Alzheimer/Velhice
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domingo, 1 de março de 2015
No ônibus
Na fila do busão começou o furdunço. Já não eram daquele dia as reclamações. Desde que a prefeita Angela Amin introduziu o transporte "desintegrado" que a vida das pessoas havia se transformado num inferno. A vida dos que moram nos bairros mais distantes de Florianópolis, é bom que se diga. Isso porque a dita integração colocou no meio do caminho um outro terminal, no qual todos descem para pegar um segundo ou um terceiro ônibus, dependendo de onde vêm. É um verdadeiro terror porque a integração mesmo não existe, e a pessoa pode esperar até 40 minutos por uma "integração", perdendo tempo demais nas baldeações. Trajetos que duravam 35 minutos no sistema antigo agora chegam a durar duas horas e meia, a considerar os engarrafamentos e as esperas nas trocas de terminal. É o inferno na terra.
Aquele era um desses momentos. As pessoas já estavam na fila a 35 minutos, o ônibus atrasado em quase dez minutos e nada de aparecer um fiscal. Em casos assim, a reclamação começa por um e vai num crescendo. De repente, a fila inteira está falando, trocando farpas e jogando maldições nos políticos, nos trabalhadores, na presidente, é uma catarse.
Na minha frente estava João Claudio, um gaúcho que vive na ilha desde os anos 80. Até já fala com certo sotaque manezês. É quase um local. "O povo é gado", dizia. "Não fazem nada quando a gurizada chama para os protestos no centro, depois ficam assim, nesse rame-rame quando o ônibus atrasa. Só sabem reclamar", repetia, indignado com o ônibus atrasado e com a balbúrdia da fila.
Contou que vendia sorvete na praia e vivia essa reclamação vazia todos os dias. "Eu trabalho de sol a sol, dô jeito na vida. Mas, sempre tem um que vem e diz: tá caro esse sorvete. Caro? O cara reclama por pagar um real mas não reclama contra os desvios de dinheiro da Petrobras, por exemplo. Eles falam de um sorveteiro, que rala pra ganhar o pão e não falam dos empresários que estão envolvidos com a moeda verde, nem dos vereadores que estão sendo julgados por receber propina. Que porra de cidadão é esse? Reclama só contra o pobre? "
João insistia que a reclamação tem de ser consequente e coletiva. "Essa gente aí que rouba a cidade, são os sem vergonha de carteira assinada. Gente escolada, gente que conhece como fazer a malandragem. É contra esses vagabundos que as pessoas tem de lutar. Não adianta ficar reclamando na fila. Vai lá na prefeitura, entra no protesto, ajuda a gurizada, que aí a coisa muda. Esses caras que tem carteira assinada na roubalheira não tão nem aí. Mas, se o povo se une e vai a luta, eles se mexem. Cambada de mandrião".
O papo de João Cláudio já estava causando um certo desconforto. Uma senhora franzia a cara, outra revirava os olhos. "Tem que cobrar do fiscal, sim", gritava uma guria. "É, cobra do fiscal. Esse aí mesmo deve ser um fodido, tá lá, ó, feito barata tonta, nem sabe o que fazer. Não tem ônibus. Tem é que ir lá na empresa e quebrar tudo", gesticulava João, cada vez mais enfezado.
Nesse ínterim chegou finalmente o carro, já com mais de 10 minutos de atraso. Imediatamente a falação terminou. Todo mundo foi entrando, na correria, no empurra-empurra, tentando encontrar um banco livre para ir sentado. A camaradagem formada pela espera e a reclamação se extinguiram. Cada um voltou ao seu mundo interior. João sentou um pouco mais à frente, mas não desistiu. "Tá vendo, tudo mandrião. Já tá tudo esquecido. O povo é gado mesmo. Me dá uma raiva", disse, olhando pra mim e balançando a cabeça em desconsolo. E fomos, a malta, quietos, olhando o infinito, enquanto o busão seguia seu curso.
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