Eu não morava ali, mas já amava o Campeche. E nem era pela praia ou a natureza exuberante. É que já sabia que ali, naquele bairro, vivia uma gente guerreira que não media esforços quando a questão era lutar pela vida do bairro. Circulavam histórias incríveis das batalhas na Câmara de Vereadores, de um grupo renitente, que insistia em defender um plano diretor. Ou seja, a proposta de um lugar planejado a longo prazo, que mantivesse a qualidade da vida da comunidade, com edificações baixas, jardins, ruas tranquilas, pomares, água na torneira e luz permanente. Que garantisse um parque onde as pessoas pudessem se encontrar e encontrasse os caminhos para uma boa mobilidade. Que protegesse as dunas, a mata, a praia, sem fechar os olhos para o sistemático aumento da população do bairro. Que a vida pudesse se desenvolver sem que isso tivesse de significar o “inferno do progresso”, que nos mais das vezes só traz destruição.
Mais tarde, vim morar no Campeche e pude acompanhar sistematicamente o trabalho desse povo que decidiu abrir mão de tantas coisas na vida para estudar as leis que regem o Estatuto da Cidade, para conhecer a realidade do bairro e a partir de encontros, reuniões, debates, seminários, oficinas, conferências, dar corpo e alma a um projeto de plano de diretor para o lugar. E esse não é um trabalho de agora. Ele existe há mais de 20 anos. Foram anos e anos de conversas, de chamadas, de visitas, de buscas, de discussões sistemáticas, trabalho de titãs. É certo que não é trabalho de heróis. Cada uma dessas pessoas escolheu fazer isso e o fez, com amor, com garra, com ódio, com paixão, com alegria. Não foram poucos os que foram perseguidos. Basta lembrar o que aconteceu com o seu Chico, cujo histórico bar foi derrubado por conta das batalhas políticas de seu filho Lázaro.
O poder público sempre confrontou a luta do Campeche porque tudo o que a comunidade queria ia contra as propostas mirabolantes que os governantes tinham para o bairro e para a cidade. Porque o grupo do Campeche nunca pensou apenas o seu umbigo. Sempre foi um olhar sobre a cidade inteira. E foi essa gente que se levantou quando Angela Amin quis fazer da planície um monstrengo de cimento, com 450 mil habitantes. De onde viria a água¿ Como seria a mobilidade¿ Quantos andares teriam os prédios¿ Enfim, toda a problemática de um adensamento forçado foi colocada e muita luta se fez. O projeto não vingou.
Depois, no governo de Dário Berguer houve o Plano Diretor Participativo e lá estava todo mundo outra vez, em cena, pronto para discutir, pensar, estudar, organizar, propor. Todo o bairro foi chamado, pela rádio, pelo jornal, pelo vizinho no boca-a-boca. Mas é como sempre foi. A maioria das gentes não está disposta a se comprometer, entrega a luta para uns poucos e espera. Se tudo der certo, muito que bem. Se algo falhar já tem em quem colocar a culpa. É bem mais fácil ficar observando de longe. E assim, por mais de cinco anos, um grupo de pessoas se reunia, participava das oficinas, dos debates e foi fortalecendo o velho projeto, ajustando, arrumando, sempre dentro dos desejos coletivos arrebanhados nas centenas de milhares de reuniões. Mas, o plano não andou. Dário preferiu ignorar o debate que toda a cidade havia feito e chamou uma empresa argentina para esboçar o projeto da cidade. Por força da luta do povo unido teve de recuar. O plano ficou na gaveta.
Agora, vem o novo prefeito, quase um menino ainda, prometendo levar a sério a voz da cidade. Alguns acreditaram. Outros não. Calejados com as promessas da oligarquia a qual ele representa, colocaram as barbas no molho e esperaram. Até que, poucos dias depois de assumir o prefeito apresentou o projeto “Prefeitura no Bairro”. Disse que ia ouvir as gentes, saber dos problemas. Alguns acreditaram. Outros não. Passou por Canasvieiras, pelo Monte Cristo e depois pelo Campeche. Mas, o jovem prefeito agiu como um velho coronel. Em vez de realizar um encontro político, de discussão e debate, preferiu a batida fórmula do beijão-mão, como bem definiu o morador do bairro, Ricardo Freitas. Montou uma mesa com os secretários e recebeu um por um os moradores. Criado na lógica das velhas raposas ele sabe que uma pessoa sozinha diante do governante faz seu pedido pessoal. Muitos chegam a ficar ofuscados com o fato de estarem frente a frente com a autoridade, perdem o prumo, acabam por elogiar e jogar conversa fora. Há muito pouco espaço, quase nada, para os projetos coletivos, assim como fica completamente barrada a reflexão, uma vez que ninguém sabe o que o outro reivindicou. É um pé de orelha entre o morador e o prefeito. Tampouco se sabe o que disse o prefeito. Assim, o evento público passa a ser uma coisa privada, quase uma troca de favores. Então, uma longa luta coletiva – como, por exemplo, a de um calçamento de rua - se acaba se concretizando, aparece como o atendimento de um pedido pessoal. É o mesmo velho cinismo das elites se expressando.
Para quem discute o bairro desde há décadas, não há novidades no front. As práticas dos governantes se travestem, mas a realidade não. Eles sempre buscam dividir uma comunidade que esteja forte na luta. Jogam uns moradores contra os outros, tentam desqualificar quem luta, buscam fortalecer as relações pessoais, de favores, de compadrio. Ainda assim, o grupo que forma o Núcleo Distrital do Campeche mandou representante. Foi lá na mesinha falar com o prefeito. Mas não levou reivindicações pessoais. Apresentou o Plano Diretor construído coletivamente nas noites, nos fins de semana, nas longas reuniões. Não levou um pedido, levou uma exigência de quem sabe que um prefeito ali está para mandar obedecendo. Afinal, a morada do poder é a comunidade organizada, aquela que se compromete, que debate, que discute e propõe.
Ao final, desfeito o teatro, sobra o quê¿ Uma lixeira consertada, uma rua recapeada, uma boca de lobo aberta. Isso é bom, não há dúvidas, mas a cidade precisa de um projeto global. O esgoto não pode parar no mar, os prédios não podem continuar brotando do chão sem que haja estrutura para uma vida digna de ser vivida. Há que encontrar respostas para os bairros que dialoguem com a cidade toda. Há que aprovar um Plano Diretor que expresse o desejo das gentes que discutiram e pensaram a cidade. Esse é campo da luta coletiva. E é aí que as pessoas querem ver os governantes se movendo.
Já vai muito longe o tempo do beija-mão. A vida mudou. Mas, em Florianópolis, quando a velha oligarquia (que quase sempre dominou) governa junta com o mesmo grupo que praticamente destruiu a cidade nos últimos anos, sobram poucas esperanças de que a forma de governar tenha mudado. Então, só resta a luta. A mesma renitente luta de todos os dias daqueles que vivem a enfrentar os “vilões do amor”.
Como bem lembrou a representante do Campeche no Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor, Janice Tirelli: ”Somos como essas folhas no nosso quintal. Um dia elas vão, outro dia elas voltam... A gente vai, mas a gente volta”.. E é assim... para desespero de uns e alegria de outros, a gente sempre volta.
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