Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Ano novo


A despeito de tudo, re/brotaremos...

As celebrações de um novo começo na vida das gentes são tão antigas quanto a própria raça. Nas culturas mais remotas o “recomeço” era celebrado sempre no solstício ou equinócio de primavera (dependendo do hemisfério), quando tudo começa outra vez a florir. É que como o conceito de tempo ainda não havia sido aprisionado nos relógios a vida das comunidades se regia pelas estações. Naqueles dias, o povo se reunia em festivais, cantando, dançando e bebendo em honra da terra. As mulheres engravidavam e a vida florescia. Era a completude do ciclo da existência, sempre se repetindo.

De qualquer forma, na medida em que as culturas foram se complexificando, igualmente encontraram formas de medir o tempo. Os maias, por exemplo, lograram construir um intrincado calendário com 364 dias, e mais um outro, chamado de “dia fora do tempo”. Este, celebrado em 25 de julho, marca o início do novo ciclo. Já nas culturas do médio oriente, a festa era no equinócio de março, por conta da estação. A comunidade judaica comemora sua festa de Ano Novo, ou Rosh Hashaná, uma espécie de dia do julgamento, em meados de setembro ou no início de outubro, onde as pessoas fazem um balanço da vida. Os islâmicos celebram em maio, contando o tempo a partir do aniversário da saída do profeta Maomé de Meca para Medina, a Hégira, cujo marco corresponde ao 622 da era cristã.

Na China, o “recomeço” é celebrado em datas nem sempre fixas, mas entre final de janeiro e início de fevereiro. Lá, o calendário está relacionado ao movimento da lua e conta cada mês como o mês de um dos 12 animais que se apresentaram na frente de Buda e o ciclo da vida segue esta dinâmica, sempre começando na primavera.

O mundo ocidental também institui o seu “recomeço” a partir de um deus, que não é o cristão. Foi o imperador Julio César, no ano 46 antes de Cristo, que determinou o primeiro de janeiro como o dia do início do ano, em homenagem a Jano, o cuidador dos portões. Depois, mais tarde, com a oficialização do calendário gregoriano, esta data permaneceu. Os franceses deram o toque romântico chamando-o de réveillon, que vem do verbo réveiller, cujo significado é "despertar".

E assim as gentes escolhem seus momentos de despertar, de balanço, de julgamento de suas vidas. Vemos que tudo depende da cultura onde se está inserido embora a ideia seja sempre a mesma: recomeçar, jogar fora o que foi ruim, esquecer, olvidar. Começar de novo, dar-se novas chances. E assim, vai avançando a raça, buscando aquilo que os filósofos gregos insistiram em chamar de “felicidade”. Pois eu, que reverencio a terra, os animais, as forças da natureza, que amo Jesus, Maomé, Khrisna e Buda, também vou comemorar. Que venha mais um ciclo, e que seja bom. Que floresça a vida, o amor e a paz. E que todos os povos possam vibrar na mesma onda cósmica. 

Eu te convido a dançar na noite da virada, com os deuses e deusas, sob as estrelas. Para que possamos receber com alegria o ano novo, recomeçar... despertar! Ah, quanta bênção em se viver neste grande grande jardim!

2017 será duro e exigirá muita luta. Ensaiemos o riso e afiemos as adagas. Já vem a batalha. Mas, enquanto ela não chega, cantemos! ... Pois, como já nos ensinaram os povos andinos, antes de qualquer grande obra ou guerra é preciso celebrar. Nunca sabemos se voltaremos vivos...

sábado, 24 de dezembro de 2016

A Síria e suas complexidades


O povo sírio, que hoje vimos fugindo da guerra já é um velho conhecido do mundo judaico/cristão, a partir da leitura do livro sagrado, a bíblia. A região é terra originária de povos como os canaanitas, hebreus, assírios, babilônios, persas, gregos, bizantinos e fenícios. E sempre foi motivo de cobiça dos que alçavam o poder, por ser uma espécie de portal unindo dois mundos, o europeu e o árabe. 

O seu povo mais antigo é o Cananeu, o qual conhecemos como fenícios, exímios marinheiros e comerciantes, criadores da primeira civilização mercantil do mundo. A eles também devemos a invenção do alfabeto, a técnica de construção de barcos de alto-mar, a criação de mapas náuticos e a ousadia em conhecer o mundo para além de seus limites.

Já a conformação política de seu espaço geográfico obedece a uma lógica que é quase incompreensível para nós, ocidentais, acostumados com a ideia de estado no modelo europeu e à chamada democracia burguesa. Não se pode pensar o mundo árabe com esses conceitos. Desde os tempos mais remotos os governos regionais estiveram nas mãos de clãs, ora originários, ora oriundos de conquistas de vários outros clãs ou mesmo impérios, como o romano. Uma forma de governar na qual o sangue tem grande peso.

Com o aparecimento do profeta Maomé, que de certa forma uniu o mundo árabe, o processo de mando mudou outra vez. Começou o tempo dos “sucessores” do profeta, os califas. Assumia quem se mostrasse sangue do profeta ou tivesse ligações profundas com seu legado. Mas, ainda assim, mesmo entre eles acontecem divergências e vários grupos vão se formando, representando o que consideram a “mais” legítima descendência de Muhamad. Não é um processo tranquilo. Também é eivado de guerras e disputas.

Não bastassem suas próprias divisões, os árabes dessa região também tiveram de enfrentar as Cruzadas, que foram as invasões do mundo cristão, dispostas a “civilizar” os muçulmanos e a roubar todas as riquezas. A Síria, para azar do seu povo, tinha um papel muito significativo na história do cristianismo, pois foi na entrada da cidade de Damasco que o apóstolo Paulo, o que viria a ser o criador da igreja católica, se converteu. Logo, aquele era um espaço sagrado que os cruzados queriam, por força, conquistar. Naqueles dias, o poder central da região estava em Bagdá e por conta disso a ocupação cristã foi bastante facilitada, durando mais de 200 anos.

Foi só em 1175 que o grande Saladino, ao unificar Egito, Síria e Iraque, recuperou o espaço e tornou Damasco a capital, expulsando os cristãos. Toda essa história explica porque até hoje sobrevivem as comunidades cristãs na região, afinal, Saladino respeitou os credos, e nunca impôs a religião muçulmana a nenhum dos seus conquistados.

Com a morte de Saladino a região voltou a se quebrar e, de novo, os conflitos regionais e os clãs alternaram os mandos. Mas foi justamente a presença de grupos cristãos que, mais tarde, a partir de vários conflitos, tornou possível a invasão da Síria pela França. Com o pretexto de que tinha de salvar os cristãos, os franceses se arvoraram entrar no território por volta da segunda metade do 1800 e ali ficaram até a independência do país em 1946. Na verdade, a região já estava enquadrada no processo de acumulação do capital que levava as nações ricas a buscarem o domínio sobre novos territórios. Isso não aconteceu apenas na região árabe, mas também na África. A intenção era tomar toda a terra possível. Os franceses dominavam Síria e Líbano, enquanto os ingleses ocupavam a Palestina, a Jordânia e o Iraque.

Assim que os conflitos e guerras pelo domínio da região não são de agora. O que acontece nesse momento na região é mais uma investida do sistema capitalista maduro, sob novas coordenadas e sob novos grupos de poder. 

A Síria para os árabes

Quando no final da segunda grande guerra as forças políticas mundiais se modificaram foi a vez de a região reforçar a luta pela libertação do jugo colonial europeu. Isso ficou visível já na Guerra do Suez quando as forças sírias se aliaram ao Egito contra a França, Inglaterra e Israel. Foi o começo do que mais tarde veio a ser o mais ambicioso projeto de unificação: A República Árabe Unida, proposta pelo egípcio Gamal Abdel Nasser, que não vingou, e mais tarde a Federação das Repúblicas Árabes. Propostas que preocuparam os governos dos países centrais, pois, afinal, aquele mundo era a maior reserva de petróleo do planeta. 

Não bastassem os desejos de libertação autóctones as ideias socialistas também começaram a fervilhar na Síria e é justamente uma revolução popular, em 1963, que coloca no poder o Partido Baath (Partido do Renascimento Árabe Socialista), de caráter nacionalista e socialista, que igualmente se expressa no Iraque, Líbano e outros países da região. Com isso, as propostas de unificação ou de formação de um grande bloco regional de poder ficaram mais fortes. Não foi sem razão que a Síria teve participação central nas guerras árabe-israelenses, se colocando contrária a política dos Estados Unidos na região bem como aos famosos acordos de Camp Davis, fechados entre o Egito e os EUA. Esse acordo, inclusive, isolou o Egito do restante do mundo árabe, afinal, ninguém ali acreditava que o império estadunidense fosse cumprir as promessas. Como de fato não cumpriu. Uma delas, por exemplo, era criar o Estado da Palestina. Todos sabem o que aconteceu. Israel seguiu tomando território e hoje aprisiona os palestinos em sua própria terra.

Na verdade, a criação do estado artificial de Israel já tinha sido um bem urdido plano de desestabilização da região logo após a guerra. Era preciso ter ali uma base segura para garantir as futuras invasões. Não teve, portanto, nada de humanitário na conformação de Israel. Tudo fazia parte de uma jogada política de dominação do terreno e de suas respectivas riquezas. Assim que nos anos 60 e 70, a ascensão de grupos socialistas na região árabe se configurava um perigo muito grande para os EUA, e o combate não demorou. Durante esse tempo a Síria teve papel fundamental na luta pela unificação árabe, liderada por Hafez al-Assad.

Durante os anos 70 e 80 os Estados Unidos apertaram o cerco na região, criando alianças com governos árabes, buscando assim, enfraquecer a ideia de unificação. A própria guerra Irã-Iraque contou com a mão, sempre visível, dos Estados Unidos, e foi minando cada vez mais as propostas de um mundo árabe irmanado. Arábia Saudita, Iraque e Jordânia estavam comprovadamente na esfera de “amizade” dos EUA. Naqueles dias, os socialistas da Síria acusavam o Iraque de armar rebeldes conhecidos como “irmandade muçulmana”, para que esses derrubassem o governo sírio. Foi um tempo de muitas batalhas.

A partir daí a região esteve envolvida em conflitos permanentes, sempre ligados as duas grandes narrativas políticas: o capitalismo, representando pelos Estados Unidos e o socialismo, representado pela União Soviética. Assim como todo o resto do mundo, a chamada “guerra-fria”, de disputa pelos espaços, era o que comandava as ações políticas. Veio a guerra civil libanesa e a intervenção de Israel. Vieram as crises com os outros vizinhos e até com aliados,  como o próprio Arafat. 

Com o fim da União Soviética as coisas naquela parte do globo também começaram a mudar. A Síria voltou a ter relações com o Egito e nos anos 90 também se aproximou dos Estados Unidos.  Dentro da Síria seguiam atuando os grupos ligados à irmandade muçulmana. E também seguia o conflito com Israel, pois a Síria queria a saída imediata dos sionistas e a recuperação das Colinas de Golan.  No final dos anos 90, o país volta a se aproximar do Iraque, no contexto da guerra movida pelos EUA.

No inicio do novo milênio, com a morte de Hafez al-Assad, que havia comandando a Síria nesse período,  assume a presidência o seu filho, Bashar al-Assad.Esse seguiu enfrentando o intrincado tabuleiro da região, dividido entre as propostas socialistas, os grupos rebeldes pró Estados Unidos,  os clãs tradicionais e os fundamentalistas islâmicos. Assad, o filho, seguia a mesma estrada de tentativa de expulsão de Israel da região, em aliança com o Hezbollah, e os conflitos se repetiam, com atentados, conflitos e períodos de relativa paz. 

No ano de 2002 os Estados Unidos incluíram a Síria no chamado “eixo do mal”, usando o mesmo discurso que usavam contra o Iraque, de que o país tinha armas de destruição massiva. E, depois de invadirem o Iraque para derrubar Hussein, ainda aplicaram sanções econômicas.  As ações contra Síria se fortalecem depois do suposto ataque às Torres Gêmeas nos EUA, o qual desencadeia o violento processo de ocupação do oriente médio.

Nesse contexto de permanente ataque por parte do ocidente, al-Assad também enfrentava a ação de novos grupos de oposição dentro da Síria, alguns patrocinados pelos EUA e outros não. Começava aí também a escalada do fundamentalismo religioso, que hoje se expressa no conhecido ISIS, ou estado islâmico.

Em 2007 al-Assad volta a ser eleito presidente com 97,6% dos votos e segue com sua luta contra Israel. Dentro do país fervilham novos protestos populares e a Síria vive uma espécie de guerra civil. A chamada “primavera árabe” que acabou derrubando um a um os governos dos países que não se alinhavam aos Estados Unidos jogou a Síria no centro do conflito. Nesse contexto já aparece, em 2011, o ISIS, ou estado Islâmico que, a partir de um pensamento fundamentalista e recebendo armas dos Estados Unidos, começa a pleitear um novo califado na região, ou seja, um novo sucessor do profeta Maomé. Juntam-se assim a religião, os interesses do ocidente, os interesses dos mais variados clãs, os nacionalistas, os interesses geopolíticos da Rússia, num grande caldeirão que vai consumindo o país. Em 2014, apesar de toda a ação estadunidense contra o “terror”, o que se via era esses grupos crescendo sob suas asas, e o Estado Islâmico já dominava uma grande região na Síria provocando mortes e fugas em massa. O exército sírio não deixou de dar combate, aliando-se aos russos, na tentativa de exterminar essa ameaça que é concreta no território.

E essa é uma pequena parte da história desse espaço geográfico tão conturbado. Uma guerra que, de fato, começou, com a participação do ocidente, depois da invasão da França em 1860, já configurando uma ofensiva do capitalismo nascente. Olhando desde fora, percebe-se que o lugar é um tabuleiro, no qual as grandes potências e os interesses das classes dominantes mundiais se digladiam. No meio de tudo está o povo desorganizado, o que sofre a ação da guerra, seja de que lado for. Não importa se as balas vêm dos russos, dos estadunidenses, dos árabes socialistas, dos mercenários  ou dos religiosos fundamentalistas. As pessoas estão sob fogo cruzado. Quem tem condições e não quer se aliar a nenhum dos grupos que lutam na Síria, foge. Os que não têm como sair ficam e morrem. Há os rebeldes de vários matizes que ficam e lutam. E há as tropas sírias, russas, estadunidenses, e uma sorte de mercenários de vários países.

Quem está desse lado do mundo e se depara com todo esse terror que tem ceifado a vida de milhões de pessoas a primeira a coisa a fazer é buscar conhecer a realidade do lugar. Puxar pela história, procurar saber quais são as forças que se debatem ali, hoje bastante diversas e já contaminadas com as ideologias ocidentais. Depois, é preciso encontrar um lado, pois os conflitos que hoje tem lugar naquela parte do mundo estão visceralmente ligados a nossa existência aqui nessa já tão destroçada América Latina. No oriente médio, jogam-se as cartas da nova onda de acumulação capitalista, disputam poder os novos grupos que conformam as forças mundiais. Se para garantir a expansão do capital for necessário matar toda a população da região, eles o farão. Não é uma briga entre os bonzinhos e os malvados, é o capitalismo sendo ele mesmo.


A guerra que temos de travar é contra esse sistema que, para existir e se reproduzir incessantemente, passa por cima dos interesses humanos.  E que avancem as forças organizadas que lutam por um mundo livre do capital.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Poema do menino Jesus


O ano de 2016 não foi nada bom.. está indo tarde... E tantas foram as dores que não restou muito de belezas, nem nas palavras... Por isso, nesse natal busco a ajuda do grande poeta Alberto Caeiro e ofereço como presente parte desse poema lindo sobre o menino Jesus. Afinal, o natal é o dia dele, o gurizinho, nascido em terras palestinas, que nos ensina que amar é a melhor coisa que podemos fazer... Felizes dias e festas... 

Eu me recolherei, jogando cinco-marias com o deus-menino.


...A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.



O Rio Grande, os trabalhadores e o capital

 Foto: Claudio Fachel

O que aconteceu ontem no Rio Grande do Sul é uma prévia do que virá em todos os estados da Federação. Deputados votando leis que retiram direitos, trabalhadores agredidos pelas polícias militares, governadores impassíveis e insensíveis às dores das gentes. O argumento para a barbárie contra os trabalhadores é o de que o estado está endividado e há que cortar na carne para equilibrar as contas. Só que esse cortar na carne, não se refere a qualquer carne. É a carne de quem produz a riqueza: o trabalhador. A carne de quem se apropria do lucro gerado por esse trabalho não sofrerá sequer um risquinho. Não bastasse isso, as pessoas que sofrem os ataques sequer sabem como a dívida foi contraída, em que bases e para onde foi o dinheiro.

Isso não é nenhuma novidade para quem estuda o modo de ser do capitalismo. Nesse sistema, que Mészáros considera “incontrolável”, o Estado existe justamente para proteger os meios de produção (que são de propriedade dos capitalistas) e a propriedade privada. Tudo é feito para garantir a expansão do capital e a maior extração do trabalho excedente. Logo, quando há uma crise mais profunda, como agora, cabe ao estado proteger as condições gerais da extração da mais valia do trabalho excedente. O que isso significa? Que novas normas e leis são criadas para garantir que a taxa de lucro dos capitalistas não caia. Logo, a outra face dessa verdade é o chicote no lombo dos trabalhadores. Assim, cortam-se direitos e diminui-se a intervenção do estado na vida das gentes, com cortes nos setores públicos.

O que acontece hoje no Rio Grande do Sul é a expressão do que já começou a acontecer em nível nacional com a aprovação da PEC 55. Nesse sistema, que Mészáros chama de “sistema metabólico do capital”, o tripé Capital x Trabalho x Estado é como uma entidade única de três cabeças, sendo que a cabeça Trabalho é a que vive sob a subordinação. E ela está sob o tacão da força porque, sem ela, as outras duas cabeças deixariam de existir. Ainda assim, mesmo dependendo da força dos trabalhadores para se fazer real, o capital não faz qualquer concessão. Diante e qualquer possibilidade de perder lucro, o sistema se reorganiza sem levar em conta, no mais mínimo, os interesses das pessoas. Todas as decisões são tomadas para manter rodando a roda viva da produção do lucro. É o “sistema” que precisa se manter. Danem-se os trabalhadores. Existem tantos no mundo que o capital pode permitir que muitos deles venham a perecer diante das medidas de austeridade tomadas.

Assim que não há qualquer eficácia em apelar para os “bons sentimentos” dos governantes. Eles não estão subordinados a qualquer compaixão. Sua subordinação é a um sistema que se configura incontrolável, exigindo sempre mais. Uma espécie de deus sanguinário. Quanto mais sangue se lhe é sacrificado, mais ele quer. Mészáros diz que o capital tem um controle sem sujeitos. E o que quer dizer com isso? Que não há no quadro de mando do sistema alguém que possa olhar para o sofrimento dos trabalhadores e se compadecer. Não. O sistema exige mais e mais e os seus supostos controladores – na verdade controlados pelo sistema - só o que podem fazer é aplicar receitas que permitam a insaciável expansão do capital.

Por isso que o governador Ivo Sartori pode ser visto dando risadas no aeroporto enquanto sua polícia desce o cacete nas gentes em frente à Assembleia Legislativa. Aquele que comanda o estado sabe que sua função ali será a de garantir o controle de qualquer rebelião que venha a ameaçar o perfeito rotacionar do sistema. Por isso ele está em paz. Não é comandado pela moral. Na cabeça dele, a função para a qual foi eleito está sendo cumprida à risca. Não enxerga pessoas. Vê pequenos cânceres que com sua ação rebelde querem pôr fim ao sistema metabólico do capital. O mesmo acontece com aqueles que, enquanto os trabalhadores apanhavam em frente ao Congresso nacional, se coqueteavam com champanhe e salgadinhos. O quadro que se desenrolava lá fora era só um borrão, tapado pela fumaça das bombas. A única visão possível era a dos policias, bem armados, protegendo a “bastilha”. E só.

Diante dessa constatação não cabe aos trabalhadores clamar por piedade ou misericórdia. O único que lhes cabe é a luta. A luta renhida. Mas não pode ser uma luta pontual, para resolver a questão da previdência ou a da dívida, como se solucionado esses pequenos pontos, a vida pudesse seguir seu curso em direção ao paraíso. Isso não vai acontecer. Ainda que o sistema – em temos de crescimento – possa conceder um ou outro ganho aos trabalhadores, seus hábitos alimentares não mudam. Segue se alimentando da mais valia dos trabalhadores. Não pode viver sem isso. É como o vampiro que diante da moça assustada, dá um suspiro de pena, mas imediatamente finca-lhe os dentes. Não pode existir se sentir compaixão.

Cabe, portanto, desmontar esse “sistema metabólico do capital”. Avançar para uma forma de organizar a sociedade na qual as aspirações legítimas das pessoas por vida plena, digna e de riquezas repartidas conforme as necessidades, sejam levas em consideração em vez dos imperativos fetichistas da ordem. Enquanto existir o modo capitalista de produção, essas aspirações não terão lugar. Logo, é tempo de decidir. Não que as lutas pontuais não devam ser travadas. Isso não só é justo como necessário. Mas, elas precisam avançar para a destruição desse sistema que nos suga todo o sangue e a alegria de viver.

Ninguém entre nós que tenha começado a trabalhar aos quatro, cinco anos, cortando cana, carregando pedra, amassando massa quer trabalhar até os 100 anos. Esses desejos só sentem aqueles que não produzem riquezas, os que se refestelam em salas acarpetadas com ar-condicionado. Aos trabalhadores o que lhes cabe é a rebelião, completa e total, na construção de outra forma de ditadura, que não essa que vivemos, do capital sobre as gentes, mas a dos trabalhadores sobre a burguesia parasita. Para, enfim, chegarmos a tão sonhada estação na qual não haverá mais estado. Só assim desmontaremos o tripé que sustenta a riqueza do 1% da humanidade que hoje comanda a vida dos 99% restantes, sugando-lhe todo o sangue.

Longo caminho, é fato. Mas que precisamos começar a trilhar. Ou isso, ou o eterno retorno da morte.  

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Comunicação: uma batalha



Os meios de comunicação alternativa, comunitária e popular de Florianópolis estão há algum tempo se reunindo para discutir a possibilidade de tornar menos assimétrica a distribuição de recursos feita pela prefeitura municipal. Todo o ano, a administração municipal determina recursos no seu orçamento, que são distribuídos aos meios comerciais. No geral, o bolo é repartido com o grupo que é oligopólico: a RBS, e a Rede Record. Para a comunicação alternativa, nada. Segundo o Portal da Transparência, nos últimos quatro anos foram 40 milhões de reais. Com isso, o que se vê na cidade é, cada vez mais, aumentar o feudo comunicacional e o pensamento único. Não é sem razão que nas últimas décadas a classe dominante tenha avançado com voracidade sobre o território, descaracterizando a cidade e vencendo a batalha da comunicação, fazendo crer que essa é a cidade “necessária”.

Por outro lado existem na cidade vários veículos de informação que, sistematicamente, fazem a outra comunicação, mostram a cidade real, explicitam os problemas e as contradições. São eles os que definitivamente realizam o chamado “jornalismo”, que é a análise do dia. Já os meios comerciais nada mais são do que mera propaganda do sistema capitalista de produção, braço armado da classe que tem o mando na cidade, o 1% que determina os destinos de toda a gente florianopolitana.

Veículos como a revista Pobres e Nojentas, o portal Desacato, a Radio Campeche estão aí há mais de dez anos garantindo espaço para as vozes dissonantes. A eles se somam agora outros veículos importantes como o Maruim, as Catarinas, o Farol. Todos com um único objetivo que é o de estabelecer um lugar para o pensamento crítico, para o jornalismo, para análise e compreensão da realidade. Assim que é justo que agora eles reivindiquem uma parte desse recurso que, como já foi dito, fica concentrado em duas redes de TV. Se há um milhão de reais para gastar durante o ano com as campanhas de interesse público que a prefeitura faz, que todos os meios sejam envolvidos. Afinal, ainda que não tenham o alcance massivo da televisão, hoje, com as novas tecnologias, podem chegar com eficácia a determinados grupos na cidade.

Foi a partir dessa discussão que esses veículos conseguiram realizar a Primeira Audiência Pública sobre Comunicação, realizada esse ano a partir da parceria com o vereador Lino Peres (PT) . Assim, no dia 17 de novembro, todas essas experiências comunicativas se reuniram na Câmara de Vereadores e conseguiram garantir, a partir do compromisso do vereador Guilherme Botelho (PSDB), que preside a Comissão de Educação, Culta e Desporto, a criação de um Grupo de Trabalho que estudaria e proporia um projeto de lei sobre o tema.

O grupo de trabalho foi oficialmente formalizado na primeira semana de dezembro e nessa quarta-feira (14/12) entregou um documento no qual explicita os pontos fundamentais que regerão o projeto, comprometendo-se a entregar um documento mais elaborado no início do ano que vem, já na próxima legislatura. Isso porque todo o processo deverá ser discutido primeiramente com os representantes dos demais veículos. Fazem parte do grupo de trabalho as jornalistas Rosângela Bion de Assis (Desacato), Sílvia Agostini (Desacato) e Elaine Tavares (Rádio Campeche e Pobres e Nojentas).

Depois da reunião realizada nessa quarta a comissão deverá estudar as propostas semelhantes que já existem em outros municípios e, a partir daí, respeitando a realidade local, construir um projeto de lei que regulamente a distribuição dessas verbas de comunicação. O trabalho tem o apoio dos vereadores que seguirão na nova legislatura, Lino Peres (PT), Afrânio Bopré (Psol), Lela (PDT). Depois de finalizado o texto do projeto ele passará por novas discussões com os representantes de todos os meios envolvidos no processo. E só então, depois de debatido e apreciado, será encaminhado à Comissão da Câmara.

Há um longo caminho para ser cumprido. Mas, os primeiros passos já foram dados.

Veja entrevista com o presidente da Comissão Guilherme Botelho.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Hoje caiu um menino


Agora mesmo caiu um menino. Crivado de balas. Chutado, espancado, torturado. Caiu um menino, negro, pobre, “favelado”. Quando esse menino é filho de alguém famoso, como o da cantora Tati Quebra-Barraco, tem até direito a alguma divulgação. Mas, não se enganem. Ele ainda é culpabilizado por ser quem é. Se perigar, até a mãe é julgada. 

E assim segue a vida. Todo dia, a cada hora, cai um menino. Assassinado pelo estado, pelas gangues, por um desafeto. Morrer assim é cotidiano. E nos programas policiais essas mortes viram espetáculos grotescos, que somente servem para criar a pedagogia do medo. Os meninos e meninas são números, estatísticas sobre a violência, deles, é claro. E nesses quadros, são as vítimas que aparecem como culpadas. “Alguma coisa tinha feito”. Não importa se, depois, no jornal do dia seguinte, aparece a história do caído: era trabalhador, vinha da escola, nunca esteve metido com nenhuma droga. Já passou. A mensagem principal já foi dada: era um negro, era uma negra, bandidos, bandidos. 

E, se por acaso, alguém resolve questionar essa barbárie, esse massacre descarado que acontece dia pós dia, então aparecem os “cidadãos de bem”: leva pra casa, vadia dos direitos humanos, tomara que matem um parente teu, tomarem que te assaltem. 

Ninguém está preocupada em destapar o véu da aparência. Por que existem as favelas? Por que os negros são maioria ali? Por que a miséria é regra nos morros e na periferia? Por que os meninos e meninas entram para o tráfico? Não, essas perguntas não importam. Não carece de saber. O que o sistema capitalista de produção quer que as pessoas saibam é o que diz o seu braço armado comunicacional. O discurso do Marcelo Rezende, do Datena e dos seus imitadores regionais. “São monstros, assassinos, sem alma e sem recuperação”. 

Nada de história do Brasil, nada de debate sobre a escravidão e todo o seu legado de exclusão e miséria. Não, da escravidão o que se incensa é a abolição e a Princesa Isabel. Como se o dia seguinte a Lei Áurea tivesse sido de festa e alegria para os negros. Já a famosa Lei do Ventre Livre, assinada em 1871, foi uma aberração. A criança nascida de uma mulher escravizada era considerada livre. Coisa boa? Não! Se o “dono” da mãe não quisesse a criança, podia jogá-la na rua. Era livre. Não servia para o sistema. Vem daí a prática de viver na rua, meninos e meninas de rua, sem pai ou mãe. Livres! A hipocrisia de uma sociedade escravocrata.

Depois, com a abolição, os negros foram jogados na vida. Sem terra, sem casa, sem nenhuma política de acolhimento ou reparação. Virem-se! Era o que diziam os “generosos” senhores da classe dominante. Por mais de três séculos essa gente e seus antepassados traficaram mais de três milhões de seres humanos, trazidos para o trabalho escravo, que deu origem a essa nação. Quando o capitalismo já se fortalecia também nas Américas, o sistema de escravidão não fazia mais sentido. Era muito gasto garantir a vida dos escravizados. Melhor seria acabar com o sistema escravocrata para escravizar de outra forma, travestido de liberdade, sob o signo do salário. E assim veio a abolição. Nenhuma dádiva, nenhuma bondade. Só o faro dinheirista. Um trabalhador livre era mais barato que um escravizado. 

Livres, os negros tiveram de encontrar, sozinhos, uma forma de permanecer vivos. Saiam das fazendas sem nada além dos seus corpos nus. Alguns foram incorporados como trabalhadores, mas a maioria ficou ao deus dará. 

Essa é a chaga que ainda hoje segue aberta. A escravidão jamais foi reparada. Escondeu-se sob o manto da bondade da princesa. É o que se aprende na escola. E hoje, os “libertos” continuam a sofrer a dor da exclusão e da miséria. Por isso seguem sendo exterminados. Na cabeça da classe dominante há que matar essa gente que “mancha” a história da nação. E mata-se. 

Os negros e as negras, filhos desses milhões de seres sequestrados de seus lugares, seguem aí. E exigem seu lugar nessa nação. Não como escória, porque não o são. Foi de suas mãos que brotou a riqueza do Brasil colonial. Sem eles, o projeto português teria fracassado. Há que coloca-los no seu verdadeiro lugar na história do Brasil. Não apenas como os que foram escravizados, mas os que garantiram com seu trabalho – a única força que gera valor - a existência dessa nação mestiça. Por isso eles estão em luta, cada dia e todo dia. Porque precisam combater inclusive a própria história oficial que os subalterniza e os diminui, na medida em que não expressa a verdade.

E é nessa batalha que estão por aí, a cair, todos os dias, os meninos e meninas negras da periferia. Porque precisam enfrentar, além da miséria, os escravocratas desse tempo. Os filhos dos velhos “senhores” e os que são ensinados por eles a odiar os negros. A classe dominante de hoje descende da mesma velha classe que dominou no Brasil colonial, com alguns adendos de novos ricos. São os mesmos que patrocinam os meios de comunicação para que sigam contando mentiras, escondendo as verdades, e construindo preconceitos. 

O sistema capitalista de produção é o que determina o racismo estrutural. Morto o primeiro, estaremos dando passos gigantes para que a história seja recontada e para que o preconceito e a discriminação desapareçam. 

Mas, enquanto isso não acontece  - batalha dura e difícil – temos de seguir contando e combatendo. Nós, não-negros, mas sabedores da história. E os negros, que sabem e sentem. Por isso que cada menino caído é um punhal cravado no peito. Não importa se era um bandido, um marginal, um traficante. Porque, no fundo, esse, vencido pelas circunstâncias, era um menino que não teve a oportunidade de ser outra coisa. Não por culpa dele, mas de um sistema que oculta a história, nega a vida plena e engole as pessoas em nome do lucro.

Agora mesmo caiu um menino. E isso tem de acabar!  



segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Girafas em risco, humanos também,...


A exploração do planeta promovida pelo sistema capitalista de produção não tem freio. É como uma praga que tudo devasta. E a cada dia novas notícias sobre extinção desta ou aquela espécie mostra o quanto o planeta está em desequilíbrio.

Na semana passada membros da comunidade científica alertaram que é a vez de as girafas - esses lindos seres gigantes  - entrarem em risco de extinção. Segundo notícia divulgada no sítio Democracy Now, as girafas já diminuíram quase 40% nos últimos 30 anos. Quem denuncia é a União Internacional para a Conservação da Natureza, a qual insiste que a girafas enfrentam uma extinção silenciosa.

A mesma instituição confirma que a diminuição do número de girafas é parte de uma extinção massiva global em curso que poderá fazer desaparecer até dois terços da fauna selvagem do planeta antes mesmo que chegue o ano de 2020.

O ser humano (ou uma pequena parte da raça), na sua insaciável fome de dinheiro levará o mundo ao colapso. Sem habitats capazes de garantir comida e vida plena, os animais vão sumindo. Infelizmente, o homem, ao que parece, será o último a desaparecer. Antes, colapsará o planeta.

É justamente por isso que o movimento indígena que hoje se levanta em toda a América Latina, mas também em outras partes do mundo, é talvez o único espaço de compreensão sobre o que se passa com o planeta. Os indígenas reivindicam o equilíbrio na relação humano/natureza e nos dias atuais são os que mais batalham contra o processo desenfreado de destruição.

Não é sem razão que são as comunidades indígenas e tradicionais as que travam as lutas mais duras com o agronegócio e a mineração, os dois mais lesivos modos de uso da terra na atualidade.

Por isso que a luta na defesa dos animais tem de passar, necessariamente, pela compreensão de que é o sistema capitalista de produção o responsável por toda essa destruição. Sem um ataque frontal a ele, de nada valerão os gritos de "salvem as girafas". Elas só poderão se salvar se todos lutarmos juntos contra essa forma de produzir mercadorias que põe em risco toda a vida.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Trabalhador da UFSC sofre perseguição política

Entrevista com Daniel Dambrowski, que está ameaçado de exoneração por conta de duas avaliações negativas. Um feita de maneira irregular, por apenas uma pessoa, e outra realizada quando ele estava em licença médica, na qual o consideraram faltante. os trabalhadores da UFSC estão mobilizados para reverter a situação. Também fala aqui o TAE Luciano Agnes, que trabalhou com Daniel no grupo Reorganiza, que fez o diagnóstico da universidade para a implantação das 6 horas.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Previdência é fichinha, o inimigo é o capitalismo



O sistema capitalista de produção, diz Mészàros, é uma totalidade incontrolável. Sua função é buscar lucro a todo custo e, por isso, nem mesmo os capitalistas conseguem colocar freio a essa sede desenfreada. Assim que, como no clássico filme de terror do grande Bóris Karloff, ele funciona como uma bolha assassina, se expandindo sempre mais e engolindo tudo no caminho por onde passa, insaciável. Sua fonte de riqueza é o trabalho dos trabalhadores. Daí é extraída a mais-valia, que é o valor a mais, criado pelo trabalhador, e não pago pelo patrão. Marx já desvendou esse mistério e mostra, com dados concretos, como não existe outra forma de o capitalista garantir sua riqueza se não for explorando o trabalhador. 

No geral a exploração se dá assim: a pessoa é contratada e recebe um salário por oito horas. Esse salário serve apenas para garantir que o trabalhador não morra. Garante a comida, a roupa, algum serviço de saúde e ponto. Mas, a riqueza que a pessoa produz nessas oito horas de trabalho é bem maior do que o salário que ela recebe. O que sobra dessa subtração é o lucro do patrão. A mais-valia.

Com o passar do tempo, o sistema capitalista foi encontrando formas de extrair ainda mais valor da pessoa. A invenção das máquinas tem ajudado bastante os ricos a enriquecerem mais. Pois, com a máquina, a pessoa trabalha as mesmas oito horas, mas produz infinitamente mais. O salário segue achatado. Mais valor para os patrões. Muito mais. 

Agora, não satisfeitos com a possibilidade de extrair mais e mais valor da pessoa que trabalha, o sistema busca esticar e esticar a vida dessa “peça” inestimável. Como a medicina e a farmacêutica tem conseguido aumentar a expectativa de vida, as pessoas tendem a viver mais. Então, qual o passo mais lógico para o sistema capitalista? Não permitir que essa peça de produzir riqueza fique gozando a vida, em uma aposentadoria que pode se estender por 30 e até 40 anos. 

O roubo do corpo

É exclusivamente por isso que aí está a mudança na Previdência, anunciada pelo governo Temer. Não tem nada que ver com rombo ou déficit. Quem tem acesso aos números sabe que não há problemas com as contas. A questão única que orienta essa decisão é a ganância dos capitalistas. Por isso que essas mudanças não acontecem só no Brasil, elas estão por todo o mundo, inclusive nos países centrais que, até bem pouco tempo, gozavam do famoso “bem estar social”. Não gozam mais, vejam as lutas que acontecem por lá. 

É da natureza do capitalismo se expandir. Ele precisa fazer o dinheiro gerar dinheiro, sem parar. Foi assim que a produção saiu dos países centrais e ocupou os países dependentes e subdesenvolvidos. Os capitalistas ocuparam a América Latina, o continente africano, a Ásia, sempre em busca de mão-de-obra barata, as quais pudessem sugar até a última gota de sangue. Por isso que nesses lugares periféricos o que existe é a superexploração dos trabalhadores, ou seja, jornada maior que oito horas, e maior produção no espaço de tempo da jornada. Com isso o lucro aumenta de maneira abissal.
Agora, todos os espaços da terra já foram ocupados com essa sanha destruidora da produção de mercadorias que as pessoas nem precisam. Também já criaram as técnicas de obsolescência programada para que essas mercadorias tenham que ser trocadas a cada tanto. 

Só que os capitalistas sabem que é só o trabalhador que cria o mais valor. Esse lucro que garante a riqueza de 1% das pessoas no mundo, só pode existir se for roubado de seres humanos que trabalham. Não há outra forma de produzir riqueza. Por isso a necessidade agora de avançar ainda mais sobre o corpo. 

Se antes a pessoa trabalhava até os 50 anos, precisa ir mais adiante. A vida dura mais, então há que explorar por mais tempo a pessoa. O que fazem então os donos do capital? Tiram os direitos. Nada de aposentadoria para que uma grande massa de gente fique por aí, sem gerar valor. E ainda mais se são empobrecidos. “Ficam por aí incomodando”, é o que devem imaginar. Então, acaba com a previdência. 

Mas, como fazer os trabalhadores acreditarem que eles estão mesmo atrapalhando o desenvolvimento do país por estarem ficando velhos? Simples. Cria uma campanha sistemática através dos velhos parceiros do capital – os meios de comunicação. Envolve jornalistas, formadores de opinião, apresentadores de programas de entretenimento, ídolos nacionais, todo mundo falando a mesma coisa. “A previdência tá quebrada, a previdência tá quebrada”. “A culpa é dos velhos, a culpa é dos velhos”. Cria-se um consenso e, num átimo, até os velhos começam a achar que são mesmo um atrapalho e que o melhor mesmo é, pelo menos seguir trabalhando e contribuindo para o desenvolvimento do país. Até que venha a morte. 

Ora, isso é uma mentira. Não acreditem! Rebelem-se!

No mundo, 99% da população é formada por esses criadores de valor, os trabalhadores. Somos a maioria. A riqueza que existe, toda ela, é produzida por esses 99%. Os que usufruem dela são os ladrões. Essa é a verdade.

A bomba que hoje é chamada de “reforma da previdência” não está a reformar nada. Está a destruir a vida das pessoas, com mais voracidade do que já vem fazendo desde que o sistema capitalista existe. Contribuir por 49 anos para garantir um salário igual ao que a pessoa tenha quando se aposentar, isso é uma afronta à vida. Jogar para 65 anos a idade mínima para parar de trabalhar é um crime. Mas, em verdade, esse não é problema mesmo. É só a aparência da coisa. A essência mesmo é o modo de produção, o capitalismo. Esse é o monstro que precisa ser detido. 

A boa notícia é que isso é possível. Se são os trabalhadores os que geram a riqueza e se eles são 99% da população, então estamos com a faca e o queijo na mão. O que precisa ser feito, então? Fazer com que o fruto do trabalho seja da maioria e não do 1%, vagabundo.  E como fazer isso? Conhecendo a realidade na sua essência e organizando-se coletivamente. Os caminhos surgirão. 

É claro que enquanto não acontece a derrocada do sistema temos de lutar contra os sintomas. Por isso há que barrar essa mudança na previdência. Mas, como uma luta tática. 

Não existe rombo. A pesquisadora Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu uma tese desmontando essa farsa. O que acontece é que o governo de plantão faz uma opção política de tirar recursos da rubrica da previdência para pagar outras contas, geralmente os juros bancários. Os bancos, sempre os bancos. Lembrem que naquela turma do 1% uma boa parte é de banqueiros. Voltamos ao começo, tudo se trata de melhorar o sistema de roubo de riquezas do trabalhador. 

Imaginem se fossem os próprios trabalhadores que gerissem os recursos das contribuições que fazem ao longo da vida, mais os outros impostos que foram criados para financiar aposentadoria das gentes? Imaginem que esses recursos não fossem desviados para pagar empréstimos que nunca aprovaram? Imaginem que esses recursos não fossem entregues para salvar empresas de amigos ricos? Acreditam em sã consciência que não haveria proteção e cuidado aos velhos, que já tivessem contribuído tanto? 

Hoje são 32 milhões de trabalhadores que recebem aposentadoria, a quase absoluta maioria, salários de fome. E são esses os que impedem o crescimento do país? Ora, vamos pensar. Não vou aqui dar números, porque eles já estão por aí sendo apresentados. Dou apenas um nome: o dessa professora, a Denise Gentil. Entra aí na internet e procura ver. Ela mostra claramente que não há rombo. Esse vídeo aponta os dados. (https://www.youtube.com/watch?v=Z8TJyflXEqg) 

O que está por trás da tal reforma da previdência é justamente mais uma forma de extração de riqueza dos trabalhadores feita pelos capitalistas. Não pense em crise, trabalhe. Esse é o mote. Trabalhe até morrer e não cometa besteiras como atuar em sindicatos ou construir revolução. 

E então? Que vai ser? 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Sobre passeatas e construção de realidades



Não há problema nenhum de as pessoas saírem às ruas para manifestar sua alegria ou descontentamento. É um direito sempre defendido por todos os que, sistematicamente, participam de protestos e lutas. Num país onde as instituições estão fechadas à participação popular, o único espaço onde a voz pode se erguer são as ruas.  E ainda que muitos dos que marcharam nesse domingo tenham uma posição clara e definida pela volta de um regime autoritário aos moldes da ditadura militar – o que é grotesco - não dá para deixar de ver que entre os manifestantes também estão as pessoas que verdadeiramente querem ver estancar a corrupção endêmica no país. Uma corrupção que não está unicamente nos partidos ou nos políticos. Ela existe em todas as instâncias do nosso tecido social. 

A pauta do combate à corrupção é uma pauta que toca a todos e é justamente por isso que a direita tradicional aproveita o mote para envolver aqueles que a mídia chama de “cidadãos de bem”. Porque, em última instância, não há criatura na terra que, sendo de bem, não seja contra a corrupção. Daí o apelo que essa pauta tem, conseguindo levar para a rua pessoas de tão variadas ideias. Há que pensar sobre isso e sobre o uso das ruas para as lutas também da direita organizada, que hoje usa movimentos como o Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua, para esconder as siglas partidárias, tão rechaçadas pela maioria da população. Um pouco de observação atenta e pode-se ver a ligação desses movimentos com partidos como o DEM e o PSDB.

Um pouco de história

Nos últimos anos, ainda na ditadura, as primeiras caminhadas pelas ruas foram no período da luta pela anistia, lá pelo final de 1978. O governo militar estava nos estertores e as pessoas já se arriscavam a realizar passeatas, depois de um longo período de repressão brutal. Por todo o país aconteciam marchas pedindo a volta dos exilados, gente que tinham saído do Brasil justamente por conta da perseguição do regime de exceção. Era um clamor nacional, uma pauta humanitária que unia a esquerda e pessoas sem muita ligação com a política institucional.  Mas, as caminhadas, sempre pacíficas, recebiam o mesmo tratamento de hoje: muita polícia, muito porrete, prisões. E eram um risco concreto para a vida de quem participava.

Naqueles dias a mídia comercial, completamente atada aos interesses da ditadura, não divulgava as caminhadas que cresciam, e cresciam. Era como se nada estivesse acontecendo. Quando não havia como negar, quando ficava grande demais, os manifestantes eram atacados: os “comunistas”, os “subversivos”, os “desocupados”. Palavras um pouco diferentes das de hoje, mas com o mesmo sentido. Os que marchavam eram sempre “do mal”, sem qualquer contextualização. A realidade era invertida. A mentira era a lei. 

Só que aquela era uma vaga que não tinha parada, e dia a dia crescia, com mais e mais gente saindo para a rua, até que em agosto de 1979 foi assinada a Lei da Anistia. Veio a hora, então, de as gentes saírem de novo para a rua, celebrando a volta dos companheiros e companheiras de sonho. A partir dali as ruas seguiram sendo ocupadas na luta pelas eleições diretas, outra pauta que unificava toda a nação brasileira. Manifestações gigantescas, também invisibilizadas pela TV e pelos jornalões.  Ainda assim, todo aquele povo sem medo seguiu se manifestando, fazendo acontecer o fim do regime militar. E quando ele acabou, misteriosamente, na mídia, as pessoas que haviam lutado e arriscado suas vidas passaram a ser aquelas que “construíram a democracia”. Com o passar do tempo, as manifestações tão demonizadas entraram para a história como um momento de grande importância para a nação. Porque a realidade está fora dos meios de comunicação e, ao se impor, exige que o discurso dos meios mude. 

Daí a necessidade de uma reflexão sobre a cobertura que a mídia deu às manifestações desse domingo, mais uma vez querendo inventar uma realidade que não existe. Sempre apostando na mentira e no encobrimento. Primeiro elemento a ser analisado: a mídia cobriu os atos desde as primeiras horas, como se fosse um grande acontecimento nacional, incorporando o mote de combate à corrupção, sem matizar os diferentes grupos que ali se manifestavam. Boletins de hora em hora no rádio, na TV e na internet, uma espetacularização sem conteúdo. Um bom motivo para desconfiar. Por que, afinal, essa mesma mídia, não deu igual cobertura para as manifestações contra a PEC 55, que mexerá com a vida de milhões de pessoas ao congelar gastos no social? Da mesma forma como considera bom para as finanças o congelamento dos investimentos, os meios de comunicação não mostram o outro lado. Se as finanças ficam equilibradas, como ficam as gentes?  Isso não se fala. 

Segundo elemento: como podem os meios de comunicação de massa saudar como “importantes” e “necessárias” as atividades dos grupos que pedem intervenção militar? Que mundo é esse em que algumas pessoas vão às ruas pedir o retorno da censura, da morte, da tortura e das desaparições? Como podem pedir isso, se isso é considerado um crime hediondo. Por que então, os meios não explicam a diversidade de grupos que se manifestam na rua? E que entre os que ali marcham realmente preocupados com a corrupção, há também os que atuam pelo retorno do terror? Claro, se a mídia mostrasse quem organiza e o que defendem, muitos cidadãos não participariam. 

Terceiro elemento: as manifestações pedindo o fim da corrupção e a volta do regime militar acontecem sem incidentes com a polícia. Nenhuma repressão. Pelo contrário, são protegidas pelos policiais e as pessoas tiram “selfies” com os fardados, tidos como heróis. Isso acontece porque as manifestações não se insurgem contra o poder. Elas, de fato, não incomodam quem está no comando da vida no país. O fim da corrupção é uma pauta vaga, porque não define o como. E os que defendem o totalitarismo do poder Judiciário, nesse momento, estão ajudando os velhos políticos corruptos a colocar por terra o tal do estado democrático e de direito burguês. Afinal, como dizia Jesus: “a lei existe para o homem e não o homem para a lei”. 

Já os trabalhadores que lutam contra a PEC da morte, que congela os gastos com saúde, educação, segurança e moradia por 20 anos, esses são chamados de “bandidos”, “bandidos”, como se pode ver no vídeo que mostra um policial bastante alterado, partindo para cima dos manifestantes, em Brasília, com bombas e balas de borracha. A polícia é ensinada a defender o estado, não a “res publica”. 

Assim, não mostrando os matizes e os objetivos que levam as pessoas às ruas, a mídia vai cumprindo seu papel de fiel defensora da classe dominante. Mentindo e inventando realidades. Por isso a luta contra a corrupção “é boa”, enquanto a luta contra o congelamento dos investimentos públicos “é má”. Na verdade, cada uma dessas lutas tem de ser analisada na sua totalidade, com todos os matizes que carregam.

Possivelmente, a despeito da mídia, a história desenhará lá na frente o aspecto totalizante dessas manifestações rua. E, de novo, aqueles que hoje batalham contra a barbárie imposta pelo capital serão reconhecidos como os “importantes sujeitos” que lutaram contra o terror do congelamento dos investimentos sociais. Manifestando-se contra a violência, contra a destruição de direitos, pela vida. Assim como foi durante o período da ditadura. Já os que saíram às ruas domingo serão mostrados como os que, ainda que bem intencionados, acabaram engrossando a fileira daqueles que pediam a intervenção militar – coisa que carrega ainda simbolicamente o sentido da morte, medo, violência e perseguição. Basta uma olhada nos cartazes que as pessoas  carregam, os dizeres que defendem. Tudo está às claras. 

É sempre bom lembrar que as ruas seguem sendo o espaço das lutas do povo. Mas, é preciso também perceber que algumas dessas lutas acontecem sem riscos, sem truculência da polícia. Há que se perguntar por quê?  

Está claro que o que se vive é a luta de classes e é natural que os policiais estejam do lado de quem defende o uso da força contra os trabalhadores que enfrentam as políticas recessivas do estado. O estado que é dominando pelo capital. Porque os policiais, ainda que sejam trabalhadores, no geral, defendem a classe dominante. O antagonismo está explícito. Será preciso ainda muito trabalho para que esses trabalhadores - que hoje cumprem a triste missão de reprimir, bem como os que gritam pela volta dos militares - compreendam o verdadeiro sentido da segurança pública. Lá na frente, quando vier o doloroso resultado das medidas tomadas pelo Congresso Nacional contra a maioria da população, talvez alguém possa despertar. 

O debate em questão pretende colocar em pauta justamente a diferença que existe entre a ideia de sociedade defendida pelos trabalhadores em luta, e a que defende a volta dos militares. É preciso ter tudo muito claro e depois, cada um e cada uma, observando os objetivos de cada concepção de mundo, que decida seu caminho. Mesmo aqueles que hoje marcham, seguindo com a consciência ingênua, o que acreditam ser apenas uma luta contra a corrupção. Não tenho dúvidas de que se tiverem as informações e compreenderem o que realmente acontece, passarão a engrossar as fileiras dos que atuam contra as medidas arrochantes do governo. Medidas que buscam manter em equilíbrio, não as contas, mas os bancos e os ricos.

Para os trabalhadores em luta, na história recente, desde as caminhadas pela anistia, o horizonte é a vida boa para todos os que produzem riquezas, numa forma de governo na qual o poder seja exercido pela esmagadora maioria. Ao contrário dos que defendem a mão-dura dos militares, do poder totalitário, os outros defendem a democracia radical, aquela na qual as pessoas participam e decidem juntas. É claro que é bem mais cômodo ter alguém definindo as coisas pela gente. Democracia é coisa difícil, precisa comprometimento, participação, paciência. Ainda assim, há os que preferem o caminho árduo, espinhoso e longo, que é também cheio de belezas e de encontros amorosos. O que move esses princípios é o amor, unicamente o amor. O desejo de que todas as pessoas no mundo tenham o direito de comer, dormir, morar, sentir-se seguro, dançar e ser feliz.

É fato que esse sentimento oceânico que move os lutadores sociais encontra a dureza da luta de classes. E há que enfrentar os que impedem esse sonho de amor. Isso será feito. Não há saída. Os trabalhadores seguirão tomando as ruas e lutando pela construção desse mundo sem classes, no qual o trabalho não será mais do capital, mas das gentes. Mas, nesse meio tempo, é preciso também conversar com as gentes que estão fora do circuito dos partidos e movimentos organizados. Essa é também uma longa batalha de comunicação. 

sábado, 3 de dezembro de 2016

Escritos em Movimento

Do lindo trabalho da jornalista Miriam Santini de Abreu, que faz um memorial das ocupações urbanas em Florianópolis, entrevistando parte do pessoal que fez parte desse processo que começou nos anos 80. Tive a honra e a felicidade de participar desse momento tão importante da vida da cidade. 

'No final dos anos 1980 e início dos 90, a jornalista Elaine Tavares fez a cobertura jornalística das primeiras ocupações em Florianópolis e participou da equipe que produzia o “Jornal das Comunidades”, uma publicação da então Coordenação da Comissão de Associações de Moradores de Florianópolis distribuído em várias localidades. Na entrevista ela avalia aquele período e fala do papel do jornalismo comprometido com as lutas sociais. Entrevista feita no dia 16 de maio de 2016.'

 

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Da Serra ao Seridó - um documentário de Fernando Leão








Sempre guardo na memória aquelas manhãs, no curso de Jornalismo, quando adentrava pela sala de aula uma criatura auroreal, dessas que parece estar sempre nascendo: Gilka Girardello. Era professora de redação. Por ser também contadora de histórias, ela sempre achava um tempo, entre o ensino das técnicas, para uma narrativa. E a gente ouvia, embevecido. Com ela aprendi que o jornalismo é isso mesmo: uma contação de histórias. E que aquele que se dispõe a contar tem de ter olhos de lâmpada, capaz de captar toda a beleza que se expressa no humano. O cuidado com os detalhes, com o singular. Ser sempre humano, demasiado humano. Cuidar do personagem narrado como se fosse um cristal.

Hoje terminei de ver o documentário do jornalista Fernando Leão, “Da Serra ao Seridó – vivências em um Brasil de Contrastes”, e enquanto a viola da trilha final ia serpenteando, deixei que as lágrimas caíssem mansinho. De alegria e de assombramento. Alegria, por ver, no documentário, essa vida imanente. Histórias de pessoas singulares. Humanos que são mundos inteiros. E assombramento por saber que ainda há quem seja capaz de pegar a vida do outro com tamanha delicadeza.

Fernando expõe duas realidades tão diversas. O seco e árido Seridó, no Rio Grande do Norte, a exuberante  e verde serra catarinense. Em cada um desses espaços geográficos - tão distintos - ele encontra pessoas dispostas a abrir suas casas e vidas. A prosaica existência, carregada das belezas cotidianas. 

Impossível não se emocionar diante da fala do seu Deca, contando que trabalha desde os quatro anos. Impossível não gargalhar com a senhorinha de Florânea, ao descobrir que vive 63 anos, com o marido, “numa paz de deus”.

As vidas que passam pelo documentário de Fernando são essas histórias com as quais nos deparamos todos os dias, muitas vezes sem notar, a vida das pessoas comuns. Mas, o jornalista de verdade, esse não pode passar impune. Ele tem de ser capaz de ver o invisível. E é o que Fernando faz. Eterniza no vídeo esses universos de belezas.

O vídeo é espaço fértil de memórias, fazeres, encantos, arte. Junta pessoas de lugares tão distantes que fazem as mesmas coisas: uma benzedura, um bordado, uma pintura, a lida do campo, a superação de deficiências. Cada um de um jeito único, como único é o humano.

E o que fica, ao final, é certeza de que a melhor coisa que podemos fazer, como jornalistas, é mesmo contar histórias. Porque elas revelam os universos que vivem em nós.

Da Serra ao Seridó é esse registro seguro, da vida das gentes, dessa imensa mátria: Brasil. Parabéns Fernando e equipe! Tá lindo!


domingo, 27 de novembro de 2016

Dos totens do nosso tempo



Um totem é um uma construção sagrada, feita pelas comunidades, para designar sua relação com o transcendente. Pode ser a figura de um animal, pode ser uma figura mítica, pode representar alguém. O fundamental de sua existência é justamente estar ali, para lembrar que existe algo profundo no humano, que se conecta com a beleza suprema do sagrado. Não é religião, é abertura reverente para o não-sabido.  São comuns nas comunidades originárias, que nunca caíram na armadilha do monoteísmo. Ou seja, gente que não é a escolhida de um deus, mas que é capaz de compartilhar o mundo com várias entidades consagradas.

No mundo moderno também vamos construindo nossos totens, sejam eles reais ou simbólicos. Troncos fincados no chão que existem para nos chamar, nos interpelar, nos carregar de volta para nosso lugar sagrado. Algumas pessoas reconhecem como totens, os xópins, por exemplo. São seus lugares de devoção. Outros elegem determinadas igrejas, onde descansam seus corpos na dura batalha da vida. Há os que constroem totens com dinheiro, acreditando que ali está a redenção para todas as dores. E há ainda aqueles que erguem totens a partir de pessoas e ideias.

Desde bem pequena escolhi o meu, construído ao longo da vida, com desenhos e rostos. Imagens de vida boa, gente sorrindo, Minha mãe, Che, Camilo, Farabundo Martí, Sandino, José Martí, Zumbi, João Cândido, Chiquinha Gonzaga, Fidel, Carlos Fonseca, Juana Azurduy, Bartolina Siza, Anita Garibaldi, Dandara. Pessoas que, de um jeito ou de outro deram sua vida por um mundo melhor.

Ontem, quando Fidel encantou, fui acarinhar seu rosto no desenho do meu totem, esse que fica à entrada de mim, sempre me lembrando de que a vida só tem sentido se for para todos viverem em abundância. Chorei. Não por ele, que teve vida tão plena e se foi como quis, sem nunca se dobrar. Chorei pelos que não entenderam até hoje o que foi e o que é a revolução cubana. A obra de um povo, não de um homem.  Realizei minhas rezas e cerimônias, imaginando o gigante chegando ao paraíso, encontrando com todos os que, com ele, realizaram essa obra de amor. Sim, eu creio no paraíso, esse lugar onde as almas descansam.

A revolução não é um jogo de contas de vidro. É a explosão violenta de um povo oprimido também por violência. É campo de morte, de dor, de decisões duras. Mas, é construção de caminhos que levam ao bem-viver. Crianças nas escolas, comida na mesa, saúde de qualidade, arte. Cometem-se erros. Mas, claro, as revoluções são feitas por homens e mulheres. Não por santos. O que vale é reconhecer, fazer  autocrítica e seguir.

As figuras que compõem meu totem são criaturas humanas, com seus claros e escuros. Não são heróis, são caminhos. Veredas abertas chamando para o grande meio-dia. Não os reverencio por santos, mas por sua dolorosa e pungente realidade. Não peço licença por isso. É o meu totem. É a minha entrada da alma.

Nesses tempos obscuros do novo século, diante da inexorável perda física de Fidel, começo a esculpir novas caras no meu tronco sagrado. Três deles ainda vivos. Mais na frente, com certeza, serão lembrados como os que mudaram o mundo. Snowden, Assenge e Bradley Manning. Cada um deles, a sua maneira, e com objetivos diferentes, colocaram à nu o império. Snowden e Assenge, exilados de suas pátrias, vivendo como fugitivos. Bradley encarcerado numa solitária, nu, quase enlouquecido, dentro do país que tanto ama, e pelo qual decidiu revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelos exércitos de ocupação. Ele pensava, na sua ingenuidade, que se o governo dos EUA soubesse o que acontecia  no Iraque, iria por um fim em tudo aquilo.  Não, deram fim foi nele.

Nenhum desses três é comunista sanguinário. Não. São pessoas que querem viver na verdade. Que também sonham com um mundo livre, de pessoas soberanas.

Tampouco eu sou sanguinária, ainda que comunista. Preencho-me de ternuras e amores, de sonhos de vida boa e sigo, acendendo meus incensos, dizendo minhas orações, reverenciando meu totem sagrado. É esse tronco esculpido de gentes, desejos, lágrimas e risos que pontifica à porta de mim. Ali estão todos os mortos que nunca morrem, os que guiam meus passos e enchem os meus cântaros da água mais pura: essa que verte do desejo mais doce da “eko porã”, a vida bonita, como dizem os Guarani.  

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Governo gaúcho ataca comunicação pública



O Rio Grande do Sul é o estado que tem hoje, proporcionalmente, a maior dívida pública do país. Ela supera em mais de duas vezes a receita. Passa dos 50 bilhões enquanto a arrecadação chega a pouco mais de 20 bilhões. A dívida com a União ultrapassa os 40 bilhões, 98% fruto de um refinanciamento de títulos mobiliários feito em 1998, no governo de Antônio Britto (PMDB). Outros passivos da dívida são déficits previdenciários, precatórios e empréstimos internacionais (perto de quatro bilhões). Outra pequena parte é composta de empréstimos internacionais.

Observando as reportagens de jornais gaúchos sobre o que o atual governador chama de “calamidade financeira” a impressão que dá é de que a dívida apareceu de paraquedas no colo de Ivo Sartori. O máximo que se faz é colocar a culpa nos governos passados (principalmente os do PT), como é normal suceder. Mas, indo mais fundo nas pesquisas surgem as informações do período da ditadura militar, durante o chamado “milagre econômico”, quando os governadores biônicos emitiam Letras do Tesouro, pagando juros escorchantes, para fazer andar as grandes obras estruturais típicas do regime. É quando a dívida vai adquirindo as cores estratosféricas.

Com as sucessivas crises inflacionárias dos anos 80 o estado já não conseguia resgatar as letras emitidas e os juros foram comendo o orçamento. Além disso, no final da ditadura novos títulos foram emitidos para poder garantir que as eleições fossem vencidas por pessoas amigas. E foi o que sucedeu. Com a grande crise do final dos anos 80 e os planos de ajuste federal a dívida mais uma vez foi às alturas. O Plano Real, que mudou a moeda, quadruplicou os valores devidos, fazendo com que a dívida passasse a índices absurdos. Foi aí que Antônio Britto, então governador, afinado com o governo federal, refinanciou tudo (com novas taxas de juros), ganhando um fôlego para algo que obviamente iria estourar no futuro.

E assim, sucessivamente, os governos que se seguiram foram administrando a dívida existente e contraindo outras, já que o estado precisava andar. “Até aí morreu neves”, como diz o velho ditado. Essa é a história de todas as dívidas, seja dos estados ou mesmo do país. O que não se consegue saber é em quê exatamente todo esse dinheiro foi gasto e se os contratos firmados à época tinham legitimidade. Se considerarmos que o maior montante da dívida foi contraído no período da ditadura, por si só já seria ilegítima, como bem aponta o historiador Alejandro Olmos, um dos auditores da dívida do Equador e especialista na dívida argentina. Um governo de exceção fazendo empréstimos sem que o povo soubesse as regras do negócio ou como tudo foi gasto torna o processo sem legitimidade. E se forem feitas as contas sobre o tanto de recursos que já foram pagos em juros ilegais – estratosféricos – certamente essa dívida já foi totalmente quitada. Mas, para isso, seria necessário fazer uma auditoria minuciosa. O Equador fez isso e descobriu que 70% dos valores eram ilegítimos e ilegais. É de fundamental importância para os gaúchos conhecer o conteúdo e regras dos contratos. Aí se escondem as armadilhas.

Quem paga a conta

Historicamente quem paga a conta dos excessos dos governos são sempre os mesmos: os trabalhadores. Quando as coisas apertam e os juros comem todo o orçamento surgem os velhos bordões; “estamos falidos”, “precisamos apertar os cintos” “é necessário um ajuste fiscal”, “tem que enxugar a máquina pública”. Logo em seguida vêm os cortes nos serviços públicos e em setores do estado que são minúsculos e que não representam quase nada no todo da dívida.
Agora, no Rio Grande do Sul, diante da quase impossibilidade de mexer no orçamento, pouco menos de 2% está destinado aos investimentos, o governador, que é do partido do atual presidente (PMDB), decidiu aplicar a velha receita de cortar nos serviços à população em vez de enfrentar de verdade a questão da dívida. Afinal, é bem mais fácil enfrentar os trabalhadores – que estão sob seu comendo – que enfrentar os bancos.  

No pronunciamento que fez essa semana (21) Ivo Sartori (PMDB) anunciou não apenas o estado de calamidade financeira do estado como também um pacote de medidas que, segundo ele, vai estancar a crise. No conteúdo do pacotaço está a extinção de 11 órgãos ligados ao executivo, a redução de secretarias, de 20 para 17 e a demissão de mais de mil trabalhadores entre comissionados e efetivos. Segundo ele, isso vai garantir uma economia de 146 milhões ao ano, o que, no computo geral de uma dívida de bilhões nada mais é do que uma migalha.  Por outro lado, para o setor privado isso é um grande presente, porque abre espaço para que possa se expandir onde antes era o estado quem dominava. Como adverte o economista Maicon Cláudio da Silva, do IELA, “quando o estado fecha estatais ou espaços públicos encolhe os espaços público e joga para o capital fazer a sua festa. Fechar a TV e a rádio publica significa dar mais poder ao setor privado”. 

É fato que o estado rio-grandense vem sistematicamente gastando muito mais do que arrecada, bem como mantém uma folha de pagamento que chega a consumir quase 60% da receita, mas também é de conhecimento público que alguns gastos – como os da publicidade e propaganda, por exemplo – são exagerados numa situação de crise. Informações nos jornais do estado dão conta de que para criar um consenso na população da necessidade de “cortar na carne”, o governo encheu os bolsos do oligopólio midiático (RBS), gastando 3,5 milhões, de março até agora. Ou seja, investiu dinheiro público na mídia comercial, para convencer as gentes de que é preciso acabar com as empresas públicas que dão “prejuízo”.

Não por acaso uma dessas empresas é a Fundação Piratini – que garante a comunicação pública no estado através da TV Educativa e da Rádio Cultura. Essa fundação é uma conquista histórica do povo gaúcho e desde o ano de 1974 garante uma comunicação de qualidade no campo da informação, da cultura e da arte.

O fechamento dessa fundação levantou em rebelião a classe artística, jornalistas e população em geral que entende a importância de uma comunicação pública, fora do contexto comercial, que não vê a informação, a arte e a cultura como uma mercadoria. Poucos estados do Brasil podem se orgulhar de ter um espaço de comunicação pública, controlado pela sociedade civil. Durante todos esses anos a fundação caminhou entre os seguidos governos, sempre garantindo espaço para o debate de todos os temas candentes do estado, para os artistas, o cinema, enfim, a vida que vive e se expressa no Rio Grande. A opção por fechar esse espaço de comunicação é uma jogada que fortalece cada vez mais o oligopólio midiático e torna toda a vida cultural do estado refém da lógica da mercadoria. 

Segundo levantamentos feitos pelo jornalista Marco Weissheimer, publicado no jornal Sul21, “a Secretaria Estadual de Comunicação gastou este ano, até o mês de novembro, R$ 6.237.444,26 em publicidade institucional. No mesmo período, a Assembleia Legislativa gastou R$ 5.723.906,18 em publicidade institucional. Enquanto isso, políticas como a qualificação de assentamentos receberam apenas R$ 372.801,60, em 2016. Já a qualificação dos sinais de cobertura da TVE e FM Cultura recebeu R$ 156.760,92 e a qualificação dos recursos humanos na administração recebeu apenas R$ 10.350,52”. Ele mostra também que só o jornal Zero Hora (da RBS) recebeu mais recursos que a TVE, a Rádio Cultura e o setor de recursos humanos da fundação juntos. Ou seja, isso evidencia uma opção deliberada pelas empresas privadas em detrimento da pública. E, quem perde com isso é a população que fica cada vez mais exposta a um pensamento único, produtor de mais-valia ideológica.

A decisão de Ivo Sartori não surpreende já que vivemos num tempo em que a comunicação é um dos commodities mais importantes no mundo. Com a informação domesticada os donos do capital conseguem inventar um futuro. Eles lançam “verdades” que, incorporadas como tal no presente imediato, tornarão o futuro tal qual eles querem que seja. Assim, é a partir da informação que o sistema capitalista de produção consegue criar mais um momento de expansão do capital. E, para isso, a comunicação precisa ser privada. Não pode estar controlada pela sociedade. Logo, aproveitar a dita “calamidade” para destruir justamente a comunicação pública, é um passo natural para qualquer um que esteja aliado aos interesses da classe dominante.

Importante ressaltar que o estado que hoje temos não é mais o velho estado liberal burguês, amparado num pacto social, com algumas garantias para os de baixo. Esse estado que surgiu com as repúblicas está morto e enterrado. O que temos na atualidade são empresas travestidas de estado, cujo objetivo é facilitar para a burguesia a gestão da expansão cada vez maior do capital. Não é sem razão que estamos vendo, sistematicamente, os presidentes dos países, os governadores de estados e prefeitos, serem nada mais do que “gestores”, gerentes, capitães do mato. Elegem-se inclusive com essa consigna. Vejam figuras como Trump, nos Estados Unidos, João Dória, em São Paulo ou Marcelo Crivela, no Rio de Janeiro. São incensados por sua capacidade de esgrimir os problemas sociais, resolvendo as questões sempre do ponto de vista fiscal, financeiro ou de gestão. Na verdade, esses governantes - logo, logo - perderão até o nome de presidentes, governadores e prefeitos e serão chamados de CEO ( a sigla em inglês para chefe executivo). Por exemplo, Michel Temer é o CEO da empresa Brasil, assim como Sartori é hoje o CEO da empresa Rio Grande do Sul. Meros gerentes do capital.

Não se enganem, portanto, com o discurso de que o estado está falido. A tática envolve, primeiro, criar um consenso via mídia privada, e depois aplicar o bom e velho chicote no lombo dos trabalhadores, afinal são eles, e só eles, os que podem produzir valor (a riqueza material). Com isso, o governo fica autorizado a aplicar medidas amargas como o desemprego e o sucateamento dos serviços públicos.  Tudo isso para seguir pagando uma dívida que – com certeza - já foi paga, com o sacrifício de todos os gaúchos e gaúchas. Mas, para o capital, as pessoas são mero detalhe. Não importa quantos tenham de morrer, quantos pais de família precisem ser destruídos, quanta dor e sofrimento sejam causados nos trabalhadores. O que importa mesmo é equilibrar as contas, permitindo que os juros da dívida sigam sendo pagos.

Há um dado no caso gaúcho que é a folha de pagamento dos trabalhadores. Segundo o governo há que demitir, pois a folha consome bem mais do que permite a lei de responsabilidade fiscal, chegando a quase 60% das receitas. Mas, se esses trabalhadores são aqueles que permitem que os serviços públicos sejam oferecidos à população com qualidade eles não são um gasto, são um investimento. Claro que isso na perspectiva de quem está se importando com as gentes. O que não é o caso. Os estados-empresas só tem uma preocupação: cuidar para que os bancos sigam comendo sua odiosa ração, constituída da força de trabalho dos trabalhadores. Para isso é preciso jogar mais gente no desemprego, para baratear a força de trabalho e mantem os trabalhadores sob a ameaça constante da fome e da miséria.

É por isso que a Fundação Piratini está entre as vítimas. Porque ela tem alcance no estado, ela é pública e ela pode ser uma “rugosidade” na pretendida manufatura da opinião pública. Como ela possibilita o espaço para as vozes dos movimentos, dos artistas, dos intelectuais, pode ser um grande entrave para o projeto de sistemática dominação do sistema capitalista de produção.

Nesse sentido, é fundamental a resistência do povo gaúcho contra o desmonte das empresas públicas. Elas são o pouco que resta da velha lógica da “res pública”, o pouco que ainda não foi sequestrado pelos bancos e pelo centro do poder. Assim, a batalha pela manutenção da TVE e da Rádio Cultura, não é uma batalha qualquer. É a trincheira estratégica que pode colocar barreira ao projeto dominante. Porto Alegre, onde fica a sede dessas empresas públicas, tem nas mãos o futuro do Rio Grande. Vencer a batalha da comunicação sobre a concepção de estado é praticamente começar a vencer a guerra contra o capital.

É tempo de os trabalhadores organizados pararem a avançada do estado/bancário/empresa. Se a reforma de Sartori passar, abre a porteira para a tropa toda. Assim que os gaúchos e gaúchas de todas as querências estão com essa tarefa histórica para cumprir.

Essa luta é grande, mas não é impossível. Estamos juntos!