz voltar-se contra os seus, os companheiros de classe? Pois seja esse "vírus" o que for, há que combatê-lo até o último suspiro. Os que trabalhamos e vendemos nossa força de trabalho – tudo o que temos – precisamos andar juntos, sonhar juntos, lutar juntos. Só assim garantimos a vida plena.

O outro raio que me pegou foi o da força, essa que move a luta de classe. Em volta da pintura vandalizada, mulheres negras, abraçadas, em pé, cabeça erguida, pernas retesadas. Protegendo a memória de Marielle, uma mulher que lutou até o dia do seu último suspiro, garantido à bala pelo ódio do opressor. As garotas protegendo Marielle e protegendo-se. Uma posição de batalha. Porque cada uma delas ali sabe muito bem quem são os inimigos, e onde estão. Seus inimigos são os inimigos de todos nós, da classe trabalhadora. Na foto não vemos os rostos da mulheres, mas podemos intuí-los e haverão de estar impregnados do ódio, o ódio são, o que é necessário. Aquele que impele à resistência, ao combate. Porque enquanto houver um mundo em que para que um viva outro tenha de morrer, não teremos tempo para a paz.

Marielle foi assassinada. Outras tantas serão. Mas, como uma incontrolável onda, outras mais virão. Assim, agarradas, retesadas, cabeça erguida e com ódio, muito ódio, contra os vilões do amor.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Nas redes do Figueira

Uma das formações daquele 1990 - Peçanha no gol

O dia da vitória


Aquele era para ser um domingo feliz. O mais feliz. Antônio nem foi para o mar. De manhã, revirou todo o guarda-roupa atrás da bandeira. Fazia tanto tempo que ele não ia ao campo. Mas naquele domingo ele iria. Era a decisão da Primeira Copa Santa Catarina (1990) e o Figueirense estava na final. Desde 1974 o alvinegro não ganhava qualquer título. Tinha que ser agora.

Neste tempo todo de jejum, a bandeira branco e preta tinha dormido no fundo do guarda-roupa. Por isso demorava tanto para achar. Quando encontrou, cheirava a mofo. Ele pendurou ao sol e foi ajeitar um cano, no qual iria prendê-la. Ao meio dia, a “bichinha” já tremulava em frente a casinha de madeira, que quase beijava o mar da Costeira.

No morro do Mocotó, a galera também se preparava. Os homens, encostados nas portas da bodega do Tinoco, entornavam uma branquinha para aquecer a goela. Juquinha, com o pandeiro, ensaiava um samba enquanto os outros garotos, com os tambores, marcavam o ritmo. Uma bandeira alvinegra balançava na mão, ora de um, ora de outro. O Figueira não iria falhar. Desta vez levaria o título, e o grito guardado iria explodir no Scarpelli.

Zeca, com 12 anos, nunca tinha visto seu time ganhar um campeonato e lembrava com amargura o título do Avaí, em 1988. Tinha sentido tanta raiva, tanta inveja, que tinha descido o cacete no filho do sargento Carlos, avaiano roxo, quando ele atreveu-se a arriscar uma gozação. Mas, neste domingo a festa iria ser dele.

No edifício Artur, bem no centro de Florianópolis, Eliete também jogava para dentro um trago de Velho Barreiro, para afogar o medo, que teimava em trancar a garganta. Sabia que o Figueira estava melhor que o Brusque. Mas, desde pequena também sabia da máxima: “jogo é jogo”. Como quem toca uma relíquia, ela pega a camisa alvinegra e estende na cama. Afaga devagar e pensa que aquele domingo vai ser mesmo de festa. Vai ter que ser, como diz a Gal e, quando a camisa entra pelo pescoço, acariciando o corpo, aí sim ela tem certeza. O Figueira vai ser campeão. Ela olha no espelho e os olhos no reflexo, brilham. Afinal, porque tanto amor? De onde vem esta euforia, esta coisa forte que meio explode no peito quando aquele bando de homens, vestido de preto e branco, sai do túnel? Como explicar este sentimento? Este grito solto, este bater descompassado, esta alegria na hora do gol? Eliete não sabia.

Por volta das duas horas da tarde, o terminal urbano já está fervilhando de gente em busca do ponto do ônibus do Canto. Todos os caminhos levam ao Scarpelli. No rosto de cada um grita um sentimento diferente. Medo, alegria, paixão, amor, carinho, dor, preocupação... As bandeiras voam pelas janelas dos ônibus e o grupo do samba batuca o hino do clube: “Figueira, Figueira, a tua glória é lutar...”. Os mais tímidos acompanham com um movimento de cabeça ou batendo os dedos no joelho. Mas a cara de todos é de pura alegria. De calção, camisa alvinegra e radinho de pilha, todos ali parecem cópias um do outro. Gritos, risadas, piadinhas e o grito de guerra: Figueeeeira! O ônibus parece voar, inebriado com aquela vibração toda. Eliete está ali, com a amiga Rose, que nunca tinha ido ao campo de futebol e olhava tudo com olhos virgens, sedentos.

Na fila para comprar ingresso é a mesma a alegria ansiosa. Os homens grudam a orelha no rádio e ouvem as primeiras notícias sobre o jogo. Tem pouca mulher por ali. “Futebol é coisa de macho”, tinha dito, um dia, o velho Fernandes. Mas, isto era coisa do passado. Os homens não podiam tirar das mulheres esta magia do futebol e elas invadiam cada vez mais a área da bola. Algumas driblavam o marido e diziam que estavam indo para a casa de uma amiga. Era o caso de Margarida, que se esgueirava pelo portão A, ligeirinha como quem rouba. “Meu marido não gosta que eu venha ao campo e ainda por cima é avaiano. Mas, hoje vai ser o meu dia”, comenta rindo e roendo a unha já sem esmalte.

Lá dentro a Teimosia Alvinegra faz a festa. Papel picado, talco, farinha. Vale tudo e quem não gosta é melhor se mandar. Aquele pedaço é o pedaço da orgia, do orgasmo da emoção. Rose, que ainda não foi mordida pelo vírus da bola, reclama da farinha, mas não se atreve a fazer qualquer gesto de desagrado. Apenas olha ressentida para Eliete. “Lavei meu cabelo hoje”, diz, mais de duzentas vezes, com beicinho. Coitada, fica branco quando o Figueira entra em campo.

A galera explode, feito uma mina, uma bomba. Os foguetes espocam sem parar e a farra da farinha é completa na arquibancada. O estádio pulsa como se fosse um coração bombeando o sangue vital para a vida.

Quando a bola começa a rolar ninguém vê mais nada. É só um esperar nervoso pelo primeiro gol. Um homem, com óculos fundo de garrafa, aperta os olhos, vira para a torcida e berra: Figueeeira! Fica assim o jogo inteiro, feito um louco, o calção caindo, deixando à vista parte da bunda branca. A rapaziada gosta e ri. Encharcado de cerveja, ele passeia próximo ao alambrado e segue berrando o nome do seu time, como um bebê que não sabe dizer outra palavra.

Um pretinho aleijado também está ali, com sua cadeira de rodas, esperando o gol. O olho brilha, a cerveja desce boa, ainda mais que é dada. Ele olha todo mundo ao seu lado e ri, batendo palmas. Todos vibrando na espera do gol.

Então, eis que vem o esperado. O gol! Do Figueira! A bola vai parar redondinha na rede do Brusque. Os mais velhos hesitam por um segundo, depois se desmancham, assim, como um picolé. O estádio balança, os gritos explodem, a galera alvinegra lava a alma. O homem de óculos fundo de garrafa cai deitado na arquibancada. Levanta as pernas para o ar e fica ali, com ar de bobo, sem forças para o seu grito. O aleijadinho, na euforia, rola da cadeira, mas nem liga. Fica no chão, batendo palmas e gritando como um louco. Um velhinho ao lado de Eliete chora mansinho, como se visse um milagre. Eliete abraça Rose e fica muda, parecendo ter engolido a bola do gol. A partir daí o povo não para mais, fica o tempo todo gritando, fazendo brincadeiras com a onda, levantando e sentando conforme o movimento da massa.

Neste carnaval acontece o segundo gol. Então não tem mais jeito. Está selado. A copa é do Figueira. Já não há mais o que fazer. Só esperar pelo fim do jogo, invadir o campo, abraçar os heróis, ficar com alguma lembrança daquela tarde mágica de gritos de “é campeão!”.

Os últimos minutos são tensos. A gurizada começa a pular a cerca que separa o público do campo. Os soldados fingem que não estão vendo nada. E não adianta ver, são muito poucos frente a massa. E assim, um por um, os garotos vão pulando e ficando próximos das placas de propaganda, esperando o apito final. Parecem bichos na hora do ataque que vai resultar na alegria do almoço ou jantar. Naquele caso é o ataque a um sonho, de ser campeão, finalmente realizado.

Apita o juiz. É o sinal. O povo entra em campo, agora a festa é dele. Têm quem pague promessa atravessando o campo de joelhos. Têm os que querem agarrar os jogadores, os que se atracam nas redes, arrancando pedaços para serem guardados nos armários e na lembrança. Outros gritam, arrastam bandeiras, se jogam no chão, explodem de prazer. Quando a taça chega, e os jogadores saem com ela em volta olímpica, aquela gente enlouquecida segue atrás, correndo feito loucos. A taça é deles também, tão esperada. Mas uma boa parte está nas arquibancadas, embalando a vitória, alguns choram como crianças, outros de mansinho, um choro feliz.

Depois, um a um, vão saindo devagar, com um sorriso imenso pregado na cara. Um sorriso que vai ficar por dias. Dentro do ônibus que volta para o centro, o clima agora é de calma. Assim como quando a gente acaba de fazer amor. O Figueira é campeão e a vida continua. Antônio vai para o mar, o Mocotó volta a sua calma e Eliete acorda cedo para trabalhar. Só uma coisa é certa. Todos eles vão sair de branco e preto naquele diáfana manhã.




quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Jornalismo, jornalistas e mentiras


A mídia brasileira foi pega de surpresa pelo presidente eleito nas últimas eleições quando este não quis saber de entrevistas nem de jornalistas para falar com seu eleitorado logo depois da vitória. Transmitiu suas palavras direto de casa, pelo celular, na sua rede social, sem mediações. Depois, nos dias que se seguiram chutou o pau da barraca de uma série de empresas de comunicação acusando os jornalistas de “fabricantes de mentiras”. Entre seus seguidores não há um que respeite a mídia. Os comentários são os mais estapafúrdios: a rede Globo é comunista, a Folha de São Paulo é do Lula. Ou seja: duas coisas que foram sistematicamente demonizadas durante a campanha eleitoral, comunismo e PT. A coisa beira ao surreal. 

Mas, entre nós, jornalistas, quem pode dizer que o presidente eleito esteja errado sobre a imprensa ser uma fábrica de mentiras? A mídia comercial brasileira – tal como a mídia mundial – é efetivamente uma fábrica de enganos. Manufatura mentiras e age visceralmente ligada com o sistema dominante. Usa dos espaços de notícias para constituir um consenso sobre a realidade, sobre o mundo, sobre o que é bem ou mal. Sob a capa da “imparcialidade” que a teoria funcionalista legou ao jornalismo hegemônico, ao longo de décadas tem extraído a mais-valia ideológica das pessoas que se colocam frente à televisão ou do jornal.

Ou seja, concretamente, o jornalismo praticado na maioria dos meios é realmente mentiroso. Logo, não é uma invenção do presidente eleito. Ele aproveita uma verdade para poder tornar verdade as mentiras que diz e dirá. O exemplo é tomado de Donald Trump, que fez a mesma coisa nos Estados Unidos. Durante sua campanha presidencial soltou os cachorros na mídia tradicional e fez - com a providencial ajuda das Big Datas, empresas de dados – aparecer essa verdade já sistematicamente denunciada, obviamente pelas entidades de esquerda. Ora, Trump não fez isso porque é louco, como diziam seus opositores. Não. Ele é um ultra milionário que tem acesso a qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. E, hoje, o dinheiro pode comprar dados pessoais, manipulando mentes, tornando os meios de comunicação tradicionais bem obsoletos. 

Assim que agora, diante do furacão das mentiras disseminadas pela internet por bilhões de robôs, misturados a pessoas bombardeadas pela guerra psicológica por empresas especializadas nesse fazer, que também espalham “notícias” os jornalistas se levantam em indignação. Mas, figuras como Trump ou o presidente eleito do Brasil estão cagando para os jornalistas. Eles não precisam mais dessa categoria. As notícias agora podem ser fabricadas por um simples robô de inteligência artificial mediana. Então, Trump expulsa jornalistas das coletivas, manda outro calar a boca, humilha. Bolsonaro não permite jornalistas nas suas aparições e promete até destruir jornais os quais acusa de fabricantes de mentiras. O campo da disputa das mentes é outro agora e eles estão ganhando, sem necessitar das mídias convencionais. 

Ao refletir sobre isso fiquei a matutar sobre a responsabilidade dos jornalistas nesse massacre em praça pública do jornalismo. 

Não é de hoje que se discute a ação dos jornalistas dentro dos meios de comunicação comerciais. No geral, a maioria se curva sem críticas ao que manda o projeto editorial do veículo. E quem define o projeto editorial nunca é o jornalista. É o dono do negócio. E o dono do negócio define quem será notícia e quem não será. Quem será demonizado e quem será mostrado como bonzinho, qual abordagem deve ser dada em tal notícia, qual deve ser dada em outra. Tudo vem determinado de cima. Sobra pouca margem de manobra para o trabalhador/jornalista fugir. Sim, sempre há os rebeldes, os criativos e ladinos que encontram brechas para fazer escapar a verdade. Mas, a esmagadora maioria se rende sem questionar. Em muitos casos assume a verdade do patrão como sua e pode tornar-se até mais real que o rei. Basta uma passadinha na Globo News e já temos uma mostra do que eu digo. 

Quero dizer com isso que os jornalistas dos meios hegemônicos estão agora colhendo os frutos dessa capitulação. E eles são amargos. Acostumados que estavam a ser o esteio da classe dominante, agora estão tendo de lidar com um grupo desconhecido de pessoas que consegue ter mais poder de comunicação que todos os seus patrões juntos. Ou seja, ficaram desnecessários para os novos donos do campinho e serão tratados como lixo.

A dança das cadeiras do poder dominante está muito louca e será necessário algum tempo para ver onde isso vai dar. As empresas de comunicação podem capitular, se render ao novo grupo de mando. Isso é bem possível. Eles são camaleônicos, mudando conforme os interesses. Se isso acontecer os jornalistas voltarão a servir ao rei, como sempre fizeram. Ou, algumas dessas empresas podem desistir do negócio, passar a outro mais atrativo e lucrativo, sem a necessidade de jornalistas, e todos irão amargar a grade barca. O certo é que a barra vai pesar.

Ainda assim, isso não é o fim do jornalismo como já se vê um que outro alardear. O jornalismo seguirá sendo essa função essencial de mostrar o que alguém quer esconder. E também seguirão existindo – como hoje existem – jornalistas de quatro costados, capazes de saltar sobre as pedras do engano e da mediocridade, desvelando a realidade e produzindo conhecimento com seus textos, como ensinou o teórico Adelmo Genro Filho. O jornalismo é um fazer que não morre, nem mesmo nas mais odiosas distopias, porque sempre alguém escapa do torpor e narra a vida em sua imanência, descortinando a verdade.

A conjuntura não está boa para nossa categoria. E vai seguir assim por um longo tempo. Então, é um bom momento para refletir sobre esse fazer e sobre a capitulação ao engano que boa parte dos colegas abraçou. Todo tempo é tempo de mudar. 

Já para aqueles que sempre remaram contra a maré, é só mais uma tempestade, a qual atravessarão com remadas sistemáticas, as mesmas que os mantiveram navegando incólumes nesse grande mar de mentiras fabricadas ao longo das décadas. 

O jornalismo da grande mídia mente, sim. Mas, jornalistas há que não. Que caminham pelas margens, que abrem brechas, que encontram nichos e oferecem “biscoitos finos” da verdade. 

A verdade, essa louca, que mesmo na mais longa das noites, emerge e se diz. A verdade, essa louca, que a despeito de tudo, emergirá também dentro dessa imensa máquina de produção de ideologia que se tornou a tal da rede social. 

Que os jornalistas da boa cepa sigam produzindo, escrevendo, dizendo. Porque eles serão sempre necessários. 

Seguimos, rompendo as manhãs, como dizia o poeta. 




O pai

Dormir não é com ele. Acorda às cinco e meia da manhã e vai até às nove horas da noite. Aí, encontrar coisas que o distraiam não é bolinho. Há que ter muita criatividade. Ainda mais que ele é meio chato e não gosta de quase nada do que a gente inventa. Consigo encantá-lo com a música gaúcha, e ele pode ficar vendo os clipes por um bom tempo. Também gosta da Praça da Alegria e dá muita risada com o Carlos Alberto e sua turma. Adora ficar caminhando pelo pátio, espichando as pernas, fumando um pito e observando as estripulias dos gatos.

Hoje, ao fim da tarde, encontrei-o no jardim. Estava sentado no banquinho de madeira, com os olhos lá no infinito. Sentei ao seu lado e perguntei:

- Que tá fazendo aí, quiridu?

E ele , sem tirar os olhos do ponto no infinito, respondeu.

- Imaginando! ...

Só consegui ficar do seu lado, bem quietinha, imaginando também.


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Sobre ser cristão



Há uma cena que sempre me comove quando eu penso sobre ser cristão. Digo isso porque sou cristã, nascida em família cristã, com uma mãe que frequentava a igreja e ensinava sobre Jesus. A cena foi protagonizada por um homem que sempre amei profundamente: Dom José Gomes, bispo de Chapecó. Era uma romaria da terra que acontecia em Florianópolis, juntando gente sem terra e gente sem casa.  A caminhada saiu de São José, atravessou a ponte e terminou no aterro da Bahia Sul, com uma grande missa e um almoço comunitário. Durante a missa, estavam todos os padres e bispos da região, Dom José junto. Eu era repórter na época, e estava em cima do palanque com os padres, para melhor fotografar o povo lá embaixo. Então, ao final da celebração o arcebispo metropolitano, acho que era o Dom Eusébio, convidou todos os bispos que estavam no palanque para um almoço na arquidiocese. Dom José saiu de fininho, recusando o convite para ir ao palácio episcopal e se foi, misturando-se à multidão.

Quando no aterro o almoço comunitário já corria solto, e eu andava pelo meio das gentes, ouvindo as histórias, deparei-me com a cena, que até hoje enche meus olhos de lágrimas. Lágrimas boas, de profundo amor.  Dom José, já sem batina, com seu terno e sapatos surrados, comia um cachorro-quente, encostado a uma banquinha. Comeu devagar, conversando com o moço que vendia. Depois, saiu, caminhando pelo meio das pessoas, sentando com uns, sentando com outros, e cada uma delas oferecia um frango, um pão. E ele mordiscava um naquinho aqui, outro ali, vivendo aquela coisa boa que é a comunhão. Um companheiro. E as pessoas o envolviam com uma atmosfera de amor.

Eu o mirava de longe, mas minha vontade era de abraçá-lo longamente. Coisa que fiz, mais tarde, na despedida, primeira e última vez que eu o estreitei em meus braços, em profunda gratidão. Dom José era um homem jesuânico. Como Jesus, ele gostava mesmo era de andar com as pessoas, com os seus, os camponeses, os trabalhadores. Nada de palácios e pompas.

Essa igreja de Dom José é a que eu tenho dentro do coração. Esse sentimento de partilha, de amor, de solidariedade, de comunhão real. É o que me alimenta nas horas noas. É o que me embala, enquanto escuto o sussurro do homem de Nazaré a dizer: não tema, estarei sempre com vocês. 


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

"Preciso trabalhar"



Uma das rotinas que tive de assumir agora que tenho de cuidar do pai, é a tal da limpeza diária da casa. Antes, tudo ficava fechado e faxinar no final de semana era suficiente. Agora, com a circulação de pessoas e bichos o dia todo na pequena casinha, a sujeira abunda. Então, todos os dias há que varrer e passar pano. Assim, quando chega lá pelas seis horas começo a função.

O pai sempre fica agitado quando eu começo a limpar, porque ele acha que precisa ajudar.

- Que eu posso fazer, filha?
- Nada, pode ficar aí ouvindo música.

Capaz! Ele se levanta e vai para a pia.

- Vou lavar a louça.
- Mas já tá tudo limpo.
- Não tá, não.

Então começa a tirar todas as xícaras de dentro do armário e lava de novo, uma por uma. Repete o procedimento até que eu encerre a lida. Se eu demoro ele lava umas duas ou três vezes. Se eu penduro o rodo e recoloco os tapetes, ele se dá por satisfeito.

- Arrumamos tudo, né?.
- É. Obrigada, querido. Ajudou muito.

Ele fica bem feliz e vai pitar seu cigarrinho.



quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A vida e seus ciclos

Cíntia Cruz, da Revolução dos Baldinhos


Ali estava eu, na sala escura do Centro de Eventos da UFSC, esperando minha vez de falar no Planeta.Doc, uma proposta generosa que envolve muita gente disposta a fazer algo para que todos possam viver bem. Então, ela entrou em cena, falando de um projeto que ajudou a criar na região do Monte Cristo e na Chico Mendes. Seu nome:  Cintia Aldaci da Cruz. Mulher negra, nascida e criada na comunidade do Monte Cristo que, com outros companheiros e companheiras, deu vida a revolução dos baldinhos, um projeto de gestão de resíduos urbanos que tem transformado vidas na comunidade. 

De repente, na escuridão do auditório, vendo aquela mulher falar com tanto amor de sua comunidade que é conhecida como o "espaço da violência", meu coração foi enternecendo e as lágrimas vieram aos borbotões. 

Ela ainda era poeira cósmica quando um grupo de pessoas, sob a direção do Caprom, coordenado pelo Padre Vilson e Ivone Perassa, preparou aquele terreno para as famílias entrarem. Era final dos anos 80 e a cidade de Florianópolis vivia um grande processo de migração. Havia muita terra sem uso, e muita família sem um lugar para morar. Então, essas famílias se organizaram, tiveram apoio do Caprom,  e ocuparam áreas públicas, onde fincaram os barracos e começaram a resistência na luta por moradia. 

Estive ali, com Elisa, Loureci, Celso, Jaques, Geraldo, e tantos outros companheiros e companheiras, que atuaram juntos naqueles dias de tanta beleza, luta e transformação. Nas noites escuras do continente, mediam-se os terrenos, fincavam-se estacas e erguiam-se os barracos. Então, fruto da luta coletiva, foram brotando as comunidades que hoje estão aí, firmes, se reinventando a cada dia. Chico Mendes, Vila Aparecida, Nova Esperança e o próprio Monte Cristo que surgiu ao lado da Chico Mendes. 

Ver aquela jovem, guerreira, que, emocionada, falava da profunda transformação que via acontecer na sua comunidade, da esperança que despontava nos jovens, nas crianças, me emocionou por duas razões. A primeira por ver que a resistência popular segue, cotidiana e sistemática, diante da voragem do capital, que tudo destrói. E a segunda por saber a mim mesma ainda do lado certo da história. Vejo tanta gente descambando, se endireitando, perdendo o contato com a luta das gentes. 

Eu estive ali, na noite escura,  naquele descampado que hoje abriga várias comunidades e, na força do coletivo, fiz parte do processo que constituiu vida para tantas famílias. O lugar onde germinou uma mulher como a Cíntia. E, agora estava ali, naquele auditório, também escuro, ainda dividindo palavras e esperanças sobre a luta histórica dos trabalhadores e trabalhadoras desta cidade que eu amo tanto. Comigo, também estava o padre Vilson, velho amigo e companheiro, e surpreendentemente aquele mulher, nascida e criada no espaço urbano que um dia ajudamos a transformar. Naquela hora, naquele lugar, todos juntos, seguindo na luta por um país soberano e livre, no qual as pessoas possam viver com dignidade e felicidade. 

Foi uma linda sensação!  Foi uma profunda emoção. E fortaleceu a certeza de estar no caminho certo, apesar de tudo. 

Viva a luta dos trabalhadores e trabalhadoras. 


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Dia da Criança



Eu me lembro dessa menina. Era quieta e introspectiva. Gostava de ficar pelos cantos, escondida com algum livro na mão, viajando sem sair do lugar e descobrindo maravilhas: os etíopes, os astecas, os guarani, os mitos gregos, os árabes. Era fascinada com José de Alencar e Simões Lopes Neto. Amava Simbad, o marujo, e talvez venha daí seu eterno desejo de viajar. Tinha poucas bonecas e gostava de subir em árvores. Podia ficar uma manhã inteira observando algum bichinho do quintal. Também se distraia brincando na selva criada pelo seu irmão menor, cheia de bonequinhos do Tarzan e seus amigos. Acreditava piamente em seres de outro planeta (ainda crê) e, nas noites, os buscava no céu, entre apreensiva e esperançosa.

Amava passar as férias na casa do vô Dionísio, no interior de João Arreghi, e enchia os dias com ele, no silêncio da lavoura de arroz, entre taipas e chamichungas. Pouco falavam, só sentiam e compartilhavam, trocando sorrisos quando os quero-queros passavam em gritaria. E nas madrugadas, na beira do rio Ibicuí, pescavam, silentes e reverentes diante da grandiosidade da noite estrelada. Naqueles dias essa menina sonhava com nada, apenas vivia a imanência da vida, sempre de maneira profunda e comprometida.

Tinha por companheiro o irmão menor, parceiro de brincadeiras e de aventuras. Com ele aprendeu a arte da gargalhada e o segredo da cumplicidade. Sempre teve os olhos de lâmpada, admirada diante de cada pequeno detalhe da existência. E, por viver mais para dentro que para fora, entendeu a força da ternura e a capacidade que ela tem de quebrar as mais duras carapaças. Essa menina ainda vive em mim, para minha profunda alegria, e assoma nos dias tormenta, para me lembrar que por mais violenta que seja a tempestade, o dia volta, e com ele o sol.

Nesse dia da criança, que os erês (tudo o que existe de bem, puro e belo) dancem e nós com eles...

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

As pequenas ternuras do pai



Os dias tem sido tristes, de muita amargura e solidão. Cuidando do pai, acabo entrando ainda mais para dentro de mim. A vida se move entre o trabalho e depois o cuidado com o pai e com tudo o mais: a casa, os cachorros, os gatos, as flores, a horta, a compostagem. Tudo tem de estar limpo e seguro pra que o pai possa transitar tranquilo. A carga de trabalho triplicou e depois da UFSC o tempo é todo pra ele. Cuidar de um velhinho exige não apenas o trabalho braçal, mas toda uma carga de esforço emocional que esgota. Por exemplo: não posso demonstrar tristeza. Porque se ele sente que estou triste, se preocupa e fica sem chão. Então, entrando no portão, o espírito precisa ficar leve. E como é duro encontrar leveza nesses dias tristes. Mas, seguimos em frente, tentando tornar, pelo menos a vida dele, feliz.

Ontem, surpreendentemente, cheguei a casa e ele já estava no banho. Bem alegre sob o chuveiro. Estranhei, já que o banho é sempre uma grande e penosa tarefa. Mas, tudo bem. Beleza. Segui a rotina, limpando banheiro, casa, comida para os animais, roupa no varal, pano no chão. Seis horas fui preparar a janta. Rotineiramente enquanto estou no fogão, dou a ele um copo de vinho, para “abrir o apetite”. Fiz como sempre. Ele estava vendo televisão.

Mexia nas panelas, bem concentrada, quando ouvi sua voz cantarolando: tan tan tan lalalala... Ora, que surpresa! Virei-me para acompanhar sua cantoria e pasmei: ele não apenas estava cantando como dançava, erguendo os pezinhos e mexendo os braços. Minha alma se abriu numa torrente de alegria e todo aquele peso que andava carregando desde o domingo sumiu. Larguei as panelas e fui abraçá-lo, apertando-o por longos instantes. Coração a coração. Talvez, lá no fundo, ele soubesse o quanto eu precisava daquela ternura. Depois, comecei a dançar e cantarolar com ele. Rimos muito.

A vida e sua imanência....


sexta-feira, 5 de outubro de 2018

O Brasil, subindo a ladeira

Foto: Rubens Lopes


O povo brasileiro vai às urnas nesse domingo, numa de suas maiores eleições. É que não apenas elege o presidente ou presidenta da nação, mas também todo o Congresso Nacional, senado e deputados federais, bem como as câmaras legislativas, nos estados. Gente demais, e uma gente que definirá os rumos do país por mais cinco anos. 

Os últimos anos foram marcados pelo turbilhão. Um governo se elege com 54 milhões de votos, o derrotado (Aécio Neves) não aceita o resultado e começa um processo de desestabilização que vai desembocar no golpe de 2016, quando Dilma é retirada do cargo numa armação jurídico/legislativa, fartamente amparada pela mídia comercial. Mas, a jogada do PSDB encontra uma pedra no caminho: a figura de Jair Bolsonaro, um deputado federal que ao longo de mais de 20 anos de vida pública passou por nove partidos diferentes, feito uma biruta de aeroporto, para lá e para cá, embora todos dentro do mesmo espectro da direita brasileira.

Ancorado na falta do radicalismo político que a população pedia, assoberbada por tantas denúncias de corrupção, ele passou a nadar de braçada, tomando para si o papel da crítica. Uma crítica sem fundamento, mas espetaculosa, expressa em declarações rasas e polêmicas, que foram aparecendo como uma alternativa para boa parcela da população que não queria mais do mesmo. Mão dura, ditadura militar, armamento para todos, moralismo. Começou a parecer “o cara” que iria botar ordem na bagunça. 

Para uma população que vive cotidianamente acossada pelo discurso do medo imposto pela mídia comercial, o personagem durão e violento caiu como uma luta. Seria o salvador da pátria, o que acabaria com o comunismo do PT (?) e com a corrupção. Mas que, na verdade, em seu programa, aponta para a submissão completa à política dos Estados Unidos, aos latifundiários locais e aos banqueiros.  Uma mesma farsa já vivida pelo Brasil em 1989 pela triste figura do “caçador de marajás”, Collor de Melo. 

Agora, já no século XXI, chegamos às eleições premidos por outras formas de comunicação, as quais tornam qualquer pessoa capaz de produzir conteúdo. As redes sociais públicas, como o facebook e as privadas, como as do uatizapi, se transformaram num espaço de mentiras e invenções grotescas, com conteúdos grotescos e violentos. O uso de robôs para reproduzir todo esse chorume também é impressionante, o que faz com que a realidade criada dentro das bolhas seja magnificada.

Um exemplo concreto é a montanha russa causada pelas pesquisas realizadas por institutos de conhecida parcialidade. Cada resultado diário gera um estardalhaço nas redes, e as pessoas se movimentam como baratas enlouquecidas, deixando de lado seus princípios e ideais, buscando respaldar um pragmatismo sem cabeça. 

O enfrentamento à candidatura proto-fascista e ultraliberal de Bolsonaro vai se fazendo nas redes, quando a vida real nos aponta que há uma multidão de indecisos que precisam unicamente de uma boa conversa cara-a-cara para pensar seu voto. Uma gente que vaga pelos terminais urbanos, pelas padarias, pelos mercadinhos dos bairros, pela vizinhança e que acaba não encontrando ninguém para dividir suas angústias. 

No facebook pós último debate a gritaria generalizada é contra a barbárie que pode chegar caso vença Bolsonaro, e em alguns casos parece até que muitos já jogaram a toalha. 

Não é o caso. O povo brasileiro tem a sua racionalidade e sabe fazer seu cálculo. Mas, é preciso que haja gente capaz de fazer a conversa olho-no-olho, que é a única que pode fazer com que a pessoa se sinta realmente tocada. O bom e velho trabalho de base, do casa a casa, do pessoa a pessoa, o encontro humano, tão poderoso. 

Não é hora de largar a toalha ou enlouquecer no facebook. É hora de sair para a rua, encontrar o vizinho, o amigo, o companheiro, os parentes. É hora de fazer o embate real, amoroso e sincero. 

O Brasil não está ladeira abaixo. Mas, pode ir. Cabe a nós, os que historicamente têm feito a luta por um Brasil livre e soberano, impedir essa queda. É tempo de subir a ladeira. Como sempre fizemos.

Bora lá, pessoal.