Alzheimer/Velhice

sábado, 3 de setembro de 2016

Cresce o rechaço ao golpe


Foto: Rubens Lopes 

Um dos elementos importantes do processo de golpe vivido no Brasil foi a absoluta falta de gente na rua, saudando o momento. Mesmo aqueles que se mobilizaram contra Dilma, o PT e pelo impedimento, em grandes manifestações chamadas pela mídia e pelas organizações de direita, mantiveram-se dentro de casa. Vibraram no facebook, espaço protegido, mas não buscaram as ruas.  Não teve pato, nem camisas verde-amarelas, nem bandeiras do Brasil. Uma ou outra manifestação solitária.

Por outro lado, vieram para as ruas imediatamente as gentes que denunciavam o golpe desde sempre. Estudantes, juventude sem partidos, população desorganizada, e os militantes que sempre estiveram na luta com os trabalhadores. Voltaram, em profusão, as bandeiras vermelhas, as palavras de ordem, os gritos de guerra: “Fora Temer”, “Eleições Já”.

No dia da votação do Senado, já havia movimentação nas ruas. No dia seguinte foi maior, e depois do dia seguinte, de novo bem maior. A participação vai crescendo de forma exponencial, como já tivemos a oportunidade de viver em outros momentos históricos, como a luta pela Anistia, em 1979, e as Diretas, em 1983. É quase uma relação direta: as ruas se enchem mais e mais, e a mídia comercial esconde tudo, mais e mais, procurando criar outros pontos de atenção para tirar do foco da população a luta efetiva que se dá nas ruas.

De novo, percebe-se que essa é uma tática derrotada. Quem vai para a rua vê o que acontece, e os que circulam pela cidade acabam sabendo. A verdade escapa da prisão da mídia. E, hoje, com as novas tecnologias, fica bem mais fácil a informação chegar por outras vias. Até mesmo os mais reacionários tem na sua “linha da vida” um irmão, um tio, uma sobrinha, alguém de suas relações que mostra o que acontece. Assim, acaba tendo de saber. E, como na Anistia e nas Diretas o processo vai num crescendo, impossível de parar.

Florianópolis foi assim. No dia seguinte ao golpe já estavam nas ruas os estudantes e populares. Mais de três mil. Cantaram, pularam, dançaram, protestaram e seguiram para fechar a ponte. Veio a polícia – como sempre – e provocou o tumulto. Violência, bombas, gente machucada. O jeito do poder de intimidar. Outro engano. “Amanhã vai ser maior”, gritavam, enquanto buscavam abrigo. Incorporavam a palavra de ordem que ecoou na conservadora capital dos catarinenses no ano de 2004, quando os secundaristas iniciaram o movimento que ficou conhecido como a “Revolta da Catraca”. Naqueles dias, eles capitanearam uma luta que chegou a juntar milhares de pessoas contra o aumento das tarifas.

E assim foi. Dois dias depois lá estavam de novo as gentes nas ruas. Juntando-se em frente à velha alfândega, aquelas caras jovens aliadas aos velhos militantes chegavam com seus tambores, danças, bandeiras e canções. De novo o caminhar pelas ruas da cidade, com a força do protesto entrando pelos ouvidos dos que se recusavam ouvir. E era tanta alegria na luta que os trabalhadores do comércio tiveram de juntar-se à porta, para ver passar o cortejo. Não faltaram os sorrisos e os aplausos. Das janelas dos prédios também vinha o piscar das luzes, saudando a indignação. “Fora Temer, Fora Temer”.

Naquele dia o Congresso – em mais um ato de deboche explícito – havia aprovado as pedaladas fiscais, as mesmas que chamaram de “crime” para condenar a presidenta do país. Nos argumentos da decisão afirmavam que essa era uma prática corrente que só precisava se legalizar. Tripudiavam do povo. E a resposta foram as manifestações gigantescas por todo o país.

Em Florianópolis, quando a noite avançou, já eram mais de 10 mil pessoas nas ruas. Tudo ia bem até que a caminhada chegou na rua Mauro Ramos, onde a polícia encurralou alguns e fez o que sabe fazer: provocar os tumultos. Bombas, balas, cassetetes, pauladas, confusão. 

No dia seguinte, a mídia comercial tentava convencer a população de que os “baderneiros” são os jovens que quebram vidros de bancos – esses que são os maiores ladrões. E, nas redes, há os que se solidarizam com os banqueiros muito mais do que com a jovem que teve seu olho cegado pela polícia. Normal.  Mas, para os que recolheram as bandeiras, o que ficou martelando foi o mantra: “amanha vai ser maior”. Quem duvida?

Por todo o Brasil as manifestações se agigantam, nas capitais, nas cidades médias, nas pequenas cidades. Na semana que vem já têm novas marchas, em Florianópolis será na terça-feira, contra o golpe e por eleições diretas já. É um momento histórico, de resistência contra tudo o que já foi anunciado, de retirada de direitos, de censura, de autoritarismo, de quebra do processo democrático.

São as ruas as que vão dar o tom. Certamente aumentará também a repressão. É o momento dos adversários medirem forças. É claro que o Estado tem todo o aparado repressor, com a violência característica. E as gentes têm seus corpos e sua força de luta. Não haverá contemporização, nem se pode esperar outra coisa do Estado que não o ataque desproporcional. Serão dias duros.  Os que bateram panela e se esconderam agora, na sua vitória de Pirro, não estão dormindo. A luta de classes será expressa no cotidiano, à luz do dia.

O Brasil está na rota de desestabilização que convulsiona toda América Latina. Caberá aos movimentos e ao povo em luta dar a direção.

Na capital catarinense, o ato deverá ser em frente ao Trapiche da Beira-Mar. No reduto da classe dominante o povo se reunirá, olhando de frente para os algozes, sem medo. Ao contrário. Botando medo! Porque quando a multidão avança, derruba as bastilhas....





sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Re-puta madre, se me fue la Gina




Escapam-me as palavras, desaloja-me a alma, emudeço. Num dia tão triste para o Brasil, Gina achou de encantar. A gigante da banda oriental, mulher única, artiguista, comunista, lutadora das causas justas, meu exemplo de vida. Agora, no calor da perda, só me vem a batida forte do coração, a lágrima, o sentimento de orfandade. Tudo aqui fica triste. Todas as homenagens que ela merecia eu as fiz quando por esse mundo andava. Todos os beijos, todos os afagos, todos os carinhos, todas as risadas, as cachaças, os vinhos, as palavras de amor, tudo foi vivido. E hoje, às 15h, quando prestarem a homenagem final, eu plantarei uma flor, porque Gina sempre será vida. Agradeço por ter compartilhado com ela boa parte da existência. Eterna, ela está grudada em mim. E seguiremos, pelos caminhos da América, até que chegue a minha hora. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Da política e da generosidade



Hoje, primeiro de setembro, acordamos com um gosto amargo na boca. Deu-se o golpe. E, o mais dolorido, temos de conviver com o aplauso de velhos companheiros de luta, que se rejubilam pela queda de Dilma e do PT. Posso entender, mas quero dialogar.

Conspiro de todos os argumentos daqueles que dizem que o governo de Dilma era um governo neoliberal. Era. Jamais guinou à esquerda. Sua única qualidade era ter um verniz social que, não obstante ser só um verniz, significou a mudança de vida para milhões de pessoas. 

Impossível negar isso. Alguns dirão que foi só um remédio para o monstro e que atrasou a revolução. Concordo em parte, porque afinal, para quem passa fome, ter o que comer e o que dar de comer aos filhos faz uma diferença abissal, inclusive para poder pensar em revolução.

Também conspiro da ideia de que para os empobrecidos, os negros, e tantos outros grupos específicos da classe trabalhadora, o “golpe” sempre esteve aí, seja no governo Lula ou Dilma. Na verdade começou lá no 1700, com o modo capitalista de produção. A lei, a Constituição e tudo mais que hoje se levanta para referendar que sim, foi um golpe o que aconteceu ontem, nunca serviu para essa parcela da população, sistematicamente assassinada, encarcerada e vilipendiada. 

Mas tem um detalhe aí. Se para os trabalhadores a lei nunca serviu, agora uma boa parcela da sociedade pode ver e sentir na carne, o que é rotina para nós. Inclusive os políticos que se sentiam seguros na aba do poder. Não há lei capaz de deter a classe dominante nos seus desejos. Por isso a luta, sempre viva e renhida.

Tudo isso dito, penso que o momento o qual vivemos pode ser um tempo pedagógico. Realizar uma autocrítica, reconhecer os equívocos, desenhar novos mapas. 

Só que para isso há que se ter generosidade  para com os companheiros e companheiras que se perderam no caminho. E digo isso, justamente por ter vivido o processo inverso.  

Quando Lula lançou a carta aos brasileiros e escolheu um empresário do campo produtivo nacional para vice na chapa que concorria a eleição presidencial em 2003, já se sabia que - caso vencesse as eleições  - não seria o governo com o qual sonhamos e pelo qual lutamos uma vida inteira. Muita gente que estava filiada ao PT saiu do partido nessa época e os simpatizantes ficaram à espera, para ver o que passaria.

Vieram as eleições e veio a vitória. Três meses depois muitos de nós já estávamos na rua, lutando contra a reforma da Previdência proposta pelo então presidente, que retirava direitos dos trabalhadores. Aquele seria um governo contra o qual teríamos ainda de travar largas batalhas. Nunca nos furtamos. Naqueles dias eu estava na direção do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e, com meus companheiros e companheiras, pagamos um preço bem alto por imediatamente passar à crítica feroz contra as medidas que iam contra os trabalhadores e contra todos os princípios pelos quais lutáramos.

Perdemos amigos de anos, fomos acusados de fazer o jogo da direita, fomos  xingados e amaldiçoados.  Não foi fácil, mas seguimos na crítica, desvendando todas as armadilhas e todos os problemas que se colocavam na proposta de conciliação de classe e na cooptação de importantes lideranças do movimento popular. Denunciávamos a domesticação dos sindicatos e dos movimentos, gritávamos aos quatro ventos os problemas e desenhávamos os cenários que poderiam vir caso tudo seguisse como estava. Fomos um dos primeiros sindicatos do estado a se desfiliar da CUT e apontamos cada equívoco produzido, fazendo a crítica fundamentada e pela esquerda. Buscando sempre contribuir, nunca destruir.

Foram tempos duros, de lutas divididas, greves doloridas, perdas pessoais. Velhos companheiros apontavam o dedo para nós  - “direita, direita” - em vez de para o governo. Aguentamos o tirão, pois, desde sempre, nosso compromisso foi com a classe trabalhadora e se o governo não avançava nas pautas, era nossa obrigação ética lutar contra ele, fosse de qual partido fosse.

Agora, findo o tempo do PT no governo, temos duas opções no trato para com esses nossos velhos compas: uma é agir como agiram conosco, apontando o dedo, raivosamente, cuspindo e tripudiando da experiência desastrosa da qual fizeram parte. A outra é fazer diferente. Como gostaríamos que tivesse sido conosco. Acolher, abraçar, consolar e com eles e elas realizar a análise dos dias. 

Claro que estou falando aqui daqueles e daquelas que sabemos não serem corruptos, nem chupins do público. As gentes crédulas e honestas que acreditaram ser possível avançar dentro dos moldes construídos pelo petismo. Os que contribuíram para que as políticas públicas chegassem aos empobrecidos, os que piamente acreditaram que, unidos com a burguesia esclarecida,  poderiam caminhar para dias melhores para toda a classe. 

Pode ser uma atitude ingênua, jesuânica ou moralista, mas é assim que penso a vida. Todo aquele que erra tem chance de rever seus equívocos, fazer autocrítica, acertar o rumo. Quantas vezes nós mesmos nos vimos assim, nessa posição, de termos feito uma grande cagada. Se tivéssemos tido o abraço firme dos compas, talvez pudéssemos ter atravessado a tormenta melhor agasalhados.

Agora vêm aí tempos duros. Serão, certamente, mais duros do que no petismo, principalmente para a classe trabalhadora. Então, será hora de unir forças. Não com os ladinos, os mal-intencionados, os carrapatos do poder. Mas como nossos velhos compas, os da boa cepa, que se equivocaram, mas sem má-fé. Para eles, temos de estender a mão, porque há muito para reconstruir. 


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O método que desvenda a realidade

Imagem: www.ocafezinho.com

Na última semana participei de um debate na FURB/Blumenau, na Semana de Ciências Sociais. Minha tarefa era levar para a discussão do ensino de Sociologia as ideias de Simón Rodriguez, o grande educador caraquenho que, numa América Latina ainda invadida pelas metrópoles portuguesa e espanhola, ousou dizer que se deveria ensinar às mulheres, os negros e os índios visando prepará-los para a vida na República, que já apontava. E, segundo o professor Newton Tomazzoni, que escreve uma tese sobre ele, o primeiro a defender a soberania popular.

Assim, contei da história original desse homem único e da sua luta para garantir educação de qualidade a toda a gente nesse nosso espaço geográfico, observando que o ensino de qualquer disciplina deve levar em conta os elementos levantados por ele: inclusão de todos, garantir que se aprenda a aprender, abrir espaço para a invenção, buscar não imitar a Europa, ser original.

De certa forma, ainda que Simón tenha publicado sua obra no período que vai de 1791 a 1860, sua voz transformadora tem tudo a ver com o momento que vivemos hoje no Brasil, quando o grupo que articulou o golpe de estado propõe o que chamam de “escola sem partido”, que, na prática é o impedimento do pensamento crítico de direito. Digo de direito porque, na verdade essa proposta de “escola sem partido” que chega ao ministério da Educação pelas mãos do ator Alexandre Frota, já existe na prática. No universo dos professores que atuam na escola fundamental, média e na universidade, quem trabalha - sem censura – o pensamento crítico? Imagino que ninguém.

Trago um exemplo de minha aldeia. Em Florianópolis, o professor Eduardo Perondi e mais outros dois colegas, decidiram discutir com os alunos e os pais de alunos sobre as condições precárias da escola onde ensinavam. Mostraram a situação, explicaram as razões escondidas, desvelaram as relações sociais que implicam no fato de uma escola pública, num bairro de periferia, ser como é. Depois de várias reuniões, os pais e os alunos, compreendendo que são sujeitos de direitos, decidiram não iniciar as aulas e exigiram a imediato término das obras da escola nova  - cuja construção se arrastava.  O resultado de tudo isso? Os dois colegas de Eduardo - mais antigos na profissão - receberam punições, foram suspensos, tiveram salários cortados e Eduardo, que era um professor jovem, recém-ingressado, foi exonerado. Perdeu o cargo, foi expulso. E de nada adiantou a luta dos alunos por meses a fio pedindo o retorno do jovem professor. Ou seja, venceu a escola alienante. A que não pode ensinar a pensar.

E assim, poderíamos pegar outros tantos exemplos. Como a repressão violenta que sofreram e ainda sofrem os jovens secundaristas de São Paulo, Goiás e Porto Alegre, que ocuparam suas escolas contra a tal da “reestruturação”, que nada mais é do que tirar dos meninos e meninas a possibilidade de estudar perto de suas casas, com professores que os conhecem e se importam e que, portanto, poderiam levá-los  a aprender a pensar. A tal da “escola sem partido” com a qual sonham Frota e seus parceiros golpistas é exatamente essa que está aí, a escola partida, excludente e conservadora, que não se move pelos preceitos transformadores de educadores como Simón ou Paulo Freire, nosso mestre nacional.

Então, o que essa gente quer é simplesmente tornar “legal” a censura, a perseguição, a repressão, a violência contra todos aqueles e aquelas que educam de verdade. Que são originais, que encontram caminhos em meio às trevas, que ensinam a aprender, que provocam o pensamento crítico. Na verdade, não é uma escola sem partido o que querem, mas uma escola sem cabeça, sem compromisso, sem respeito com os jovens e seus saberes.

Por isso causou-me surpresa ouvir de um integrante da plateia que a perspectiva que o debate trazia, sobre a necessidade do pensamento crítico e o desvelamento das relações sociais, fosse nada mais do que “religião” e que as ciências sociais exigem um método científico.

Ora, o método histórico/dialético é um método científico. Um método que, inclusive, muda radicalmente a história da pesquisa social. Tem rigor, tem empirismo, tem compreensão do mundo, na aparência e na essência, desvela as relações. Explica e abre portas para transformar. Não é sem razão que, como diz Lukács, as ideias de Marx são perseguidas e vilipendiadas, enquanto as de Durkheim ou Weber, não.   Os dois últimos levantam dados sobre a realidade, mas não perguntam os porquês.

Vem-me a mente a frase lapidar de Ernest Bloch, e sua obsessão pela utopia: “Aquilo que é, não pode ser verdade”. Bloch via a realidade, mas sabia que havia algo por trás, essas relações escondidas que não fazem parte de qualquer mistério.  A luta de classes na sua transcendência.

Nada tenho contra a religião, a boa religião - do re-ligare, ligar ao sagrado -  coisa com a qual conspiro. Mas, se existe algo que o método histórico/dialético não é, é religião. Afinal, ele não liga coisa alguma ao sagrado. Pelo contrário. Ele desvela o humano, o demasiado humano e suas relações sociais.  

Nesses tempos obscuros, quando ideias como a “escola sem partido” encontram eco no fundamentalismo que avança, tudo o que posso esperar é que os educadores sigam resistindo. Aqueles mesmos de sempre. Os que hoje - na escola atual - são perseguidos por abrirem portas, janelas e frestas no ensino conservador que nos domina. 


domingo, 28 de agosto de 2016

O golpe


Os tempos de fundamentalismo mental estão aí e são duros. Sei que pouco adiantará dizer que fui crítica do governo Lula desde os primeiros meses, que fiz greve contra a reforma da Previdência, que fiz outras tantas greves por melhorias salariais, que escrevi textos de análise crítica e tudo mais. Também pouco adiantará falar de toda a reflexão feita a cada ação desastrosa do governo Dilma, como o seu apoio ao agronegócio ou sua omissão diante do problema indígena. Basta que falemos no golpe e já alguém salta, acusativo: “petista”.

Não importa. Meu destino é esse: escrever. Então, escrevo o que me vai à alma.

Causa-me profundo pavor o que vejo e ouço da sessão do Senado que legitimará o golpe. É como um livro de Albert Camus. É como uma ópera bufa. É um teatro do absurdo. Mesmo sendo leiga em direito, qualquer pessoa com um único neurônio já pode ver que o que acontece ali é uma farsa.

Não há crime de responsabilidade.  Não há nada que seja argumento seguro para tirar do cargo a presidenta. Que ela estava governando com a elite, sabemos. Que não questionava o sistema capitalista, sabemos. Que beijava na boca dos fazendeiros, sabemos. Não era um bom governo. Mas, não há crime. Ou mau governo agora é crime? Não. Não é. Nunca foi. Se fosse, quantos outros presidentes não teriam sido caçados?

O acosso contra Dilma é uma jogada política. A classe dominante brasileira já não quer mais saber de gerentes com resíduos sociais. Há que ter mão dura, arreganhar dentes, pisar no pescoço dos pobres, retirar até a última gota. Em mais um pico da sempre presente crise capitalista, os donos do poder decidiram que não se pode mais sequer dividir migalhas. Melhor que elas sejam jogadas no lixo do que corram o risco de emancipar algum dos famintos.

E assim vai se desenhando o gole, melancolicamente, enquanto os candidatos de todos os partidos fazem passeatas em busca de votos.

Até ontem eu não tinha qualquer simpatia por Dilma. Agora, ela até me provoca ternura. Fico olhando sua figura pouco afeita ao sorriso e ao afago, sendo abraçada pelas pessoas comuns em cada canto por onde passa, enquanto seus parceiros de partido parecem ter se esquecido dela. Foi bom enquanto durou, mas, agora, é página virada. A defesa de seu governo é feita no campo institucional. Bem feita, é fato, por Cardoso e os colegas senadores. Mas é protocolar. Surpreende, paradoxalmente, que sua mais ferrenha defensora seja justamente a rainha do agronegócio: Kátia Abreu, do partido golpista. Certamente é a amizade que fala ali.

Nas ruas, de maneira espontânea, as gentes saúdam aquela que de certa forma, no mundo da política real, já foi esquecida. Ligar-se a ela pode não render votos. E me parece que é ali, e só ali, que ela consegue se sentir amparada, com afeto e carinho. Ah, os humanos...

Enquanto o Brasil inteiro espera pelo desenlace do golpe, a vida eleitoral pulsa. O partido da presidenta amarra coligações com seus inimigos e segue, pelas ruas, pedindo votos, pronto para recomeçar. O que foi, foi. Agora é hora de ganhar cidades e cadeiras de vereadores.

Mesmo vivendo a política desde tanto tempo, ainda me surpreendo com essa frieza diante do golpe. É inexorável, dizem, melhor tocar o barco.

Mas e nós? E todos os que somos a maioria? Que nos resta? Aceitar o golpe, já que ele é inexorável?  Tocar qual barco? Fico deveras estupefata.

O golpe, cujo desfecho se avizinha não é uma coisa qualquer. E tampouco tem a ver com a queda da presidenta. O golpe é contra todos nós, as pessoas comuns. Respaldará retirada de direitos, cortará programas sociais, marcará o arrocho, o desemprego, o “ajuste”. A Dilma faria a mesmo coisa, dirão alguns. Pode ser. Mas, não temos como saber. É futurologia. O que sim, podemos saber, é o que está sendo feito pelo governo Temer e seus aliados.

Por isso não consigo compartilhar da alegria farsesca da campanha eleitoral. Penso no valente povo hondurenho que, diante do golpe vil contra sua democracia capenga, não topou participar das eleições fraudulentas promovidas para eleger o novo presidente. A esquerda não apresentou candidato. Recusou-se a referendar a farsa. Por isso me espanta que tudo siga como dantes no quartel de Abrantes, inclusive com o PT coligando com partidos que são golpistas.

A impressão que tenho é que quando tudo acabar no Senado, a vida seguirá seu curso normótico, com toda a gente aceitando os fatos. E, em outubro, festejarão a “festa da democracia” depositando seu voto na urna, acreditando que tudo está bem. A democracia sem máculas. E logo, quando menos esperarmos, começarão as campanhas para a presidência.  

Posso até estar muito equivocada, mas penso que tudo isso é muito ruim. Parece-me que sairemos desse episódio sem qualquer salto dialético. Espero estar errada.