Ali estava eu, em Xian, antiga capital da China imperial,
centro da vida política e cultural do país por 14 dinastias, de uma nação que
tem mais de sete mil anos de história contínua. Viera ver os famosos guerreiros
de terracota, estátuas de argila, em tamanho natural, que desde sua descoberta
em 1974, assombram o mundo com sua beleza. Hoje, tombados pela Unesco, os
guerreiros formam uma das oitavas maravilhas do mundo. A visão é, deveras,
espantosa.
A sensação que as figuras nos causam é de completo estupor.
São milhares e nenhuma delas se repete. Cada rosto é uma pessoa única,
imortalizada. Nas carinhas, ora sérias, ora sorridentes, podem-se notar os
detalhes mais impressionantes, como o tipo de roupa, as rugas ou a barriga
saliente, “típica dos funcionários mais graduados”, como diz uma chinesinha,
encantada com a própria história.
Os guerreiros de terracota são apenas uma das extravagâncias
do imperador Quin Shi Huangdi. Dizem que ele tinha apenas 14 anos quando mandou
que se começasse a construir a tumba onde seria enterrado. Os chineses antigos
tinham por tradição colocar no túmulo, tal qual o povo egípcio, tudo o que se
pudesse precisar na outra vida: móveis, mulheres, escravos, ouro, soldados.
Para isso, ao longo de 40 anos milhares de trabalhadores foram recrutados para
a obra. Hoje, sabe-se que o túmulo mesmo do imperador está em uma espécie de
pirâmide, rodeado por rios de mercúrio, o qual ninguém ainda teve coragem de
acessar por conta de lendas de terríveis armadilhas.
Mas, uma parte dessa magnífica tumba veio à luz em 1974
quando um camponês furava o solo para fazer um poço. Logo estava descoberta a
cova dos guerreiros de terracota. Milhares deles, bastante destruídos por
inimigos passados e pelo tempo. Então, armados da milenar paciência chinesa, os
arqueólogos foram montando o incrível quebra cabeça, recuperando as figuras.
Hoje, pelo menos oito mil soldados já estão em pé, visíveis à visitação num
imenso complexo museológico.
Diante dessa monumental obra humana a emoção é intraduzível.
Os guerreiros são únicos. Provavelmente cada uma das caras representa a eles
mesmos, os artistas que as fizeram, que se basearam uns nos outros para fazerem
as esculturas. Assim que são pessoas reais nos mirando desde há mais de dois
mil anos. O incrível disso tudo é que os trabalhadores que criaram a beleza dos
guerreiros de terracota, e muito mais do que ainda não se encontrou, foram
cruelmente assassinados ao fim da obra. O imperador temia que eles revelassem,
mais tarde, o lugar da tumba. Por isso, nos arredores do local onde estavam os
bonecos, também jaziam milhares de esqueletos reais, retorcidos em cova rasa.
Possivelmente mortos de surpresa. Contam mais de 700 mil homens os que
trabalharam na tumba. Um crime sem igual.
Por isso a visita aos guerreiros de argila é tão poderosa e
impactante. Na entrada do museu assoma uma estátua gigante do imperador, mas
não é ele o que merece as atenções. Foi um tirano megalomaníaco. O nos marca,
indelével, é cada um daqueles rostos de olhos fixos à frente, como mirando o
futuro. Mortos de maneira vil, ali estão, impressionantemente vivos, a apontar
o crime, fixados na própria beleza. Cada um com sua singularidade: cocheiros,
soldados, generais, gente comum. E, por mais que se possa querer honrar ao rei
que unificou toda a China, os homens de terra encontrados em Xian são os que
provocam a emoção visceral. Fica fácil perceber que são os trabalhadores,
sempre, os que criam a beleza que nem a morte apaga. Sem sequer perceber,
aqueles homens deixaram ali sua marca mais pessoal: o próprio rosto. Imagino a
pureza de cada um imortalizando a cara do outro, anos a fio, sem esperar pelo
absurdo fim. Dolorosamente são eles que voejam pelo imenso parque, na fria
manhã de inverno chinês, como que a procurar por si mesmos na argila imortal.
A tumba dos guerreiros de terracota é um desses momentos de
epifania. Uma das coisas mais lindas e tristes que já vi.
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