Uma das formações daquele 1990 - Peçanha no gol |
O dia da vitória |
Aquele era para ser um domingo feliz. O mais feliz. Antônio nem foi para o mar. De manhã, revirou todo o guarda-roupa atrás da bandeira. Fazia tanto tempo que ele não ia ao campo. Mas naquele domingo ele iria. Era a decisão da Primeira Copa Santa Catarina (1990) e o Figueirense estava na final. Desde 1974 o alvinegro não ganhava qualquer título. Tinha que ser agora.
Neste tempo todo de jejum, a bandeira branco e preta tinha dormido no fundo do guarda-roupa. Por isso demorava tanto para achar. Quando encontrou, cheirava a mofo. Ele pendurou ao sol e foi ajeitar um cano, no qual iria prendê-la. Ao meio dia, a “bichinha” já tremulava em frente a casinha de madeira, que quase beijava o mar da Costeira.
No morro do Mocotó, a galera também se preparava. Os homens, encostados nas portas da bodega do Tinoco, entornavam uma branquinha para aquecer a goela. Juquinha, com o pandeiro, ensaiava um samba enquanto os outros garotos, com os tambores, marcavam o ritmo. Uma bandeira alvinegra balançava na mão, ora de um, ora de outro. O Figueira não iria falhar. Desta vez levaria o título, e o grito guardado iria explodir no Scarpelli.
Zeca, com 12 anos, nunca tinha visto seu time ganhar um campeonato e lembrava com amargura o título do Avaí, em 1988. Tinha sentido tanta raiva, tanta inveja, que tinha descido o cacete no filho do sargento Carlos, avaiano roxo, quando ele atreveu-se a arriscar uma gozação. Mas, neste domingo a festa iria ser dele.
No edifício Artur, bem no centro de Florianópolis, Eliete também jogava para dentro um trago de Velho Barreiro, para afogar o medo, que teimava em trancar a garganta. Sabia que o Figueira estava melhor que o Brusque. Mas, desde pequena também sabia da máxima: “jogo é jogo”. Como quem toca uma relíquia, ela pega a camisa alvinegra e estende na cama. Afaga devagar e pensa que aquele domingo vai ser mesmo de festa. Vai ter que ser, como diz a Gal e, quando a camisa entra pelo pescoço, acariciando o corpo, aí sim ela tem certeza. O Figueira vai ser campeão. Ela olha no espelho e os olhos no reflexo, brilham. Afinal, porque tanto amor? De onde vem esta euforia, esta coisa forte que meio explode no peito quando aquele bando de homens, vestido de preto e branco, sai do túnel? Como explicar este sentimento? Este grito solto, este bater descompassado, esta alegria na hora do gol? Eliete não sabia.
Por volta das duas horas da tarde, o terminal urbano já está fervilhando de gente em busca do ponto do ônibus do Canto. Todos os caminhos levam ao Scarpelli. No rosto de cada um grita um sentimento diferente. Medo, alegria, paixão, amor, carinho, dor, preocupação... As bandeiras voam pelas janelas dos ônibus e o grupo do samba batuca o hino do clube: “Figueira, Figueira, a tua glória é lutar...”. Os mais tímidos acompanham com um movimento de cabeça ou batendo os dedos no joelho. Mas a cara de todos é de pura alegria. De calção, camisa alvinegra e radinho de pilha, todos ali parecem cópias um do outro. Gritos, risadas, piadinhas e o grito de guerra: Figueeeeira! O ônibus parece voar, inebriado com aquela vibração toda. Eliete está ali, com a amiga Rose, que nunca tinha ido ao campo de futebol e olhava tudo com olhos virgens, sedentos.
Na fila para comprar ingresso é a mesma a alegria ansiosa. Os homens grudam a orelha no rádio e ouvem as primeiras notícias sobre o jogo. Tem pouca mulher por ali. “Futebol é coisa de macho”, tinha dito, um dia, o velho Fernandes. Mas, isto era coisa do passado. Os homens não podiam tirar das mulheres esta magia do futebol e elas invadiam cada vez mais a área da bola. Algumas driblavam o marido e diziam que estavam indo para a casa de uma amiga. Era o caso de Margarida, que se esgueirava pelo portão A, ligeirinha como quem rouba. “Meu marido não gosta que eu venha ao campo e ainda por cima é avaiano. Mas, hoje vai ser o meu dia”, comenta rindo e roendo a unha já sem esmalte.
Lá dentro a Teimosia Alvinegra faz a festa. Papel picado, talco, farinha. Vale tudo e quem não gosta é melhor se mandar. Aquele pedaço é o pedaço da orgia, do orgasmo da emoção. Rose, que ainda não foi mordida pelo vírus da bola, reclama da farinha, mas não se atreve a fazer qualquer gesto de desagrado. Apenas olha ressentida para Eliete. “Lavei meu cabelo hoje”, diz, mais de duzentas vezes, com beicinho. Coitada, fica branco quando o Figueira entra em campo.
A galera explode, feito uma mina, uma bomba. Os foguetes espocam sem parar e a farra da farinha é completa na arquibancada. O estádio pulsa como se fosse um coração bombeando o sangue vital para a vida.
Quando a bola começa a rolar ninguém vê mais nada. É só um esperar nervoso pelo primeiro gol. Um homem, com óculos fundo de garrafa, aperta os olhos, vira para a torcida e berra: Figueeeira! Fica assim o jogo inteiro, feito um louco, o calção caindo, deixando à vista parte da bunda branca. A rapaziada gosta e ri. Encharcado de cerveja, ele passeia próximo ao alambrado e segue berrando o nome do seu time, como um bebê que não sabe dizer outra palavra.
Um pretinho aleijado também está ali, com sua cadeira de rodas, esperando o gol. O olho brilha, a cerveja desce boa, ainda mais que é dada. Ele olha todo mundo ao seu lado e ri, batendo palmas. Todos vibrando na espera do gol.
Então, eis que vem o esperado. O gol! Do Figueira! A bola vai parar redondinha na rede do Brusque. Os mais velhos hesitam por um segundo, depois se desmancham, assim, como um picolé. O estádio balança, os gritos explodem, a galera alvinegra lava a alma. O homem de óculos fundo de garrafa cai deitado na arquibancada. Levanta as pernas para o ar e fica ali, com ar de bobo, sem forças para o seu grito. O aleijadinho, na euforia, rola da cadeira, mas nem liga. Fica no chão, batendo palmas e gritando como um louco. Um velhinho ao lado de Eliete chora mansinho, como se visse um milagre. Eliete abraça Rose e fica muda, parecendo ter engolido a bola do gol. A partir daí o povo não para mais, fica o tempo todo gritando, fazendo brincadeiras com a onda, levantando e sentando conforme o movimento da massa.
Neste carnaval acontece o segundo gol. Então não tem mais jeito. Está selado. A copa é do Figueira. Já não há mais o que fazer. Só esperar pelo fim do jogo, invadir o campo, abraçar os heróis, ficar com alguma lembrança daquela tarde mágica de gritos de “é campeão!”.
Os últimos minutos são tensos. A gurizada começa a pular a cerca que separa o público do campo. Os soldados fingem que não estão vendo nada. E não adianta ver, são muito poucos frente a massa. E assim, um por um, os garotos vão pulando e ficando próximos das placas de propaganda, esperando o apito final. Parecem bichos na hora do ataque que vai resultar na alegria do almoço ou jantar. Naquele caso é o ataque a um sonho, de ser campeão, finalmente realizado.
Apita o juiz. É o sinal. O povo entra em campo, agora a festa é dele. Têm quem pague promessa atravessando o campo de joelhos. Têm os que querem agarrar os jogadores, os que se atracam nas redes, arrancando pedaços para serem guardados nos armários e na lembrança. Outros gritam, arrastam bandeiras, se jogam no chão, explodem de prazer. Quando a taça chega, e os jogadores saem com ela em volta olímpica, aquela gente enlouquecida segue atrás, correndo feito loucos. A taça é deles também, tão esperada. Mas uma boa parte está nas arquibancadas, embalando a vitória, alguns choram como crianças, outros de mansinho, um choro feliz.
Depois, um a um, vão saindo devagar, com um sorriso imenso pregado na cara. Um sorriso que vai ficar por dias. Dentro do ônibus que volta para o centro, o clima agora é de calma. Assim como quando a gente acaba de fazer amor. O Figueira é campeão e a vida continua. Antônio vai para o mar, o Mocotó volta a sua calma e Eliete acorda cedo para trabalhar. Só uma coisa é certa. Todos eles vão sair de branco e preto naquele diáfana manhã.
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