Alzheimer/Velhice

domingo, 28 de maio de 2023

Das tradições


Minha mãe, Helena, era uma mulher noturna. Gostava de fazer as coisas sempre depois que tudo se aquietava. Gostava de ver jogos de basquete na TV e filmes antigos. Também era de noite que bordava, fazia tricô e escolhia feijão. Feijão era coisa sagrada, tinha de ter todos os dias, então, a cada dois ou três dias lá estava ela de novo escolhendo o feijão.

Eu tinha por costume estar sempre junto nessas tarefas noturnas, até porque era só ela que me acompanhava nas maratonas de filmes de vampiro. Sempre tive medo e para ver os filmes havia que ter companhia. Ela não falhava. Ficava até o fim, as perninhas cruzadas, fazendo crochê e tomando chá de boldo. Eu retribuía, então...

Assim, quando ela estendia os feijões em cima da mesa para catar as sujeirinhas eu já me sentava junto com ela para o mutirão. Enquanto escolhíamos os grãos eu ia contando das coisas do colégio, do menino que eu gostava, essas coisas da vida ordinária. Ela ouvia e por vezes dava algum conselho. Sobre os guris era sempre batata. Se ela dissesse: “esse guri não dá, não presta”, podia escrever na pedra, que era a mais pura verdade.

Eu e minha irmã sempre dizíamos pra ela que ela julgava as pessoas sem conhecer e que isso não era legal. Ela fazia aquela cara de paisagem, um muxoxo de desdém e lascava: não presta, e não presta. Podia passar algum tempo, mas a predição se confirmava. E se ela dissesse: “ah.. esse sim”... podia marcar o casamento, porque o guri era bom.

Assim que até hoje quando jogo os feijões na mesa para catar as sujeirinhas posso sentir a presença da Dona Helena do meu lado, com a perna dobrada e os olhinhos de lâmpada a esperar pela minha algaravia dos dias. Com ela converso e damos muita risada.

Vez em quando coloco um nome na roda para esperar o veredito.

- E o fulano, mãe?

Se ela disser “não presta”, pronto. Tá lascado o fulano, porque a mãe não falha.

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