Quem leu o clássico “Crime e Castigo” sabe que ali está
plasmada uma ética. Um homem comete um crime, ninguém vê. Ele pode seguir com
sua vida tranquilamente porque não houve testemunhas, ninguém nunca saberá que
foi ele o autor do crime. Ainda assim ele se remói de remorsos, no sofrimento
ético: ele sabe que foi ele quem cometeu a atrocidade. E assim transcorre a
narrativa de Dostoiévski, centrada no sofrimento psicológico do assassino. É
uma belezura de livro e, ao final, premido pelo dilema ético, o jovem se
entrega. Não precisaria. Poderia sair impune. Mas, não consegue.
Hoje, os tempos são outros. Vivemos uma época anômica. Não
há lei, não há regras, não há ética. Tudo parece permitido desde que o autor
dos delitos não seja pego. Está autorizado roubar, se o cara for suficientemente
esperto para não deixar rastros. Está autorizado matar, se não houver corpo nem
testemunhas. Não há remorsos, não há dor de consciência. Não há nada. Inclusive
um degenerado por vir a público defender outro degenerado, em nome de sabe-se
lá o quê. Fico pensando que romance Fiódor escreveria nesses tempos sombrios.
O apresentador da Globo que foi descoberto agora em uma
atitude racista, um ano depois do fato, teve esse azar. Foi pego. Disse o que
disse cercado de testemunhas, e não ficou nem vermelho, porque sendo quem é
acreditou que estava acima do bem e do mal. Outra característica do tempo.
Mesmo tendo testemunhas, há determinado tipo de gente que não sofre consequências.
Certamente não sofrerá. Já tem muita gente defendendo o “pobre” rapaz. Um tempo
na geladeira e logo estará de volta.
É assim. Vivemos o racismo estrutural. Impregnado no DNA de
uma sociedade escravista. Para os projetos de ‘sinhozinhos e sinhás’ o
negro sempre será um animal sem alma, servindo apenas para servi-los. Isso
inclusive assume uma capilaridade que toma até a mente daqueles que nunca
chegarão a ter uma “casa grande” para chamar de sua. São os feitores modernos,
sempre prontos a chicotear aos que a classe dominante ordena chicotear.
O Brasil não está voltando à idade média, como dizem alguns.
Essa estrutura erguida pelo domínio português nunca saiu de lá. Vive, latente,
nos porões da memória de todos os corpos. Por isso assoma quando a conjuntura
parece favorável. São como feras, aprisionadas, mas nunca mortas. O racismo, o
ódio ao pobre, à mulher, ao homossexual, o desrespeito ao velho, o descuido com
a criança. E, em meio a isso, a servidão voluntária daqueles que se conformam
com as migalhas que caem da mesa dos ricos.
Sim, essas feras estão aí, agora cada vez mais soltas. Cabe
a nós empreender a luta para fazê-las retornar ao porão.
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