Alzheimer/Velhice

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Vazamento de óleo tóxico em Florianópolis põe saúde da população em risco




O vazamento do óleo ascarel de uma estação desativada da Central Elétrica de Santa Catarina (Celesc), no bairro Tapera, em Florianópolis, está sendo considerado gravíssimo pela Federação das Entidades Ecológicas Catarinenses. Segundo o coordenador geral, Gert Shinke, as autoridades estão minimizando o problema e é fundamental que a comunidade se ocupe em exigir um monitoramento contínuo sobre toda a área afetada por pelo menos cinco anos. Gert afirma que os laudos apresentados pela Fundação do Meio Ambiente (Fatma), que apontam não haver contaminação pelo ascarel na baía, não podem ser considerados conclusivos. “Esse óleo leva certo tempo para se infiltrar e é quase certo que agora os laudos não apontarão nada. Os efeitos aparecem mais tarde, quando todo mundo já tiver esquecido o caso”.

O óleo ascarel pertence ao grupo de compostos orgânicos sintéticos conhecidos como PCBs. Eles não são biodegradáveis e tem efeito cumulativo nos tecidos vegetais e animais. Esse tipo de produto é usado em transformadores, desses usados pela Celesc, mas também podem ser usados em outros equipamentos. A preocupação da FEEC é justamente saber onde mais existe esse óleo e em que condições ele está acondicionado. No caso desses 12 mil litros que vazaram, é certo que estavam sem qualquer proteção e sem que se levasse em conta a periculosidade. “A sorte foi que o funcionário percebeu que havia algo errado e procurou os técnicos da universidade que trabalham ao lado do galpão da Celesc. Ainda assim, o produto vazou por mais de dois meses, e os efeitos disso podem ser muito perigosos para toda a cadeia de vida da região”.

Conforme o coordenador da FEEC a contaminação vai se dando muito lentamente e, depois, pode se alojar nos animais, nas plantas e consequentemente nas pessoas que comerem esses produtos. Também pode contaminar a água e todo o subsolo. “O problema é que esse produto é altamente tóxico e a ingestão de quantidades microscópicas já é um problema. Isso vai acumulando no organismo e pode gerar problemas por gerações”.    

Está circulando pela internet um alerta da médica Vera Bridi sobre a necessidade da imediata interdição não apenas do consumo dos moluscos e peixes das baías, mas também a proibição de banhos. Segundo ela, o produto é altamente perigoso para a saúde humana. Outro médico, J. Paulo Mello, lembra um acidente com esse mesmo produto, acontecido no Japão, em 1968. Segundo ele, pouco tempo depois a população passou a apresentar o depois denominado “Mal de Yusho”, que tem como sintoma bronquite, entorpecimento dos membros e edema. Tudo isso foi atribuído à ingestão das PCBs contidas no óleo. Outro caso semelhante aconteceu nos Estados Unidos quando o produto foi detectado no lençol freático de uma cidade. O óleo havia sido enterrado Há anos e estava num aterro químico.

Esses fatos mostram o quanto a população está ameaçada, senão nesse momento, mas a longo prazo. Daí ser considerada uma irresponsabilidade a liberação da maricultura e a minimização dos efeitos. “O óleo vazou por muito tempo, e o recolhimento que foi feito não garante de forma alguma que ele não tenha penetrado na terra, no mangue e se espalhado pela baía. Os órgãos ambientais têm de ser pressionados pela população a apresentar laudos sistemáticos. Isso não pode ficar no esquecimento”, diz Gert.

Os médicos do sul da ilha também estão em alerta e convocam a população a ficar atenta. Segundo eles, os sintomas observados nas pessoas que sofreram o Mal de Yusho são fadiga, dor de cabeça, dores com inchaço, inibição do crescimento da dentição, anemia, problema sanguíneos, redução da condução nervosa, erupções na pele, despigmentação, dor nos olhos e infecção persistente nas vias respiratórias, entre outros. “Além disso, existe o risco de alterações genéticas. A coisa não é brincadeira”.

Mas, apesar de todo esse alerta, o juiz federal Marcelo Krás Borges já liberou a produção e ostras, mariscos e berbigões na região, baseado no laudo da Fatma de que não havia contaminação. Gert Shinke alerta para a chamada “guerra dos laudos” que pode acontecer visando proteger determinados interesses. “Nós já vimos isso quando da tentativa de Eike Batista em fazer um estaleiro por aqui. Havia laudos para todos os gostos. Nós temos é de exigir dos órgãos ambientais que haja a medição contínua e sistemática da contaminação”.

O vazamento de um produto altamente tóxico e contaminante coloca em questão a completa vulnerabilidade da população diante de produtos dessa natureza. Como esse óleo foi parar num galpão, sem qualquer proteção? Que outros galpões haverão por aí com produtos desse tipo, sem que se saiba? Como um produto tão perigoso, usado em equipamentos que estão por aí aos milhares (como os transformadores) não têm um programa de proteção para descontaminação em caso de acidente. Pelos estudos levantados, nenhuma das técnicas de descontaminação em caso de grandes vazamentos existe no Brasil. Há uma, sendo trabalhada num laboratório de Curitiba, mas ainda em testes, conforme estudo realizado pelo Ministério do Meio Ambiente. Então, como as autoridades de Florianópolis vão proteger a população? Isso ainda é uma incógnita.

O certo é que as pessoas precisam agir e manter vigilância sobre as ações dos governantes. Outros laudos estão sendo feitos e precisam ser divulgados amplamente. É preciso que o governo estabeleça uma comunicação transparente, permitindo que a população acompanhe e se proteja. A FEEC promete manter-se alerta e acompanhando o caso. “Mas é fundamental que as pessoas estejam com a gente, cobrando. Sem um acompanhamento de longo prazo não podemos ficar”, finaliza Gert.   


quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A cidade proibida




Minha mãe tinha mania de varar noites e noites vendo filmes na televisão. Gostava de assistir de madrugada, quando tudo silenciava. Então, ela se estendia no sofá e ficava até o amanhecer vendo os clássicos que passavam na TV. Naqueles dias, nos anos 70 e 80, era comum a Bandeirantes e a Globo passarem bons filmes de madrugada. Também era comum que eu acompanhasse, impávida e feliz, essas vigílias fílmicas. Foi assim que aprendia a amar Miguel Aceves Mejia, Cantinflas, Vicente Celestino, Vitor Mature, Errol Flynn, Fred Astaire, Chaplin, Grande Otelo e tantos outros...

Mas, havia um tipo de filme que, em particular, fazia a gente rir e se maravilhar. Eram os chineses, ambientados na época imperial. No geral eram de kung fu e sempre começavam com um crime que depois tinha de ser vingado. Aí era aquela profusão de saltos, golpes e paisagens incríveis. A China vista pela tela era um encantamento. As roupas, as casas, os cabelos, as lutas, as cores. Por longos anos ficou latente o desejo de, um dia, quem sabe, poder ver tudo aquilo com olhos reais.

Foi esse sentimento que me assaltou quando as retinas abarcaram a entrada da Cidade Proibida.  Ali estava, descortinado, o cenário daquelas noites, em casa, com a mãe. Para chegar ao portão é preciso antes atravessa a famosa Praça Tian’anmen, a maior do mundo, palco de inúmeras manifestações estudantis em 1989, hoje vistas como a fagulha inicial do processo de mudança que a China passou a viver na economia e na política. Ali, vigilante, está a foto gigantesca de Mao Tsé Tungo, o homem que liderou, nos anos 40, a revolução chinesa, sendo também o articular e criador da República Popular da China. Mao governou os chineses de 1949 até 1976, ano de sua morte.  De certa forma, a sociedade alavancada pela “grande marcha”, acabou por enterrar definitivamente os séculos e séculos de governo imperial.  É fato que a China passou a ser república em 1912, depois de um movimento revolucionário liderado por Sun Yat-sen, mas o imperador ainda permanecia com o direito de viver na cidade proibida, ostentando o título, coisa que também lhe foi permitida durante a ocupação japonesa na Manchúria. Esse mundo só desapareceu mesmo com a vitória do comunismo.  

Ainda assim, a glória das dinastias Ming e Qing segue gerando suspiros e divisas, afinal, o número de turistas que acorre todos os dias ao local é tão gigantesco quanto a própria China. No mês de janeiro, quando o inverno castiga o país e os estrangeiros são poucos, é quando os chineses viajam para conhecer o esplendor de um tempo que já se esboroou. A cidade proibida começou a ser construída no ano de 1406 para ser a sede do governo imperial e levou 15 anos para ser terminada, empregando mais de um milhão de trabalhadores na tarefa. É chamada assim porque de fato era proibida aos simples “mortais”. Apenas a família do imperador e os que para ele trabalhavam podiam entrar. E, caso alguém o fizesse, era preso e morto. O palácio, considerado um dos maiores do mundo, cobre 720 mil metros quadrados. Dizem os chineses que os edifícios somam 9.999 divisões, porque o número nove era considerado sagrado pelos imperadores. É uma verdadeira cidade com os espaços de trabalho, descanso e lazer do imperador, além das alas de moradia e de confinamento das mulheres.

Todos os palácios são feitos de madeira, trabalhados artesanalmente por mais de cem mil mestres da arte chinesa. Os imensos pilares e frontais se encaixam sem que nenhum prego tenha sido usado. Tudo ali é simbólico. O rio interior, a harmonia suprema, o poder, a fé nos deuses antigos, o temor aos animais mitológicos, o respeito ao que consideravam sagrado. Por toda a parte escapa o hálito quente de um mundo que foi capaz de tornar a China uma referência para o mundo inteiro nos tempos mais remotos da humanidade. Que o diga Marco Polo, o navegador europeu que andou pela China e relatou as maravilhas que atiçaram a cobiça dos conquistadores. Os mais velhos, olham com silenciosa curiosidade aquele universo outrora proibido, mas a nova geração que assoma na China remodelada e aberta ao ocidente, nada mais quer do lugar a não ser a foto tirada como um souvenir de um tempo que já não diz nada. É só a cópia fetichizada de uma das maravilhas do mundo que, por acaso, está ali, bem ao alcance do celular.

Poucos há que se deixam ficar nos pátios a imaginar o esplendor da época imperial, ou que miram com suspiros os móveis e paredes talhados a ouro, capazes de custar a vida de tantos e tantos chineses. Poucos também são os que prestam atenção ao palavreado decorado dos guias que, apesar da ritualística, acabam por trazer informações importantes para se pensar as relações de poder que se estabeleciam naqueles tempos idos. A arrogância suprema dos imperadores, a completa ignorância da vida fora das muralhas, a exploração dos trabalhadores, o sofrimentos das mulheres, o exagero, a ostentação, o sacrífico de milhares de almas.

Na fala de muitos jovens também se pode notar a alegoria de uma crítica ao sistema comunista que, de 1945 até a morte de Mao, também usou de muitos desses elementos vistos no mundo imperial. “A vida na China não mudou muito com o comunismo”, dizem, e oferecem créditos ao que está vindo com a abertura econômica e o crescimento vertiginoso que eles não identificam como capitalismo, mas chamam curiosamente de “comunismo especialista”. “Hoje, por exemplo, as mulheres podem ter um emprego e cuidar da vida. Não precisamos mais casar. Também, com o nosso trabalho, podemos viajar e comprar coisas jamais imaginadas. Hoje podemos usar cores. Veja que na época imperial nos era proibido o amarelo, e no comunismo só podíamos usar o cinza. Agora, estamos livres para nos colorir”. De certa forma, essa gurizada tem razão, mas ainda é um discurso que só pode valer para poucos. É que a China tem tanta gente que a impressão que se tem é de que todos podem fruir das benesses do propalado crescimento.

Mas, se a gente prestar bem atenção e olhar para além dos espaços de comércio, pode-se ver o trabalhador excluído da promessa do “mundo livre”. Os que varrem o chão com as enormes vassouras de galhos, os que se esgueiram por detrás dos portais encarquilhados das ruas laterais, os que limpam os hotéis de olhos baixos e postura servil, os que recolhem o lixo nas madrugadas geladas, os camponeses perdidos de sua terra, os que não compram suas roupas em xópins, os que usam as velhas sapatilhas comunistas, os que não conseguem mais ter sua casa própria. Num país de um bilhão e trezentos mil habitantes o abismo entre pobres e ricos também começa a crescer, vertiginosa e inexoravelmente. Para quem olha de fora, é bem fácil perceber as tantas “cidades proibidas” que florescem por todo o país. É certo que ninguém mais está obrigado ao uso do mesmo uniforme gris, mas são milhões os que jamais poderão adentrar ao mundo de “cores” sonhado pela jovem trabalhadora que encontramos na Praça Taiananmen. Na velocidade da roda do consumo inaugurada com a “explosão” da economia, ninguém parece se importar com o fato de que se alguém está crescendo feito um bolo fermentado, é porque outro está fenecendo.

Para os chineses, sobretudo os jovens, já não há cidades proibidas e todas as muralhas estão no chão. Mas, sozinha no grande pátio do palácio dourado, num janeiro de oito graus abaixo de zero, penso que muralhas há que são invisíveis, mas igualmente poderosas. No aparentemente feliz mundo do capital, tudo parece permitido, até que se desmanche no ar na hora do embate com a realidade.








Os trabalhadores da velha Xian




Ali estava eu, em Xian, antiga capital da China imperial, centro da vida política e cultural do país por 14 dinastias, de uma nação que tem mais de sete mil anos de história contínua. Viera ver os famosos guerreiros de terracota, estátuas de argila, em tamanho natural, que desde sua descoberta em 1974, assombram o mundo com sua beleza. Hoje, tombados pela Unesco, os guerreiros formam uma das oitavas maravilhas do mundo. A visão é, deveras, espantosa.

A sensação que as figuras nos causam é de completo estupor. São milhares e nenhuma delas se repete. Cada rosto é uma pessoa única, imortalizada. Nas carinhas, ora sérias, ora sorridentes, podem-se notar os detalhes mais impressionantes, como o tipo de roupa, as rugas ou a barriga saliente, “típica dos funcionários mais graduados”, como diz uma chinesinha, encantada com a própria história.

Os guerreiros de terracota são apenas uma das extravagâncias do imperador Quin Shi Huangdi. Dizem que ele tinha apenas 14 anos quando mandou que se começasse a construir a tumba onde seria enterrado. Os chineses antigos tinham por tradição colocar no túmulo, tal qual o povo egípcio, tudo o que se pudesse precisar na outra vida: móveis, mulheres, escravos, ouro, soldados. Para isso, ao longo de 40 anos milhares de trabalhadores foram recrutados para a obra. Hoje, sabe-se que o túmulo mesmo do imperador está em uma espécie de pirâmide, rodeado por rios de mercúrio, o qual ninguém ainda teve coragem de acessar por conta de lendas de terríveis armadilhas.

Mas, uma parte dessa magnífica tumba veio à luz em 1974 quando um camponês furava o solo para fazer um poço. Logo estava descoberta a cova dos guerreiros de terracota. Milhares deles, bastante destruídos por inimigos passados e pelo tempo. Então, armados da milenar paciência chinesa, os arqueólogos foram montando o incrível quebra cabeça, recuperando as figuras. Hoje, pelo menos oito mil soldados já estão em pé, visíveis à visitação num imenso complexo museológico.

Diante dessa monumental obra humana a emoção é intraduzível. Os guerreiros são únicos. Provavelmente cada uma das caras representa a eles mesmos, os artistas que as fizeram, que se basearam uns nos outros para fazerem as esculturas. Assim que são pessoas reais nos mirando desde há mais de dois mil anos. O incrível disso tudo é que os trabalhadores que criaram a beleza dos guerreiros de terracota, e muito mais do que ainda não se encontrou, foram cruelmente assassinados ao fim da obra. O imperador temia que eles revelassem, mais tarde, o lugar da tumba. Por isso, nos arredores do local onde estavam os bonecos, também jaziam milhares de esqueletos reais, retorcidos em cova rasa. Possivelmente mortos de surpresa. Contam mais de 700 mil homens os que trabalharam na tumba. Um crime sem igual.

Por isso a visita aos guerreiros de argila é tão poderosa e impactante. Na entrada do museu assoma uma estátua gigante do imperador, mas não é ele o que merece as atenções. Foi um tirano megalomaníaco. O nos marca, indelével, é cada um daqueles rostos de olhos fixos à frente, como mirando o futuro. Mortos de maneira vil, ali estão, impressionantemente vivos, a apontar o crime, fixados na própria beleza. Cada um com sua singularidade: cocheiros, soldados, generais, gente comum. E, por mais que se possa querer honrar ao rei que unificou toda a China, os homens de terra encontrados em Xian são os que provocam a emoção visceral. Fica fácil perceber que são os trabalhadores, sempre, os que criam a beleza que nem a morte apaga. Sem sequer perceber, aqueles homens deixaram ali sua marca mais pessoal: o próprio rosto. Imagino a pureza de cada um imortalizando a cara do outro, anos a fio, sem esperar pelo absurdo fim. Dolorosamente são eles que voejam pelo imenso parque, na fria manhã de inverno chinês, como que a procurar por si mesmos na argila imortal.

A tumba dos guerreiros de terracota é um desses momentos de epifania. Uma das coisas mais lindas e tristes que já vi. 









quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Impressões de Beijin



Beijin, capital da China, é uma cidade, a primeira vista, difícil de ser amada. Com mais de 20 milhões de habitantes, nela, tudo parece grandioso demais. As ruas são largas, os prédios imensos e para onde quer que se olhe, lá estão, como monstros a nos oprimir. Alguns deles são famosos como o Word Center, com 330 metros de altura, o maior centro de comércio internacional do mundo ou o da Torre Nova da Televisão Central Chinesa, que é um gigante de cimento, com um desenho estranhíssimo, tendo no seu meio uma espécie de porta. Todo esse esplendor está em consonância com a nova fase do país, que cresce como se tivera engolido fermento. Em 2010 o PIB cresceu 10,4% e, em 2011, embora tenha caído, ainda ficou entre as maiores taxas do mundo, 9,4%. Há um desaquecimento agora em 2013 por conta da crise europeia, mas, ainda assim, há quem diga que as coisas voltam a crescer ainda esse ano. O PIB do ano passado ficou em 8,28 trilhões de dólares. É a segunda economia do mundo, perdendo apenas para a dos Estados Unidos e representa 15% de toda a economia mundial.

Pelas ruas da imensa capital só o que se vê é trabalho. Há uma espécie de frisson em produzir e ganhar dinheiro. Entre a população mais jovem, as prioridades são os aparelhos eletrônicos de última geração e as mercadorias de marcas famosas. “Ninguém quer saber de produtos chineses, não têm qualidade nem diversidade”, diz uma trabalhadora do comércio, cuja aspiração mais imediata é viajar aos Estados Unidos para poder comprar coisas mais “modernas”. Para os jovens, as mudanças introduzidas pelo governo, que nada mais são do que as opções do capitalismo, estão fazendo muito bem. “Antes as mulheres não tinham trabalho, agora têm, podem ser independentes. Nem precisam se casar”. No geral, um salário mínimo, dos mais baixos, está em 2.000 iuans, em torno de 500 dólares, mas há quem ganhe muito mais se trabalhar nas empresas estrangeiras, tiver dois empregos ou for funcionário do governo.

O “governo” é um caso a parte. É visto como um ente, uma coisa concreta, poderosa e misteriosa. Ninguém que não seja funcionário pode entrar em qualquer prédio público, tudo é cheio de segredos e há muito ressentimento com o “comunismo”. Um garoto contando sobre o fato de que não é possível acessar o facebook, abre os braços e diz, desolado: é o comunismo. A grande rede que hoje é um vício mundial está bloqueada na China. Em compensação, a maioria das famílias não sabe o que é um aluguel. “Os que são daqui de Beijin têm moradia própria, só esse pessoal que está vindo de fora agora é que precisa alugar apartamento”. Segundo Jang, como os alugueis acabam sendo muito caros, é comum os jovens se juntarem entre dois ou três para conseguir viver mais perto dos centros de comércio, onde chegam a trabalhar mais de 10 horas por dia. “Se não for assim, há que ficar na periferia”. Na verdade, toda essa problemática que compõe a vida no mundo capitalista agora está muito presente na China. “O bom é que a gente agora pode ter roupas coloridas, variadas, e não mais aquele cinza, sempre igual”.

A virada da China para o inchaço das grandes cidades no ritmo alucinado da produção tem pouco mais de vinte anos e é a única realidade conhecida pela juventude local, mas a memória de pais e avós, muitas delas nada agradáveis no que diz respeito ao sistema, fazem com que o governo seja visto como ameaça. Há sempre um jeito de pronunciar, um sorriso, um manear de cabeça que denota certo desconforto. Mas, se “o governo” não atrapalhar a caminhada para o consumo das coisas boas, das grandes marcas, da tecnologia, já está muito bem.

Por outro lado, as implicações do crescimento tem sido problemáticas. Uma delas é a poluição, que chega a níveis assustadores. Em dias de inverno é tão intensa que parece que é noite mesmo estando o sol a pino. É tanta fumaça que toda a claridade se esvai. Beijin tem milhares de chaminés soltando fumaça por conta da calefação que ainda é feita com carvão mineral. Somam-se a isso mais cinco milhões de carros com seus escapamentos. O resultado é uma espécie de fog que não tem fim. As pessoas usam máscaras, mas isso não é suficiente. Em poucas horas na rua, o peito queima como se fosse explodir. “A gente não protesta porque não tem o que fazer. As pessoas precisam se aquecer no inverno e tem que ter calefação”, diz  a jovem funcionária do café. Em algumas zonas da grande Beijin, a temperatura pode chegar a 23 graus negativos em janeiro e apesar de a maioria ter ar condicionado, ainda há quem só tenha papéis e carvão para queimar.

Mas, se por um milagre qualquer, um vento forte empurra a poluição para longe, a cidade se abre num intenso e vivo colorido. Os restaurantes se enchem de gente e os mais velhos lotam os parques para dançar e praticar o tai chi, duas febres nacionais. Os chineses são amorosos e sorridentes e quando se juntam é como se fosse uma grande festa. “Em Beijin não temos o costume de sair à noite. A gente chega do trabalho, faz a comida, a família come sempre junto, e depois vamos todos até o jardim para a prática dos exercícios. Feito isso, vamos dormir. É raro um bar aberto depois das nove da noite, a não ser nos grande hotéis”, conta Jang. Os mais velhos, que já estão aposentados, não sabem o que é depressão, porque estão sempre buscando se divertir em comunhão e isso inclui muito movimento e muito riso. “Faz bem para o corpo e para a mente”. Nos bairros mais pobres, mais na periferia da cidade, pode-se ver muita pobreza, mas são raros os mendigos e não há vestígios de crianças de rua.

A zona rural destoa totalmente da azáfama da cidade grande. Ali, as casas são baixas, ao estilo tradicional, como se fossem pequenas fortalezas. São construções pobres e cinzentas. “A cor sempre foi um tabu na China. Na época imperial, só os imperadores podiam usar o vermelho e o amarelo. Depois, no comunismo, foi a vez do cinza. Agora é que a gente está podendo variar”. Ainda assim, cinza é considerado uma cor elegante e é por isso que a maioria opta por ela nas suas moradias. Nos arredores de Beijin pode-se ver muitas dessas localidades que são chamadas apenas de “campo” e também nelas dá de perceber muito resentimento com relação ao “governo” porque a maioria de alguma forma foi afetada pelo crescimento. Muitos camponeses foram removidos por conta da abertura de grandes rodovias e não se conformam com isso. Mas, essas são impressões passadas por pessoas da cidade. Eles mesmos não dizem palavra.

Mas, apesar de toda essa onda de modernidade, Beijin também vive bastante do passado. Uma das grandes fontes de divisas são as belezas deixadas pela época imperial. Só a Cidade Proibida, conjunto de palácios que foi o centro do poder por cinco séculos (1416 a 1911), é visitada por mais de 80 mil turistas ao mês. Em janeiro, quando é o tempo é muito frio, os estrangeiros são poucos, mas há vagas e mais vagas de chineses de todas as partes que vêm à capital para conhecer essa parte de sua história. Bem em frente ao complexo fica a famosa Praça Tiananmen , ou Praça da Paz Celestial, a maior do mundo, onde em 1989 um jovem sozinho parou um tanque durante uma revolta estudantil. Curiosamente, todas as menções sobre esse fato em particular não aparecem em quaisquer páginas de internet acessadas na China e o fato foi apagado da história. Mesmo assim, as pessoas tiram fotos da Praça, rememorando aquele acontecimento tão emblemático que ainda vive na memória popular.

Da mesma forma a Grande Muralha, que pode ser acessada a menos de duas horas do centro da cidade, é outro foco de turismo intenso. A assombrosa construção que levou mais de 600 anos para ficar pronta, cobre mais de oito mil quilômetros de fronteira. Algumas partes foram restauradas exclusivamente para o turismo e não há dúvidas de que são magníficos monumentos do trabalho humano. A muralha começou a ser feita 200 anos antes de Cristo durante a dinastia Zhou, com a finalidade de impedir o avanço das tribos nômades. Ela atravessa montanhas, cidades e todo o deserto de Gobi e é, sem dúvida, uma das maravilhas do mundo. Contam que boa parte dos trabalhadores morreu durante a empreitada por conta das péssimas condições de trabalho. Ao longo da muralha há várias fortificações onde ficavam os soldados. Eles se comunicavam por sinais de fumaça e bandeiras coloridas. A subida é um ritual importante para os chineses e logo na entrada se pode ver um escrito do grande timoneiro Mao Tsé Tung: “Quem nunca subiu a muralha não pode ser considerado um homem”.

Mas, para aqueles que amam as cidades pelo que elas têm de invisíveis aos olhos comuns, Beijin se mostra verdadeiramente esplendorosa na sua face mais popular. E, aí, nada pode ser mais bonito do que o fascinante mercado Pan Jia Yuan, um gigantesco espaço da genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendem desde bonecas quebradas até as mais finas joias.

O pavilhão, é claro, fica fora dos circuitos turísticos. Há que se arriscar andar pela cidade procurando a vida mesma, aquela que se expressa no cotidiano. E, assim, numa surpreendente e inesperada visão, aparece a Pan Jia Yuan. Adentrar aos seus portões é mergulhar na China mais verdadeira. Na praça estão os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e  antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importa que a língua verbal não seja compreendida, o corpo fala e as partes se entendem. Impossível descrever a beleza que explode ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na paz.

Depois, nas lojinhas que circundam o grande pavilhão aparecem as pedras de jade em todas as suas conformações e os artistas se apresentam, no trabalho, sorridentes ao olhar do desconhecido. Em outras dezenas de boxes estão os pintores da arte tradicional, em nanquim. Verdadeiras obras de arte que em nada devem as que ficam no chique Espaço 798, antiga fábrica de componentes elétricos desenhada pelos alemães em 1950, que virou área da expressão da arte moderna da China. Só que ali, na Pan Jia Yuan, o desenho é a paisagem, as amendoeiras, o impressionismo. Pode-se ficar por horas nos corredores vendo as obras se fazerem na sua frente, metódica e tranquilamente, por experientes pintores. Também é de tirar o fôlego acompanhar a confecção das famosas sombras chinesas. Incrível e delicado trabalho que testemunha a capacidade humana de produzir indizíveis belezas.

Depois de circular por cada cantinho da imensa praça, é bom ficar ao sol, olhando as pessoas, sob centenas de bandeirinhas coloridas. Não há a sofreguidão dos grandes mercados nem a frieza dos xopins. Não há turistas e praticamente não há ocidentais. Só o farfalhar dos casacos e a risada cristalina das mocinhas. É quase como um oásis no meio de Beijin. E, para coroar a sensação de que se está no paraíso, no meio da praça há uma árvore florida. Em pleno janeiro, no frio intenso, quando não há sequer folhas nas árvores, aquela árvore, no centro de Pan Jia Yuan explode em rosa claro. Seu caule está protegido porque “as árvores se assustam com o frio”, conforme explicou uma senhora. E ela, a árvore, agradece àquele povo simples e criativo, assim, se abrindo em beleza.

Então, de todas as maravilhas que vi em Beijin, na parte antiga e na nova, certamente o que nunca me sairá das retinas é aquela amendoeira, em flor, como que a desafiar o tempo. Ela mesma um milagre, tão maior do que o desenvolvimento que pretende levar a China ao paraíso. Aquele que consegue ver, não tem dúvidas. O paraíso já está ali.






A prefeitura no bairro


Eu não morava ali, mas já amava o Campeche. E nem era pela praia ou a natureza exuberante. É que já sabia que ali, naquele bairro, vivia uma gente guerreira que não media esforços quando a questão era lutar pela vida do bairro. Circulavam histórias incríveis das batalhas na Câmara de Vereadores, de um grupo renitente, que insistia em defender um plano diretor. Ou seja, a proposta de um lugar planejado a longo prazo, que mantivesse a qualidade da vida da comunidade, com edificações baixas, jardins, ruas tranquilas, pomares, água na torneira e luz permanente. Que garantisse um parque onde as pessoas pudessem se encontrar e encontrasse os caminhos para uma boa mobilidade. Que protegesse as dunas, a mata, a praia, sem fechar os olhos para o sistemático aumento da população do bairro. Que a vida pudesse se desenvolver sem que isso tivesse de significar o “inferno do progresso”, que nos mais das vezes só traz destruição.

Mais tarde, vim morar no Campeche e pude acompanhar sistematicamente o trabalho desse povo que decidiu abrir mão de tantas coisas na vida para estudar as leis que regem o Estatuto da Cidade, para conhecer a realidade do bairro e a partir de encontros, reuniões, debates, seminários, oficinas, conferências, dar corpo e alma a um projeto de plano de diretor para o lugar. E esse não é um trabalho de agora. Ele existe há mais de 20 anos. Foram anos e anos de conversas, de chamadas, de visitas, de buscas, de discussões sistemáticas, trabalho de titãs. É certo que não é trabalho de heróis. Cada uma dessas pessoas escolheu fazer isso e o fez, com amor, com garra, com ódio, com paixão, com alegria. Não foram poucos os que foram perseguidos. Basta lembrar o que aconteceu com o seu Chico, cujo histórico bar foi derrubado por conta das batalhas políticas de seu filho Lázaro.

O poder público sempre confrontou a luta do Campeche porque tudo o que a comunidade queria ia contra as propostas mirabolantes que os governantes tinham para o bairro e para a cidade. Porque o grupo do Campeche nunca pensou apenas o seu umbigo. Sempre foi um olhar sobre a cidade inteira. E foi essa gente que se levantou quando Angela Amin quis fazer da planície um monstrengo de cimento, com 450 mil habitantes. De onde viria a água¿ Como seria a mobilidade¿ Quantos andares teriam os prédios¿ Enfim, toda a problemática de um adensamento forçado foi colocada e muita luta se fez. O projeto não vingou.

Depois, no governo de Dário Berguer houve o Plano Diretor Participativo e lá estava todo mundo outra vez, em cena, pronto para discutir, pensar, estudar, organizar, propor. Todo o bairro foi chamado, pela rádio, pelo jornal, pelo vizinho no boca-a-boca. Mas é como sempre foi. A maioria das gentes não está disposta a se comprometer, entrega a luta para uns poucos e espera. Se tudo der certo, muito que bem. Se algo falhar já tem em quem colocar a culpa. É bem mais fácil ficar observando de longe. E assim, por mais de cinco anos, um grupo de pessoas se reunia, participava das oficinas, dos debates e foi fortalecendo o velho projeto, ajustando, arrumando, sempre dentro dos desejos coletivos arrebanhados nas centenas de milhares de reuniões. Mas, o plano não andou. Dário preferiu ignorar o debate que toda a cidade havia feito e chamou uma empresa argentina para esboçar o projeto da cidade. Por força da luta do povo unido teve de recuar. O plano ficou na gaveta.

Agora, vem o novo prefeito, quase um menino ainda, prometendo levar a sério a voz da cidade. Alguns acreditaram. Outros não. Calejados com as promessas da oligarquia a qual ele representa, colocaram as barbas no molho e esperaram. Até que, poucos dias depois de assumir o prefeito apresentou o projeto “Prefeitura no Bairro”. Disse que ia ouvir as gentes, saber dos problemas. Alguns acreditaram. Outros não. Passou por Canasvieiras, pelo Monte Cristo e depois pelo Campeche. Mas, o jovem prefeito agiu como um velho coronel. Em vez de realizar um encontro político, de discussão e debate, preferiu a batida fórmula do beijão-mão, como bem definiu o morador do bairro, Ricardo Freitas. Montou uma mesa com os secretários e recebeu um por um os moradores. Criado na lógica das velhas raposas ele sabe que uma pessoa sozinha diante do governante faz seu pedido pessoal. Muitos chegam a ficar ofuscados com o fato de estarem frente a frente com a autoridade, perdem o prumo, acabam por elogiar e jogar conversa fora. Há muito pouco espaço, quase nada, para os projetos coletivos, assim como fica completamente barrada a reflexão, uma vez que ninguém sabe o que o outro reivindicou. É um pé de orelha entre o morador e o prefeito. Tampouco se sabe o que disse o prefeito. Assim, o evento público passa a ser uma coisa privada, quase uma troca de favores. Então, uma longa luta coletiva – como, por exemplo, a de um calçamento de rua - se acaba se concretizando, aparece como o atendimento de um pedido pessoal. É o mesmo velho cinismo das elites se expressando.

Para quem discute o bairro desde há décadas, não há novidades no front. As práticas dos governantes se travestem, mas a realidade não. Eles sempre buscam dividir uma comunidade que esteja forte na luta. Jogam uns moradores contra os outros, tentam desqualificar quem luta, buscam fortalecer as relações pessoais, de favores, de compadrio. Ainda assim, o grupo que forma o Núcleo Distrital do Campeche mandou representante. Foi lá na mesinha falar com o prefeito. Mas não levou reivindicações pessoais. Apresentou o Plano Diretor construído coletivamente nas noites, nos fins de semana, nas longas reuniões. Não levou um pedido, levou uma exigência de quem sabe que um prefeito ali está para mandar obedecendo. Afinal, a morada do poder é a comunidade organizada, aquela que se compromete, que debate, que discute e propõe.

Ao final, desfeito o teatro, sobra o quê¿ Uma lixeira consertada, uma rua recapeada, uma boca de lobo aberta. Isso é bom, não há dúvidas, mas a cidade precisa de um projeto global. O esgoto não pode parar no mar, os prédios não podem continuar brotando do chão sem que haja estrutura para uma vida digna de ser vivida. Há que encontrar respostas para os bairros que dialoguem com a cidade toda. Há que aprovar um Plano Diretor que expresse o desejo das gentes que discutiram e pensaram a cidade. Esse é campo da luta coletiva. E é aí que as pessoas querem ver os governantes se movendo.

Já vai muito longe o tempo do beija-mão. A vida mudou. Mas, em Florianópolis, quando a velha oligarquia (que quase sempre dominou) governa junta com o mesmo grupo que praticamente destruiu a cidade nos últimos anos, sobram poucas esperanças de que a forma de governar tenha mudado. Então, só resta a luta. A mesma renitente luta de todos os dias daqueles que vivem a enfrentar os “vilões do amor”.

Como bem lembrou a representante do Campeche no Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor, Janice Tirelli: ”Somos como essas folhas no nosso quintal. Um dia elas vão, outro dia elas voltam... A gente vai, mas a gente volta”.. E é assim... para desespero de uns e alegria de outros, a gente sempre volta.