Alzheimer/Velhice

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Do que fica na memória

 


No Alzheimer a pessoa perde a memória de fatos recentes e, depois, gradativamente, do passado. Mas, ao que parece, algumas coisas ficam, como lampejos da vida vivida. O pai há muito tempo não me reconhece como filha. Ele me tem como referência, mas é porque estou sempre presente desde que ele acorda até quando dorme, ou mesmo quando desperta de noite. Ele se vira e estou ali. Ele sabe que eu sou a pessoa que ele vai encontrar o tempo todo. Mas, se eu falo com ele e chamo de pai, ele ri.

- Pai, pai, não sou teu pai.

Por outro lado, o nome ele não esquece. Se eu quero chamar sua atenção basta eu dizer: “Seu Tavares!” e ele já se apruma. Outra palavra que faz o olho dele brilhar é Uruguaiana, sua cidade do coração. Vez em quando se lembra de Quaraí, a cidade natal, mas é Uruguaiana que faz o rosto se abrir em alegria. Eu até já fiz uma lista de músicas gaúchas que trazem o nome Uruguaiana, ele escuta e diz: ó, ó. Fica como um menino.

Por enquanto também não se esqueceu de fumar. Quando a gente oferece um cigarrinho, ele escancara o riso e diz “ah, mas que coisa querida”, e fica sentadinho na sua poltrona, rindo com o Rolando Boldrin, sorvendo a fumacinha.

Seu Tavares é um fofo...



terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Adeus 2021, sem saudade


O ano que passou, no Brasil, foi um tempo de terror. E não foi só por conta do coronavírus, visto que o andamento da vacinação, ainda que lento, foi baixando os casos e as mortes. Apesar de todo o trabalho que o governo federal fez para impedir a imunização massiva da população, mesmo entre os apoiadores do governo o chamado da vida foi mais forte e as pessoas foram buscando a vacina. Isso deu um respiro para a nação uma vez que o combate ao novo vírus só pode ser feito com a imunização coletiva da maioria da população. Ainda assim, nada está bem. As mortes continuam – passamos dos 600 mil óbitos  - e o negacionismo também, a tal ponto de o presidente da nação insistir em criticar a imunização em crianças, tão logo a Anvisa liberou, mesmo que os dados apontem que grande parte dos internados nas UTIs são jovens não vacinados. E, agora, no final do ano, hackers invadiram o sítio do Ministério da Saúde e apagaram dados sobre a vacinação e sobre a saúde dos brasileiros. Um “mistério” do realismo mágico. A quem interessaria destruir as informações sobre esse tema? Um pirulito para quem adivinhar.

A maior taxa de terror veio mesmo por parte do governo federal, como tem sido recorrente desde 2019, quando assumiu o país esse agente da morte. Cumprindo suas promessas de campanha Jair Bolsonaro deu sequência ao processo de destruição do país em todas as áreas. Não houve engano, tudo já estava claro desde o começo. Mas, a responsabilidade dessa destruição não é unicamente do presidente. O Congresso Nacional, com raríssimas exceções dentro dele, tem respaldado cada ação e cada proposta do governo federal. Destruíram direitos dos trabalhadores e abriram os cofres para o desmando e a corrupção. Não bastasse isso ainda aprovaram um tal de “orçamento secreto”, que não dá transparência sobre recursos federais entregues aos deputados. Uma vergonha nacional que é noticiada como se nada tivesse de absurdo.

Em 2021 seguiu forte e sem parada o ataque aos povos originários, com o aumento sistemático da violência e do roubo das terras. A proposta do governo é acabar com eles. Incêndios e desmatamentos arrasando territórios inteiros, nossos biomas mais importantes também seguiram sem freios. Igualmente recrudesceram os ataques da polícia militar, em praticamente todos os estados, contra a população negra e pobre. O extermínio da juventude virou política de estado, a ponto de acontecer um massacre com mais de 25 mortos em Minas Gerais, sem que o tema rendesse qualquer debate nacional. Até hoje não se sabe o que de fato aconteceu na cidade mineira de Varginha. Nada além da acusação de “suspeitos” e “bandidos”. Provas de bandidagem? Nenhuma.

O governo também continuou com o processo de desmonte na educação brasileira, retirando recursos de todos os níveis. A pandemia e a falta de uma política de acesso fizeram com que aumentasse o número de desistências, a taxa de analfabetismo encostou nos 7% e o analfabetismo funcional chega a quase 30% da população. Não bastasse isso, o negacionismo diante do coronavírus fez com que vários estados obrigassem os professores ao retorno presencial, gerando sofrimento mental e mais doença na categoria. O governo federal também estraçalhou com o Enem – porta de entrada para a universidade dos empobrecidos - a tal ponto de fazer com que a juventude da periferia desistisse dele, bem como do ensino superior, com redução de inscrição no vestibular. E, agora, quer garantir mais vantagens para os ricos no sistema do Prouni (programa de bolsas para garantir permanência) afastando ainda mais os empobrecidos da universidade, já que disputarão as já poucas bolsas com quem não precisa delas. 

No campo da saúde assistimos aparvalhados a CPI da Covid no Congresso Nacional que levantou não apenas os crimes cometidos por agentes do governo, bem como pelo próprio presidente da nação, além dos horrores que acontecem dentro dos hospitais privados geridos por planos de saúde, que simplesmente mataram os velhos com medicamentos inúteis para evitar gastos. Meses e meses de apresentação de provas e testemunhos sobre esses desmandos que, ao fim, deram em nada. Um ano inteiro sangrando sem que nem a Justiça nem os parlamentares fizessem qualquer coisa para punir os criminosos. Muito provavelmente tudo isso acabará em pizza ou arrastará processo por anos, que se findarão por inanição. O drama de milhões nas mãos dos bandidos tampouco conseguiu produzir qualquer comoção popular, além da sensação momentânea de estupor.

Vivemos um crescendo do preço da gasolina – com mais de 50% de aumento no ano - causando a alta dos preços de todas as mercadorias, inclusive as da cesta básica. A fome, que tinha sido banida do nosso país voltou com força e não poderia ser diferente, pois todo o apoio governamental está voltado para os fazendeiros, mineradores e multinacionais. A indústria brasileira agoniza, bem como os pequenos produtores e pequenos comerciantes. E as estrelas da mídia ensinando como economizar gás, cozinhando com lenha, ou como trocar a carne por sopa de ossos. Uma perversidade sem tamanho.

O desemprego – conforme dados do IBGE - está na casa de 14 milhões de brasileiros e mais de seis milhões sequer buscam ocupação, pois já não tem esperança, o que dá uma soma de 20 milhões de seres sem ter como ganhar a vida nesse país. Mas, se formos atrás de outros dados, como os do “Mapa da exploração dos trabalhadores no Brasil”, do Ilaese, que usa outra metodologia, o número de desempregados passa dos 50 milhões. Nesse contexto, aumenta também a violência e o desespero. 

A classe média baixa que ainda tinha a chance de juntar um dinheirinho, apostando na poupança, historicamente o único investimento possível, está à deriva também. A caderneta, que valorizava em parco 1% agora só vai render 0,5%, ou seja, absolutamente nada. A inflação de 10% ao ano come tudo o que puder render. Ou seja, só perdas. A classe média, protagonista da ascensão dessa gente que hoje governa o país, pouco se manifesta e quando o faz é para jogar a culpa nos governadores ou nos prefeitos, eximindo o governo federal de qualquer responsabilidade sobre o caos social e econômico. Pagam sete reais o litro de gasolina, quietinhos, os mesmos que gritavam de ódio quando chegou a 2,70 no governo do PT.

A mídia comercial corporativa não divulga, mas o Brasil também vive um  de seus maiores fluxos migratórios. Só no ano passado, o número de brasileiros que decidiu sair do país em busca de vida melhor subiu 122%, passando de um milhão e 800 mil pessoas para quatro milhões e 215 mil. Ainda não há números de 2021, mas certamente deve haver mais gente saindo. Uma pesquisa da Datafolha mostrou que pelo menos 70 milhões de brasileiros dariam o fora daqui se pudessem. Gente jovem e qualificada é o perfil de quem quer migrar. O destino de quase 50% dos migrantes, como em toda a América Latina, são os Estados Unidos, mas há muita procura também por Portugal, por conta da língua. Fossem esses números na Venezuela haveria uma série de matérias emocionantes sobre os migrantes, mas, como o responsável por essa debandada é o queridinho da mídia, não há alarde sobre isso. Só notas de roda pé.

Os dramas vividos pelos brasileiros nesse governo atual, quando passam na TV, são apresentados como um raio isolado num céu azul. Não há a explicitação das razões da fome, da miséria, da violência crescente, dos feminicídios – que aumentaram estrondosamente com a ascensão dos adoradores de armas. E é essa gente que agora quer transformar os invasores de terras indígenas  - garimpeiros ilegais e os grandes fazendeiros - em “comunidades tradicionais”, com o apoio do Congresso Nacional. É uma atrocidade atrás da outra e tudo completamente naturalizado, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

No campo da política eleitoral não há novidades. Com o arquivamento das denúncias contra o ex-presidente Lula é ele quem aparece como o candidato preferencial para bater Bolsonaro nas eleições do ano que vem. Mas, isso não significa que a perseguição terminou. Muita coisa pode acontecer até o pleito. A investigação sobre o candidato Ciro Gomes, feita com todo o aparato da Polícia Federal e a espetacularização típica da Lava-Jato agora no mês de dezembro é uma mostra clara de que o estado policial seguirá atuando contra os desafetos do presidente. Com o judiciário dominado, as denúncias de crimes cometidos pelos filhos do presidente e por ele mesmo, caem no vazio, e no campo da justiça nada pode se esperar. Toda essa batalha, infelizmente não tem quase nada a ver com a necessária luta de classes, é um combate interno à classe dominante, visto que nem Ciro nem Lula têm qualquer projeto de transformação radical. Os dois caminham na estrada do liberalismo e a socialdemocracia é o limite. Apesar de todo esse terror, a esquerda brasileira está derrotada, sem projeto para a nação e sem inserção na maioria da população. Os movimentos sociais mais organizados, como os Sem-Teto e os Sem-Terra resistem, mas tampouco conseguem ultrapassar o particularismo de suas bandeiras. 

Vamos nos aproximando do fim do ano praticamente sem qualquer brecha para a esperança de mudança em curto prazo. Temos a nossa frente um país destroçado e uma fatia muito grande de gente alienada, enquanto outra espera que as eleições venham mudar o quadro acreditando que nos bastará um “mais” alguma coisa do tipo: mais democracia, mais justiça, mais educação, mais negros na política, mais mulheres em posição de mando, mais isso, mais aquilo. As questões centrais dos problemas do país, tais como a propriedade, a reforma agrária, o desmandos dos bancos, a questão energética, Petrobras, a justiça, o sistema penal, a dívida externa, não aparecem nos debates, como se a vida fosse se resolver apenas com a inclusão ritualística das chamadas minorias. Tudo acomodadinho dentro dos limites do capital. Falta pegada revolucionária, falta demais.

É certo que ainda há quem observe os tempos criticamente e lute, ainda que sejam poucos. Mas, como sempre foi na história, basta que esse pequeno grupo se mantenha em batalha para que seja possível um amanhã de luz. Ainda assim, será preciso muito trabalho para reconstruir uma estrada pela esquerda.

O próximo ano vem aí e certamente ainda teremos muitos processos de destruição e violência contra o povo brasileiro que se aprofundarão vertiginosamente conforme as eleições forem chegando. Não esperemos uma “festa democrática”. Não.  A peleja será encarniçada e o jogo será o mais sujo e violento possível. Tampouco se vislumbram propostas de real transformação. Por isso há que se manter alerta e em luta. Ainda que não haja ação por parte das históricas centrais sindicais, a realidade material da vida haverá de cobrar ação das gentes. 

Não há paz para a classe trabalhadora. Mas como diria o utópico Dom Quixote, contra os gigantes, vamos travar uma longa e feroz batalha. Nós o faremos. 



quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Te recordo, mãe



A mãe não era bolinho. Apesar de odiar levantar cedo, quando éramos crianças ela não se furtava a ser a primeira a saltar da cama para nos fazer o café. E não era coisa pouca não. Todas as manhãs ela nos obrigava a comer um bife com ovo, além de café com pão e polenta, o que causava sempre muita reclamação entre nós. Poxa vida, era muita coisa. Mas, por fim, mostrava-se sábia, porque com tanta comida no bucho, quando dava a hora do recreio ainda não tínhamos fome, então não se gastava com lanche. Na família temos inúmeras histórias hilárias daquelas manhãs. 

A mãe também gostava de música e suas preferências eram o mexicano Miguel Aceves Mejia, e os brasileiros Agnaldo Timóteo e Ângela Maria. No cinema, adorava o Cantinflas. Nunca soube o porquê dessa paixão pelos mexicanos, mas herdei isso dela e ainda hoje nas minhas listas de música, lá está o Miguel Mejia. Ela também adorava varar as noites vendo filmes na televisão e era apaixonada por jogos de basquete. Vai entender. Era minha parceira segura para ver filmes de vampiro. Nascida e criada nas planuras do Japejú, em Uruguaiana, ela se casou com 22 anos, sem amar o meu pai. Amava mesmo era um garoto que conhecera num trem quando tinha 15 anos. Mas, por conta de obscuras tramas protagonizadas por minha vó, esse amor não vingou. As cartas do jovem eram destruídas quando chegavam. 

E, pensando ter sido esquecida pelo garoto, ela aceitou o destino imposto pela mãe. Carregou esse amor dentro dela por toda a vida, e fez dos filhos sua razão de viver. Quando a vida exigiu, não se achicou e lutou como uma leoa para defender a família. Era nosso pilar principal. Nosso sul. A tristeza lhe consumiu e o fato de ter de sair do Rio Grande abriu feridas profundas. Não por acaso teve tuberculose, a doença da tristeza, e seu pulmão foi minguando dia após dia longe do pago que tanto amava. Tinha mania de limpeza e mesmo quando proibida pelos médicos de qualquer esforço, vez em quando era pega em cima de uma mesa, limpando os lustres ou janelas. 

Também fazia questão de plantar as próprias verduras, mantendo uma horta por toda a vida. Morreu num começo de tarde de fevereiro, deixando um bolo assado no forno. Ela me ensinou a costurar, a cozinhar, a amar as plantas, fazer crochê, tricô, pintar tecido, fazer pudim. Ela tinha orgulho de mim, por eu ter desafiado o destino e ter ido atrás do meu sonho, coisa que ela não fez. Ela dizia que eu tinha o mesmo dentinho torto do seu amado Paulo. Ela me fazia rir e sua voz docinha no telefone, depois que sai de casa, me salvou a vida muitas vezes. 

Num dia como hoje, em 1932, ela nasceu e trilhou seu caminho com simplicidade, ternura, melancolia e força. Eu a reverencio ouvindo suas músicas preferidas e agradecendo, muito e muito. Tenho certeza de que ela está sorrindo, lá na casa da beleza. Feliz aniversário, doce e querida Helena. Te amo e sinto tua falta, embora nas noites de tormento escute sempre a sua voz dizendo: tô aqui, filha.



quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Gildo, o renascido



Era uma manhã de domingo, em Passo Fundo. Um encontro de ex-colegas da TV Umbú, uma turma que marcou época na cidade, na década de 1980, tanto na publicidade quanto no jornalismo. Era uma manhã de festa, mas também de tristeza, porque poucos dias antes tínhamos recebido a notícia de que um de nossos mais queridos companheiros havia morrido. Naquela manhã em meio aos risos e a alegria do reencontro, encontramos um momento para, de mãos dadas, rezar e chorar pelo nosso amigo morto. Depois, abrimos os trabalhos com a mais gelada, porque essa era também uma parceira do amigo que pranteávamos. 

O morto era o Gildo Lima, moleque magricela e risonho, que fizera parte da nossa vida de maneira indelével. Um Saci Pererê de duas pernas, uma explosão de alegria, um dançarino inigualável, um parceiro de noitadas e de segredos. Cada um de nós tinha uma boa história com o Gildo. No que me dizia respeito eu perdia um irmão, porque naqueles tempos em Passo Fundo construímos uma amizade profunda e imorrível. Com ele, Bozó, Kapa e Gilmar, formávamos um quinteto inseparável no dia a dia da TV. Depois, quando a mão descia o cartão-ponto já no começo da noite, partia o quarteto – sem o Gilmar, que não era da farra – para a noite passofundense. O ritual era diário. Trabalhávamos 12, 15 horas, e de noite saímos para comer X-burger . Depois, íamos beber no Bar do Osvaldir. Lá, a dupla Osvaldir e Magrão, oferecia suas canções em apresentações ao vivo. E nós emborcávamos todas, cantando as maravilhas do nosso Rio Grande do Sul. Quando lá pela madrugada o bar fechava, a gente se mandava para a boate Chaplin, onde tomávamos conta da pista dançando até quase morrer. Nunca pude saber como a gente conseguia, na manhã seguinte, estar serelepes e renovados para mais um dia de trabalho. 

Nos finais de semana, como se não fora pouco, a gente fazia parte do grupo que ia jogar futebol nos bairros da cidade ou em cidades do interior, próximas a Passo Fundo. De novo, a farra e a bebedeira. Eram os anos 80, vida louca total.

Assim que a notícia da morte do nosso amado simplesmente nos derrubou. 

Mas, pouco tempo depois surge a notícia: “o Gildo não morreu, ele tá vivo”. Bah, loucura total. Partiu todo mundo a procurar pelo magrinho, saber onde ele estava, que papo fora aquele de morte e tal... Não demorou muito e finalmente encontramos o Gildo, lindo e vivinho da silva muy campante em Ponte Serrada, Santa Canarina. O negro-gato, nosso saci Pererê, moleque de sete vidas. Vivaço. Foi uma explosão de felicidade.

Agora, há menos de um mês, ele e o Menguetti decidiram criar um grupo no uatizapi só com a velha turma da Umbú. E foi como se tivéssemos voltado aos anos 80 numa surpreendente máquina do tempo. Pois nosso ex-morto-agora-vivo é o dínamo que mantém o ritmo alucinante do grupo, com 800, 900 mensagens por dia, muitas vezes avançando a madrugada, tal como fazia nas noites calientes de Passo Fundo. Segue moleque, segue magrinho, segue cheio de risos e encantamentos. Nosso menino-feiticeiro. Vivo, para nossa alegria. 

Te amo, meu irmãozinho... E agradeço aos deuses por termos compartilhado caminhos.


O banheiro


Das lembranças mais impactantes que eu tenho da infância, uma é a do banheiro da casa da minha avó paterna, em Uruguaiana. Era impecável, tão absolutamente limpo que, creio, seria até possível comer na banheira. Sempre que eu entrava para tomar banho, ficava por minutos olhando cada parte, espantada com tanta limpeza. E mesmo tendo o tapetinho no chão eu ainda colocava minhas roupas usadas para pisar em cima, com medo de sujar. Saia dali visivelmente incomodada por ter quebrado aquele aspecto clínico. Lembro como se fora hoje: não era um simples banheiro, era um quarto-de-banho, enorme, com azulejos rosados. Tinha uma imensa banheira, pia grande, um bidê e o vaso. Era possível dançar ali. Como podia ser tão impecável?

Claro, a resposta é uma só: minha avó tinha uma empregada, uma mulher que cuidava da limpeza do apartamento e também cozinhava. Minha tia era bem severa, e todas as manhãs mandava a mulher limpar o banheiro. Meu deus, como aquilo me incomodava. Porque não era um simples limpar, ela esfregava com escova todo o azulejo, a banheira, o vaso, a pia, o bidê. Todos os dias, todos os santos dias. Eu achava aquilo um verdadeiro absurdo. Seria mesmo necessário? Um trabalhão da porra. A lembrança daquela mulher e sua faina diária sempre me fez respeitar sobremaneira a profissão de empregada doméstica ou faxineira. Que troço danado de ruim de fazer.

Por fim eu cresci e, claro, vim a ter meu próprio banheiro. Obviamente que nunca fiz o que fazia a Dona Maria lá da vó. Por não ter muito tempo, por viver na correria, enfim, limpeza só aos finais de semana. Mas, como era de esperar comecei a perceber que banheiros sujam muito mesmo. Três dias sem limpar e lá já vem o mofo no azulejo. Que maçada. Por que raios temos que ter uma coisa assim? A limpeza deveria fazer o favor de durar pelo menos uns 15 dias. Trabalho enfadonho, chato, estraga-mãos. Claro que na minha juventude o banheiro vivia sujo, não digo suuuuuuujo, mas sujinho. Afinal, eu nunca tive uma Dona Maria e havia outras prioridades, como viver, por exemplo. 

Hoje, já passando dos 60, ainda me impressiono grandemente quando vou a uma casa e vejo o banheiro impecável. Que tipo de gente é essa? Provavelmente tem empregada, digo dessas que vêm todo dia, porque não é possível. E se a pessoa não tem quem lhe limpe o banheiro, mas ainda assim o mantém impecável, eu desconfio. Não pode ser normal. Ou é feiticeira ou vem de uma galáxia distante. Que gente estranha... 

Por isso que o melhor banheiro que já tive na vida foi o de uma casa na qual morei em Caxias do Sul. Nem a parede, nem o chão tinham azulejo, era tudo de cimento rootzeira, e o restante era feito de tábua sem pintura. O chão, mesmo, era incrível, porque eu não precisava de pedra pome para lixar o pé. Era só passar o calcanhar no cimento enquanto banhava e pronto, estava lisinho. Aquilo sim é que era vida...


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os zoínhos do pai


A hora de fazer o almoço aqui em casa é sempre uma espécie de festa. Se for o Renato quem cozinha, assim que as panelas começam a se mexer já começa também a música, no geral coisa bem boa: Paulinho Pedra Azul, Milton Nascimento, Expresso Rural, Grupo Engenho. Se for comigo a parada aí a música muda um pouco, gosto de ouvir os Fevers, Renato e seus Blue Queps ou os clássicos gaúchos. De qualquer forma, a música é de lei. O pai gosta de tudo. É fato que as que ele mais curte são as que falam de Uruguaiana. É só o cantor falar a palavra Uruguaiana e ele olha pra mim, sorrindo. 

É tempo também da tacinha de vinho que ele toma diariamente, golinho a golinho, enquanto briga com os cachorros. No geral ele fica sentado na poltrona, vigiando a gente. Qualquer barulhinho na geladeira ele espicha os zoínhos, observando se não tem algum petisco pra ele beliscar. Assim que temos de ter sempre à mão um ovinho de codorna, uma azeitona, um pedacinho de queijo. Ele marca cerrado. E se a gente estoura uma geladinha ele também quer. Fica ali, como se fosse o Vigilante Rodoviário, até que a última boca do fogão se apague. E, se descuidamos, ele mete a mão no pirex onde colocamos os legumes e manda bala. 

Quando tudo fica finalmente pronto ele senta e come como um rei. O apetite é perfeito. Encerrado o almoço, tem de ter um docinho e o cigarrinho pra pitar. Só depois dessa jornada ele senta no alpendre e tira um cochilo. Coisa rápida, os olhinhos cerrados, até que qualquer possível barulhinho suspeito na cozinha o desperte, à postos para novas comilanças. 

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Sobre quem me fez amar Florianópolis


 

Quando cheguei em Florianópolis passei muito perrengue. Não achava emprego em lugar algum, pois estava numa lista de "indesejados" que a RBS distribuia nos veículos. Trabalhei por uns seis anos nessa rede no Rio Grande do Sul e sempre estive vinculada ao Sindicato dos Radialistas, promovendo lutas , reivindicando etc.. Então, quando finalmente saí da RBT TV Passo Fundo para vir cursar o Curso de Jornalismo aqui na capital catarinense, imagino que foi uma festa para eles. Quem me contou isso foi o querido Ariel Botaro, que na época era diretor de jornalismo da RBS aqui. Ele falou que a ordem era não me contratar de jeito algum. Assim se fecharam as portas tanto na RBS quanto nas outras emissoras. Passei pelo menos um ano sem trabalho na imprensa e só consegui sobreviver graças a ajuda de amigos, alguns frilas, e a força que me deu minha amiga Lucimar Lara, que acabou vendendo as poucas coisinhas que eu tinha deixado em Passo Fundo, o que rendeu algum dinheiro. Além disso penhorei dois aneis de ouro que tinha ganhado da minha tia Terezinha pelos meus 15 anos.  Com isso, e com o RU, consegui me virar.

Lembro que aqueles dias eram de profunda frustração. Eu tinha de me concentrar nos estudos, e ao mesmo tempo fazer malabarismos para sobreviver. Foi duro. E, naquele período, o que me dava forças para seguir em frente no meu sonho de fazer faculdade era o escritor Flávio José Cardozo, que eu lia no Diário Catarinense. Ele tinha uma coluna diária de crônicas. Eram textos tão lindos que me enchiam de esperança. Eu queria ser como ele, ser capaz de narrar a vida com aquela delicadeza. Suas crônicas sobre a cidade iam também me fazendo amar esse lugar, tamanha a beleza que ele fazia brotar no seu texto. 

Eu morava numa pensão perto da UFSC e todas as manhãs eu levantava cedinho e ia direto para a BU ler a crônica do Flávio antes das aulas. Eu sabia que aquela maravilha que ele criava iria me ajudar a permanecer firme no meu propósito. E assim foi. Passei o primeiro ano, o segundo, consegui emprego, fui me virando e finalmente terminei a faculdade. Fui sua leitora fiel até o último dia dele no DC. Depois comprei seus livros para que eles ficassem sempre na minha cabeceira e quando eu fraquejava, lá ia eu buscar sua esccrita para me animar. Ainda faço isso, sempre.

Nunca o conheci pessoalmente, mas eu o amo com tanta profundidade que é como se fosse um irmão, ou um pai, ou um amigo. Ele é o responsável direto por eu ter ficado aqui e ter me apaixonado por essa cidade. Por isso, hoje, quando escrevo sobre Florianópolis, essa minha Miembipe, eu procuro chegar pelo menos perto da beleza criada por Flávio. Não chego, eu sei, mas ele é meu sul. Serei sempre grata a ele por abrir esses caminhos para a alma secreta desse lugar. Te amo para sempre, Flávio Cardozo, e te reverencio... És grandiosos..um dos maiores da nossa literatura nacional... obrigada.



domingo, 7 de novembro de 2021

O pai


 

O Alzheimer é doença triste, porque, ao fim, não tem cura. Não tem um remédio, nem terapia, nada. Tudo é paliativo e a sentença é cruel: as coisas só vão piorar. Então, cada fase que a pessoa vive nunca é o pior da coisa. O pior sempre está por vir. Penso que isso é o que é mais duro de aceitar. Até porque não somos um tanque de guerra e, vez em quando, fraquejamos. Há que dispender muita energia para se manter firme, alegre e propositiva. Momentos há que tudo o que queremos é desabar. Mas não dá. E esse movimento de se manter de pé, exige.

Mas apesar de tudo isso, há também os momentos de puro encantamento que, penso eu, são os que ficarão na memória, lembrados sempre com ternura infinita. Emociona-me demais o nível de confiança que o pai põe em mim. Ele simplesmente se entrega, sem receio algum. Ele simplesmente sabe que de mim não virá nada de ruim, só de bom. E mesmo quando ele fica irascível, como na hora de trocar de roupa, ele sabe. 

Todas as noites é o mesmo ritual. Tenho de fazer mil e uma peripécias para levá-lo para o quarto na hora rotineira. Assistimos ao jornal, à novela, e depois, caminha. Lá, tenho de deixar ele se ambientar. Ele anda pelo quarto, mexe em tudo que há, revira cama, o diabo. Depois vem a hora de trocar a roupa e colocar a fralda limpa. Aí há que se agarrar com todos os santos. Eu distraio ele o mais que posso e quando ele finalmente decide sentar, eu tenho que puxar, num movimento rápido, a calça, porque ele se recusa a tirar.  Aí ele senta, mas fica xingando até a minha última geração. Briga, reclama, manda alguns tapas — dos quais me esquivo como uma ninja — e chora de mentirinha, pra me compadecer. Eu vou deixando ele fazer tudo isso ao mesmo tempo que, conversando, tiro a calça, a fralda suja e a sandália. Ponho a fralda limpa e preparo para a segunda parte que é fazê-lo levantar, para realizar a limpeza das partes.  Aí valei-me, São Pancrácio! É a terceira grande guerra mundial. Feito tudo, ele se acalma. Eu beijo sua carinha sapeca e digo:

- Pai, tu sabes que eu faço tudo isso porque eu te amo, né?

E ele, com cara de surpresa.

- Mas é claro que eu sei, ora bolas...


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Pezinho



Hoje do nada, acordei em lágrimas. Não tinha lembrança de sonho, nada. Só aquela sensação de profunda e desesperada tristeza. Ouvi ao longe o miado da Juanita e então soube o porquê daquele sentimento. Meu Pezinho encantou. Não voltará mais. Pezinho é meu gato, que compartilhava a vida com a gente desde há 12 anos. Nasceu da Bartolina, cinza, com as patinhas brancas, daí seu nome: Pé de Pano, vulgo Pezinho. Ele sobreviveu a muitas aventuras, como a perda do rabo, várias infecções urinárias, internações hospitalares e lutas com o cachorro do vizinho. Era gato rueiro, sempre dando suas voltinhas, mas seu porto seguro era aqui. 

Quando o Fabricio, menino vizinho, me entregou sua cachorra Mel, com quatro filhos, ele não gostou muito e começou a se afastar. Ainda assim quando a Chiquinha – filha da Mel - ficou paralisada, ele ficava ao seu lado, pesaroso. Depois que ela morreu, Pezinho decidiu buscar outra casa. Então, vivia na casa de um vizinho da frente, mas vinha fazer as refeições aqui. De manhã, lá pelas dez horas, já se ouvia o seu miado incessante, dizendo: cheguei, corre lá botar a ração. Comia e se esparramava na mesa, dormindo tranquilo. Ficava até o final da tarde, comia de novo e se mandava. Dormia na outra casa. Vez em quando concedia a sua presença, miando alto na porta do quarto do Renato, pedindo para entrar. Enfim, era um gato, soberano e majestoso gato. 

Aceitava abraços e beijos como se fosse um deus e lá de vez em quando, sem alarde, subia no colo da gente, dormindo, tranquilo, enquanto ficávamos paralisados para não incomodar. Pois já faz algumas semanas que ele não aparece mais. Na primeira, pensei: Pezinho tá demorando, mas já vem. E ficava esperando pelo seu miado urgente. Todas as manhãs espiando a rua e nada. Tudo bem, ele já havia ficado duas semanas sem aparecer e depois surgira, impecável. 

Esta manhã percebi que já se passaram quatro semanas. Ele não vai voltar. Deve ter encantado, virado poeira cósmica. Foi-se no silêncio, sem alarde, sem adeus. A casa fica mais triste sem ele e eu só posso mesmo chorar. Sei que ele está no céu dos gatos deitado em alguma almofada quentinha, entreabrindo levemente os olhos enquanto eu choro, e pensando, com um muxoxo: humanos, tão sentimentais. Gracias, Pezinho, por tantos anos de presença... Bem-vindo a casa da beleza.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Devagar, lá se vai a cidade



Passo pela via expressa sul todos os dias em direção ao trabalho. Não gosto daquela via rápida, que nos impede de ver. Sempre preferi a Costeira, com seu velho cais, com a visão das moradas e as figuras dos personagens diários que assomam: o velhinho limpando a calçada, o papai-noel, a senhora à janela, os cachorros. A cidade descortinada no seu existir humano. Mas, o busão vai na Expressa e tudo o que posso fazer é olhar o vazio que se forma em volta. Não é de hoje que eu digo ao meu companheiro: “não vai demorar e estão vendendo tudo isso aqui, como fizeram na beira-mar”. Digo isso com profunda tristeza porque o que pode se erguer ali são prédios de alto padrão. A vista para o mar outra vez retirada das gentes comuns. 

Pois a semana passada li o veredito que me assombrava: o vazio artificial criado pelo aterro da expressa sul vai ser vendido. O prefeito Gean fala em “revitalização”, palavra bonita que significa entrega do que é público para a iniciativa privada. E a proposta é incluir o vazio do aterro num tal de programa pioneiro do governo federal – provavelmente um desastre - que busca vender as terras da União que consideram “subutilizadas”. A venda será feita por intermédio de um fundo imobiliário, coisa que cheira mal. A proposta vem da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia e, considerando que o governo federal está aí para destruir tudo, já se pode prever a desgraça.

As bocas-alugadas da imprensa já começaram a campanha em favor da proposta, alegando que a Expressa Sul precisa ser melhorada. Os vereadores – na sua maioria  - já se preparam para as mudanças no zoneamento e tudo o que isso traz, como o esfacelamento do Plano Diretor. Em março desse ano a mesma Câmara aprovou um total de 100 milhões de reais para a prefeitura usar em obras de infraestrutura na via, claramente ajeitando o espaço para entregar ele mais bonitinho para os empresários. A cidade ficará encalacrada com o empréstimo. E quando se diz cidade, diz-se nós, os moradores. Ficaremos com o ônus e ainda perderemos o patrimônio público. Obviamente que ninguém fala em parques ou espaços de lazer para as comunidades do entorno – a maioria suspensa nas encostas onde quase nada existe para a brincadeira e a fruição. Não. As vendas certamente serão para grandes empreendimentos imobiliários ou de eventos, afinal, para essa gente que governa, os empobrecidos tem mais é que trabalhar e dormir. Lazer é pra quem pode e afinal, tem a praia. 

O que me espanta é que tudo isso vai acontecendo sem reação. Nas redes sociais criam-se grupos que lembram uma Florianópolis de ontem, mas poucos se preocupam com a de hoje, que segue se transformando sob nossos olhos atônitos. Sei que as mudanças são inexoráveis, mas elas não precisam ser para pior. Há milhares de exemplos de cidades que conseguem mudar sem perder sua essência. 

E aqui? Que faremos? Só nos restarão as lágrimas?

***

Deixo aqui a imagem que plasmei na retina quando as dragas começaram a estender a costeira. Um profundo momento de dor: 

Assisti ontem uma triste cerimônia de adeus. Parei em frente a grande obra da Via Expressa Sul com os olhos perdidos na areia branca, que aos poucos vai nos roubando o mar. Tinha dentro do peito uma certa angústia, destas que batem, inexoráveis. Não sou engenheira ambiental, ainda não sei detalhes sobre a obra, mas uma coisa eu sei. É como se estivessem assassinando a beleza. Algo soa mal ali, principalmente no pôr-do-sol.

Refletia sobre isso e mastigava minhas mágoas quando meus olhos bateram num homem, distante de mim alguns metros. Ele também olhava a obra. Tinha o rosto vincado de sol e de mar, destes rostos que não se pode adivinhar a idade, só a profissão. Era um homem do mar, um pescador. Ficou parado por uns minutos eternos, petrificado diante da areia branca. Depois, lentamente, caminhou em direção da lama preta, velha conhecida, que fica próxima aos ranchos de pesca já em demolição.

Então começou a cerimônia. Arremangou até os joelhos as velhas calças de um tergal gris, bem desbotado. Tirou os chinelos de borracha e foi entrando na lama, pisando devagar, quase em reverência. Com os pés enterrados na sujeira do mar ele foi caminhando pra lá e pra cá. Os olhos baixos, olhando o chão, se despediam. Depois, o pescador caminhou em direção à água, já distante. 

Quando seus pés encontraram o salgado do mar ele parou e volveu os olhos para a grande draga que continuava seu trabalho, jogando areia branca, engolindo a água que por muito tempo, com certeza, embalara o seu barco. Ficou ali parado, olhando fixo, parecendo fazer força para acreditar que aquilo tudo não era um sonho. Então voltou pelo mesmo caminho, os pés enterrados na lama, os olhos de novo no chão. Chegou ao meio fio e sentou sem pressa. Foi quando eu vi. Lágrimas corriam fininhas pelo meio das rugas de sol e mar.

Era um homem dizendo adeus a um mar que foi seu abrigo por décadas. Um pescador chorando esses choros sem barulho, por isso mais dolorosos. Olhei de novo para a obra da Expressa Sul e já comungando da mesma dor com aquele homem, pensei: Qual é o preço do progresso? Do conforto? Se forem as lágrimas daquele homem, não sei se vale a pena. Não tive coragem de lhe falar e fui embora com um indelével sentimento de culpa. Quando o ônibus no qual eu ia passou pelo homem, ele continuava ali, sentado no meio fio, os pés sujos de lama e o rosto crispado de dor.

20.09.96

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Mil noites no Brasil


Faça o que fizer nada vai impedir que o país sangre até o final deste mandato. Negacionismo, descaso, perversidade. O governo em tela passou por uma pandemia dizendo que era uma gripezinha. Não preparou o combate. Milhares morreram por isso. Não havia leitos, nem oxigênio, nem remédios, nem respiradores. Na Amazônia e no pantanal, a vida ardia em labaredas criminosas, abrindo caminho para o latifúndio jagunço. E quando a vacina chegou, o mandatário foi à televisão e às redes sociais dizer que não era para tomar, porque as pessoas iriam virar jacaré. Para os que queriam a vacina restou a espera e a confusão. Sem um sistema eficiente de compra e distribuição, cada estado teve de se virar como pode. 

A produção de remédios, que sempre foi ponta de lança no país, vai minguando. O governo federal retirou a verba. Danem-se os doentes de doenças graves que dependem do público. Não há mais produção de remédio para o câncer, por exemplo. Milhares de pessoas foram entregues à própria sorte. Que paguem aos laboratórios privados, na farmácia, se puderem. Se não puderem, bem, morrer faz parte. Testes de Covid, vacinas e remédios de toda ordem mofam nos depósitos, trazendo prejuízo de milhões aos cofres públicos. Responsabilidade de quem? De ninguém. Ou quem sabe de algum funcionário de décimo escalão. 

Ministro da Saúde vai à televisão dizer que não é pra vacinar adolescentes, que “estudos” dizem que não é seguro. Todas as entidades de saúde do país desmentem o ministro e os governadores decidem seguir com a vacinação. Dias depois o mesmo ministro viaja com a comitiva presidencial para a ONU e infecta deus e o mundo, com Covid. Fica de quarentena em Nova Iorque, enquanto o interino aqui volta atrás e diz que pode vacinar os adolescentes, sim. É um deus nos acuda, um caos sem fim. As pessoas ficam perdidas sem saber em quem acreditar. O presidente segue dizendo que não é pra vacinar, mas a primeira-dama se vacina em Nova Iorque. De certo acredita que a vacina nos EUA é mais vacina que aqui. Aqui, o Instituto Butantã continua sendo atacado e vilipendiado. É brasileiro, é público. 

Os preços do gás, da gasolina e da comida dispararam. A culpa de tudo foi repassada aos governadores, os vilões da hora. Tudo de ruim é coisa do governador e o que pode haver de bom, se é que há, o governo federal é o responsável. 

A fome volta a assombrar o país e as mortes seguem em disparada. Já vamos chegar aos 600 mil óbitos, só de Covid, sem contabilizar as demais mortes que sobram com o descaso. Muita gente não quer se vacinar, seguindo o mito, impedindo assim a imunidade coletiva.

Na CPI da Covid, levada pela Câmara dos Deputados, os horrores se acumulam. Provas e mais provas da sistemática política de morte não provocam qualquer efeito. Os depoentes falam, contam os crimes e saem lépidos e soltos. Há os que nada dizem, mas as provas falam. E, ontem, o depoimento da advogada dos médicos do plano de saúde (?)  Prevent Senior escancara mais um trem dos horrores. Velhos sendo usados como cobaias do tratamento precoce, com remédios inúteis, sendo privados do oxigênio, para não gastar. E sem consentimento. 

Nas comunidades empobrecidas a força policial segue matando gente negra. Os indígenas são assassinados à luz do sol, não há emprego, as universidades amargam cortes de orçamento e o presidente diz que “há professores demais”. Ainda assim, tudo parece seguir normal na Gottam City. Batman morreu de Covid. 

Toda essa montanha russa de terror deveria levar as gentes ao protesto, à luta. Mas, não. As movimentações populares ainda são poucas e esporádicas. Os apoiadores da morte saíram às ruas no dia sete de setembro saudando o mito. Os trabalhadores estão prometendo um ato bem grande agora, no dia 02 de outubro. Mas, ainda assim, ao que parece, seguiremos sangrando até 2023, quando finalmente terminar esse governo. Os partidos políticos, liberais de esquerda, apostam nas eleições de 2022, e esperam por elas, ainda que ao redor se queimem as vidas das gentes, clamando por socorro. 

Enquanto isso, o ministro da Economia, intocável, segue fazendo suas trapalhadas de morte, elevando as taxas de juros, com o dólar a quase seis reais e passando as pautas meninas dos olhos da classe dominante, como a reforma tributária e o fim do serviço público. Tudo com o apoio da maioria do Congresso Nacional, cujos legisladores, saltitantes, aprovam sem pejo as propostas. 

É inacreditável que tenham se passado mil dias, mil noites... Inacreditável que tenhamos tolerado isso. 

No mundo das histórias de fada, quando se fala em mil e uma noites está se querendo dizer para sempre. No Brasil, passaram-se mil noites, passarão mil e uma? 


terça-feira, 28 de setembro de 2021

As aprontações do pai



Nos últimos tempos o pai tem dormido bem pela manhã. Dá uma acordada lá pelas seis, quando eu levanto, mas logo volta a dormir. Só quando tenho algo importante pra fazer é que ele resolve acordar cedo, comigo. Parece que ele adivinha. Eu não digo nada, mas é só pintar algo que exija minha mais profunda atenção e lá está ele. Hoje foi assim. Tinha o compromisso de fechar um texto e deixei para a manhã, que é quando estou mais focada. Pois nem deu seis horas e ele já estava de pé, mexendo em tudo pelo quarto. Tentei fazê-lo voltar a dormir, mas não deu resultado. Vencida, tratei de deixar pra lá o trabalho e começar as tratativas do levantar. Conversinha, banho, conversinha, colocar a fralda, conversinha, vestir, conversinha, levar para o café. Depois, o café. Uma boa novela. 

Lá pelas oito e meia as coisas estavam acalmadas. Dei um cigarro e comecei a ajeitar o cenário para começar a trabalhar. Ele, como sempre, inquieto, andando pra lá e pra cá, numa briga com o cachorro. Ele levanta da poltrona, o cachorro sobe. Aí ele quer voltar e o cachorro não deixa.  Um roteiro repetido milhares de vezes. 

Por fim, começou com o vai e vem até o portão. Eu na mesa da cozinha, escrevendo, mas com um olho vigiando a caminhada através da janela. Ficou assim um tempo, então parou do lado do varal de roupas que eu havia colocado ao sol. Segui escrevendo, observando pelo rabo do olho que ele estava ali, bem em frente à janela, mexendo nos grampos de roupa. Segui entretida até que notei que ele estava muito paradinho, quieto demais, parecia nem estar mais mexendo com os grampos, mas seguia ali, ao lado do varal. Continuei meu texto.

Então, deu aquele estalo. Quietinho demais. Eu continuava vendo ele da janela, mas estava muito parado. Levantei correndo e fui lá fora ver o que passava. Pois ele estava ali mesmo, paradinho, com a mão segurando firme no varal, mas completamente adormecido, quase ressonava. O danado dormia em pé. Levei um baita susto, porque poderia ter caído. Acordei o querido e ainda levei um baita esporro. Brabo, não queria soltar o varal. Mais uma novela para sair dali. 

- Tu tá dormindo, pai.

- Tô dormindo nada.

Toca pra dentro para ver se senta na poltrona e sossega. Já são 10 horas. Então ele senta e imediatamente volta a dormir. O cachorro senta aos seus pés e também dorme. Assim vão os dois, parceiros no mundo dos sonhos, enquanto eu finalmente consigo escrever alguma coisinha.



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Reféns do global ou vítimas da bolha assassina



As notícias pululam fragmentadas e a imprensa olha de um jeito vesgo. Dezenas de artistas da Rede Globo estão sendo demitidos ou se demitindo. Alguns analistas de televisão falam em crise na emissora, outros falam de falta de coração, afinal, está se desfazendo de gente que deu sua vida ali na telinha. Nessa semana Lázaro Ramos deu adeus a 18 anos de Globo e Ingrid Guimaraes sai da emissora depois de 30 anos. Saem fazendo discursos emocionados enquanto abraçam as novas gigantes mundiais da comunicação. Pois o que se configura por trás de tudo isso é justamente a acomodação das forças comunicacionais mundiais. As novas tecnologias anunciam outras formas de se comunicar e as empresas locais terão dois caminhos: ou começam a se adequar ou morrem. 

No Brasil a televisão aberta ainda tem um grande espaço na vida das pessoas. Os números dizem que a Rede Globo segue liderando o mercado, apesar de ter perdido audiência. A média de audiência é de 15 pontos enquanto a segunda rede, a Record, tem 5 pontos, a diferença é grande. Não bastasse isso, a Globo é a empresa de comunicação de massa brasileira que está mais à frente no âmbito da tendência mundial, tanto que já tem um canal de streaming (transmissão direta por internet), a Globoplay, e tem produzido exclusivamente para esse nicho. 

Há quem diga que estamos vivendo o fim da era da TV aberta. A tendência agora é a transmissão por demanda. E, como temos visto, essa é uma área completamente dominada por empresas internacionais gigantes como a Amazon, a Netflix, a Disney, etc... A Globo quer surfar nessa onda e está testando se vai nessa sozinha ou se precisará se aliar a algumas dessas gigantes. 

Essa nova configuração das contratações também faz parte dos novos tempos. Foi-se a era da fidelidade dos atores a determinados canais. Agora eles também trabalharão por demanda. Podem fazer produções para a Netflix, para a Amazon ou para a Globoplay, sem um lugar realmente fixo, um emprego seguro. Terão de amargar a eterna busca de espaço num mundo sem regras. Até agora ser ator ou atriz é uma profissão regulamentada, a pessoa precisa fazer curso, ter registro. Mas, pode ser que isso também se esboroe. Quem acompanha o mundo televisivo está por dentro da tentativa da Globo em levar a celebridade instantânea do BBB, Juliette (32 milhões de seguidores no Instagram), para a novela Pantanal. Por enquanto, o sindicato dos atores está segurando, visto que ela não é atriz, mas até quando? Emprego, registro profissional, estabilidade, são palavras que vão perdendo o sentido no mundo do trabalho. Inclusive no serviço público, vide a PEC 32 que quer a volta do “quem indica”. 

Os tempos são sombrios para os trabalhadores e também para as empresas nacionais porque as gigantes estrangeiras estão abocanhando tudo. Muito em breve estaremos completamente reféns dessas empresas, vítimas das informações falsas, do pensamento único e da estética única. O Facebook está planejando até permitir a realização de transações bancárias dentro da plataforma, ou seja, a pessoa entra ali e não precisa mais sair para quase nada. 

O mundo distópico do grande irmão está cada dia mais presente.  O capitalismo aprofunda seu processo de dominação. 

Enquanto isso, a TV aberta – esta que chega a 97% dos lares – segue sendo a única opção de quem não têm condições de comprar os pacotes das diversas empresas de transmissão direta por demanda. Por isso, seguramente que ela não vai se acabar. Pode encolher, mas seguirá existindo. A Record, com seu nicho evangélico e suas novelas bíblicas, tentando levar o rebanho para os tempos fundamentalistas do velho testamento, e a Globo emburrecendo as gentes cada dia mais, com a profusão de programas idiotizados, como os de danças dos famosos, famosos mascarados, programas de calouros cheios de sadismo e de gente autocentrada, joguinhos entre artistas e dramas de humilhação dos pobres. Um show de horrores que segue o modelo dos shows europeus e estadunidenses com apresentadores engraçadinhos e sem cabeça. 

Um desafio imenso para quem quer um mundo onde o pensamento crítico seja soberano. Cada dia que passa vamos assistindo ao crescimento da “bolha assassina” das grandes empresas de transmissão por demanda, tal qual a gosma vermelha do filme de terror protagonizado e dirigido por  Steve McQueen, em 1958. No filme, a gosma não é destruída, é congelada e levada para o Ártico. E a fala final do “mocinho” prenuncia o nosso tempo. “Até que o ártico também siga congelado”. Pois parece que o Ártico descongelou e bolha está aí outra vez. 



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

As manhãs



Todas as manhãs são tumultuadas ao extremo. Acordo seis horas para ter um tempinho com meu amor e depois começar a trabalhar, antes do pai acordar. É quando eu posso me concentrar. Depois que ele acorda a coisa fica difícil. Tem todo o ritual do despertar que demoooooora. Depois, o café. Quando ele está bem, toma sozinho, mas se acorda meio virado aí eu tenho de dar pouco a pouco. Vai um eito. Quando tudo se acalma de novo, volto ao trabalho.

Mas, aí, vem a confusão com os cachorros. O Steve Biko, que já é velhinho, é cismado com uma poltrona. Ele gosta de deitar naquela e ponto final. Se o pai está nela, ou algum outro bicho, ele inicia um circuito de latidos sistemáticos e insuportáveis até que eu levante e vá resolver o assunto. Não tem como ignorá-lo. A menos que eu queira enlouquecer. Se quem está na cadeira é a Mel, tenho de convencê-la a ficar em cima da cama, para que não fique também incomodando o pai, tentando subir nele. É um parto. Já o Dourado é tranquilo. Se ele vê o Steve enchendo o saco, por sua própria vontade sai da cadeira e vai deitar no tapete. Não sem antes me olhar como a dizer: que chato!

Lá pelas onze horas é a vez de chegar o Pezinho. Ele dorme em outra casa e só vem aqui pra comer. Quando ele chega, já sabemos. Antes mesmo de pular o muro ele já começa a miar alto, como se estivesse em grande perigo. Na verdade é seu miado de dizer: ei, estou chegando, arruma o rango aí. Lá vou eu arrumar a ração. Depois de comer ele vem pra cozinha, onde estamos todos  e exige o leitinho. É seu ritual. Já deixo pronto em cima da mesa. Ele vem, sobe, come e se manda de novo. A Ramona é de boa, se aboleta no espaldar da poltrona do pai e fica ali, dormindo junto com ele. A Juanita nem se toca, gosta de ficar distante e não incomoda ninguém. 

Quando chega a hora de começar o almoço tá todo mundo ajeitado no seu lugar. Já eu, tive de passar por pelo menos 500 situações de estresse. Valamideuzi. Quando então tudo parece se acalmar, o pai acorda do cochilo e começa o mexe-mexe. Ontem achou os óculos escuros do Renato e o colocou sobre o seu. 

- Tás enxergando, pai?

- Tô vendo tudo.

- Mas não tá escuro?

- Tá muito bom. 

Então tá!

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Segue o "bonde" da destruição


Foto: 
@marcelanicolass

Em meio a grave crise econômica e social, pirotecnia governamental busca ofuscar realidade

O presidente do país segue governando na lógica do factoide, imitando seu ídolo Donald Trump. Parece não ter se dado conta do que aconteceu lá na matriz que tanto ama. A tática do factoide não deu certo. Trump foi derrotado fragorosamente. Por aqui, os marqueteiros do presidente continuam incentivando a mesma toada que, ao que parece, só serve mesmo para animar a sua plateia cativa. Foi o que se viu.

As chamadas “lideranças” dos atos que visavam invadir o STF e cortar a cabeça do ministro Alexandre Moraes foram presas, responderão na justiça e provavelmente serão abandonadas para que se virem como possam. Milhares foram para Brasília armados da esperança de que os comunistas finalmente seriam eliminados – física e politicamente. Era de impressionar os áudios e vídeos que circulavam pela rede bolsonarista sobre estocar comida, remédio, água e trancar as janelas porque a coisa seria estrondosa. Não foi. O que se viu foi um discurso pífio, tentando reanimar a claque para outro “amanhã”. O golpe seria adiado e fora só um susto no ministro, o qual não será mais obedecido “sob hipótese alguma”.

Os seguidores mais renitentes voltaram para casa ainda sob o efeito da catarse, prontos para a nova investida que virá quando o presidente chamar. Outros voltaram desiludidos. Esperavam o apocalipse, ainda que no momento em que a polícia atuou, muito gentilmente, aliás, gravassem vídeos desesperados em meio à correria, gritando que era um absurdo a polícia tentar impedi-los de chegar ao STF. Estranha gente que pede ditadura e sequer entende o que isso possa significar.  

O Brasil esperou o desenrolar dos fatos. Uns com medo, outros comendo pipoca em frente à televisão e uma grande parte em luta, nos atos de protesto contra a carestia da vida e a falta de um governo para enfrentar os grandes dramas nacionais como a fome e as crises hídrica e energética. As redes de televisão deram visibilidade para as manifestações dos dois lados e foi possível avaliar com bastante informação as duas frentes de batalha. Os atos pró-governo foram grandes em São Paulo e Brasília, mas também deixaram claro sobre quem são esses aliados, na sua maioria uma classe média alta que sequer consegue enxergar os efeitos desse governo sobre si mesma. Por outro lado, nas colunas dos protestos estavam os trabalhadores organizados, a juventude, os estudantes, os sem-terra, os sem-teto, enfim, os que sempre estiveram na luta. A luta de classes bem demarcada nas ruas.

O chefe de governo, que tem mais de 100 pedidos de impedimento no Congresso, fez o que sabe fazer. Esticou a corda mais um pouco. Até agora tem nadado de braçada, sem que nada ou ninguém o obstaculize. As chamadas instituições democráticas fazem ouvidos moucos aos seus ataques à Constituição e permitem que a roda da economia siga girando em favor da classe dominante. Os trabalhadores vão sendo acossados, as privatizações seguem, o agro comanda e tudo parece bem. O judiciário fisga peixinhos enquanto o líder do cardume segue tranquilo. Nada lhe toca. A fascisitização do governo é pop nas altas rodas. 

O sete de setembro foi uma patacoada. Mostrou que o governo perdeu apoio e apenas mantém seu reduto inicial formado por ultraconservadores e reacionários de carteirinha, bem como outros que ingenuamente acreditam nas mentiras disseminadas à exaustão sobre o comunismo e blá, blá, blá. Mas, ainda assim é uma parcela barulhenta e em sistemático estado de agitação. As forças de esquerda, as institucionalizadas, agiram com timidez. Como sempre, são os trabalhadores os que se movem para além dos líderes. Esses sabem que muito pouco têm a perder indo para a luta nas ruas. E, por isso, vão. 

A aprovação do presidente despenca. Mas, ele tem cartas na manga, não nos enganemos. Enquanto a burguesia nacional não se descolar dele, ele seguirá esticando a corda para garantir mais um mandato. A turma do andar de cima ainda está ganhando muita grana e vê passar muitas de suas pautas anti-trabalhadores no Congresso Nacional. Para eles, tá suave. 

A batalha real será mesmo nas ruas. E os trabalhadores organizados devem dar o tom. 


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O pai e as surpresas


Uma das coisas mais seguras nessa doença de Alzheimer é o mexe-mexe nas coisas. Uma ansiedade por abrir portas, gavetas e mexericar em tudo. Aqui é assim. O pai almoça e dá uma descansadinha no sofá. Fica ali vendo TV ou olhando para a janela. De repente, do nada, ele se levanta e sai. Caminha ligeirinho em direção ao portão. Pode fazer o tempo que for, inclusive chuva. Ele se manda. Depois de mexer no cadeado do portão, sem sucesso para abrir, ele volta. Ai começa o abre fecha de tudo que há. Gavetas, armários, fogão, geladeira. E ai de quem diga alguma coisa ou o impeça. Tem que deixar fuçar. Eu fico de longe só observando se ele não vai pegar alguma coisa de vidro ou derrubar algum pacote aberto. 

Nisso ele fica um tempo. Pega as panelas em cima do fogão e bota na mesa. Tira da mesa, bota de novo no fogão. Fuça no lixinho da pia. Geralmente deixo uns saquinhos pendurados nos pegadores das portas dos armários com coisa que ele pode comer como pão, frutas, biscoitos. Ele pega os saquinhos e sai de fininho, achando que está me enganando. E eu fico bem quietinha. É um joguinho de gato e rato que pode durar horas. Ele até dá uma paradinha para o café, mas logo retorna ao mexe-mexe  e esconde-esconde. 

Quando chega a hora de dormir é hora de finalmente recolher as surpresas. Dentro dos bolsos encontro cada coisa. É controle da televisão, cartas, pedacinhos de dominó, bolinhas, banana, pinhão, cascas, pedaços de pão, colheres, pedacinhos de papel, garrafinhas de molho, panos de prato, canetas, lápis de cor, prendedores de roupa, latinhas,  caixinhas de remédio e até cabeças de alho. Também já achei uma caixinha de Maisena. Tudo isso ele vai amealhando ao longo do dia. Eu vou trocando a roupa dele e encontrando os “mimos”. E tenho de esconder debaixo da cama senão ele quer pegar de volta. Tem alguns aos quais ele se aferra e aí não tem jeito. Há que esperar adormecer para tirar da mão. Geralmente são panos de prato ou saquinhos plásticos.

A vida dele gira em torno dessas insólitas e prosaicas atividades. Pode parecer que ele está fechado em mundinho pequeno. Mas, não. Nessas colheitas de pequenos objetos, no vai-e-vem no quintal, nas espiadas por cima do muro, nas conversas com o Rolando Boldrin e no diálogo com os cachorrinhos existem universos inteiros que podem ser incompreensíveis para nós, mas que o enchem de alegria e serenidade. E é assim que seus dias passam, na paz.



Fenaj quer mitigar danos aos jornalistas. Esse é o caminho?



Participei de uma discussão chamada pela Fenaj na qual os seus dirigentes apresentaram uma proposta que me deixou boquiaberta: a taxação das grandes plataformas. Oi? Confesso que me esforcei. Mas não entendi. Então, fui buscar mais informações no sitio da minha federação e lá estava a manchete, assim, sem pejo: “FENAJ apresenta proposta de taxação de plataformas digitais como forma de mitigar danos causados ao jornalismo”. Oi? Como assim, meu deus? Mitigar os danos? 

A Fenaj era para ser uma federação de sindicatos, logo, deveria atuar numa pegada sindical. Mas, não é assim. Já faz algum tempo que a Federação dos Jornalistas atua mais como um espaço de trabalhadores liberais. Tanto que é a Fenaj quem tem feito a campanha pela criação de um Conselho Nacional de Jornalistas, que seria algo assim como um espaço de fiscalização da profissão, típico das profissões liberais, como médico, engenheiro, contabilista, etc...

Sempre acreditei que os trabalhadores da comunicação deveriam se unificar em um sindicato único. Não faz muito sentido ter um sindicato de uma categoria que não se sente trabalhadora. No nosso caso, jornalistas, temos avançado muito para essa forma de ser que é a pessoa pejotizada. Ou seja, não é trabalhador, porque não assalariado, mas também não é patrão, porque precisa da empresa que o contrata de forma terceirizada. Logo, tá sempre numa espécie de limbo identitário. 

Já fui contra o Conselho Nacional de Jornalistas justamente porque, se ele existisse, o sindicato dos jornalistas seria algo totalmente inútil e eu acreditava que os jornalistas poderiam, sim, ter um sindicato que fosse um instrumento de luta dos trabalhadores desse fazer. Hoje não me oponho mais. Observo que cada vez mais os jornalistas vão se distanciando da ideia de ser trabalhador. Vivemos um tempo de pessoas-projeto, de empreendedores, e os poucos que ainda estão nas galés (mídias comerciais, sindicatos e instituições), portanto, com patrões, acabam se determinando no conjunto do grupo onde estão inseridos. O sindicato dos jornalistas fica inútil. Não que isso seja “culpa” dos jornalistas. É que o tempo histórico, que constituiu outras ferramentas de comunicação, tem destruído a profissão e ao mesmo tempo não há qualquer proposta revolucionária que garanta a construção de outra realidade.

Agora, ao me deparar com essa campanha da Fenaj pela taxação das grandes plataformas, tenho fortalecida essa sensação de que a profissão de jornalista se esboroa.

A ideia é tirar das grandes plataformas de dados e informação – que hoje matam o jornalismo – uma grana, que seria colocada num fundo. Esse fundo seria gerido por um conselho que iria destinar as verbas para a formação de jornalistas e/ou produção de notícias. A proposta não é da Fenaj mesmo, é da FIJ, a Federação Internacional. Esta federação está  preocupada com a queda dos investimentos nas empresas de comunicação. Como a queda de investimentos acaba tendo impacto nos empregos, eles pensaram em taxar as megaempresas e com a grana criar alternativas para os jornalistas. Uma coisa meio surreal. É mais ou menos como as entidades de luta popular que usam recursos das Fundações estadunidenses para combater as políticas que essas mesmas fundações oferecem aos Estados Unidos e que os  Estados Unidos nos impõem. Sinto muito, mas não consigo entender.

É incognoscível.

Conforme ainda a notícia no sítio da Fenaj, esse  fundo seria usado para a produção de jornalismo, notícias, que, assim, garantiriam a pluralidade e a democratização da comunicação. Eu confesso que ainda não entendi direito a parada. Como que isso iria garantir a pluralidade? Por mais notícias que fossem produzidas pelos jornalistas pagos pelo fundo, haveria garantia de que essas notícias circulariam nas big empresas de informação? Seria uma espécie de terceirização do serviço jornalístico por essas big empresas? Ne afinal essas informações circularia?  E a universidade então não teria mais sentido na formação do jornalista? A formação universitária seria apenas ritualística, com a verdadeira formação para os meios sendo feita à parte?  Seriam os cursos promovidos com a grana das plataformas que iriam definir a qualidade do jornalismo? De que forma isso combateria a formação dos oligopólios? Sem or! Não me parece fazer sentido essa proposta.

Compreendo a apreensão da Fenaj com o futuro dos jornalistas, afinal, a realidade aponta para o fim das empresas de comunicação tal como as conhecemos. Televisão, jornal e rádio são mídias que tendem a encolher com o avanço das grandes avenidas comunicacionais criadas pelas bigdatas, streamings e plataformas de bobagens tipo o tik tok. Continuo acreditando que, mesmo nesse cenário, o jornalismo ainda é necessário, pois diante de tanta desinformação e alienação é sempre o jornalismo que tem o papel de desvendar o que se esconde. Assim que o jornalismo deve continuar existindo, fazendo o ataque feroz aos inimigos do conhecimento. Mas, não creio que o caminho seja esse proposto pela Fenaj. 

Da minha parte penso que deveria ser transformado e fortalecido o ensino do jornalismo nas universidades, capacitando os profissionais para serem  bons perguntadores, bons analistas da realidade e críticos. E, do ponto de vista da luta política teríamos de combater os oligopólios e não fazer alianças com eles. 

Ou seja, precisamos de teoria revolucionária, luta revolucionária e um sindicato capaz de incorporar essa luta, insuflando os trabalhadores à construção de outro mundo, socialista. A proposta da Fenaj está dentro da lógica da “humanização do capitalismo”, coisa que obviamente não é possível.



segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Anita



Há quem diga, para desqualificar nossa Anita, que ela era apenas uma mulher que, por amor, se deixou levar por aí, nas batalhas farroupilhas e em outras peleias de libertação, inclusive na Itália. Heroína de dois mundos. Ora, ainda que fosse isso, deveríamos lhe render glória. Afinal, que mulher, naqueles dias, foi capaz de fazer o que ela fez?  

Mas, o fato é que sua saga não foi só seguir um homem. 

Fosse assim ela não teria lutado batalhas sem ele, espada em punho, revólver na cintura, em cima do cavalo e com os filhos nos braços. Anita era mulher apaixonada. Anita era soldado, era organizadora, era mãe, era parceira. Anita era valente, era destemida, era furacão. 

Hoje, quando se celebra seu nascimento, sopra desde o mar, vindo lá de Laguna, um vento levinho. E com ele vem o seu perfume de mulher tocada pelo amor. Uma amor que a fez imortal. Eu te reverencio, Ana, Aninha, Anita, guerreira desses nossos caminhos. 

E tudo o que posso desejar é que brote em nós essa paixão louca que te fez combatente quando tudo apontava para uma pacata vida na beira do mar. Eu te reverencio Anita, assim como reverencio Juana Azurduy, Bartolina, Micaela, Manuela e tantas outras mulheres que, por amor, conduziram uma nação.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

De cozinha e de felicidade



Minha mãe adorava dormir de manhã e odiava cozinhar. Por isso, no geral, acordava de mau humor. Porque sabia que logo teria de entrar na cozinha. Levantava sempre depois das 10h, cara amarrada, tomava um cafezinho preto e já começava a azáfama do almoço. Não gostava da parada, mas era mestre. Jamais fez um prato só. Enchia a mesa com várias opções. E era tudo muuuuito bom. Seu mau humor ia diminuindo conforme ela dançava entre as panelas, a mesa e o fogão. Eu sempre procurava diminuir seu trabalho e funcionava assim como uma auxiliar de cozinha. Fazia o pré-preparo e, nisso, fui aprendendo a cozinhar também.  Ela não gostava de carne moída. Preferia picar em pedaços bem pequenos e bater, bater, bater. Era uma perfeccionista. Nunca entendi como podia ela detestar tanto cozinhar e fazer isso tão bem. 

Depois que saí pra vida levei comigo esse desgosto com a cozinha. Também nunca fui de cozinhar e minha opção principal sempre foi comer fora. Nos finais de semana, um sanduiche de mortadela já estava muito bom. O máximo que eu chegava a fazer era um arroz com guizado para comer com farinha. Quando decidi morar com o Pedro, os deuses me abençoaram, ele adora cozinhar. Depois, chegou meu sobrinho, praticamente um chef. Ô, bênção! Ainda assim, se eles não estão, eu tranquilamente me viro com sanduiches.

Com a chegada do pai, as coisas mudaram. Ele precisa de refeições balanceadas. Há que ter almoço, jantar, lanches. Valamideuzi. Antes da pandemia, o Renato me valia e tudo ia bem. Mas, com a peste, tive que ficar em casa e aí, a cozinha estava lá, me chamando. As aulas pela internet do Renato e o meu trabalho remoto viraram a vida de pernas para o ar, e ao final, em vários dias da semana o almoço é por minha conta. 

Foi só aí que entendi o lance da mãe. Sobre como podia ela não gostar de cozinhar, mas ainda assim fazer as comidinhas mais deliciosas do mundo (sim, porque nunca encontrei panquecas ou bifes à milanesa melhores do que os dela).  Não era o que fazer, mas o para quem. Ela cozinhava para nós, seus filhos, seu companheiro. Ela superava o fato de não gostar de cozinhar com o seu compromisso de amor. Por isso tudo saia tão bom.

É o que acontece comigo. Quando é meu dia de cozinhar já começo bem cedinho tirando os ingredientes da geladeira, deixando-os descansar. Depois, vou fazendo tudo como a mãe fazia, do mesmo jeitinho e com os mesmos temperos. Coloco para tocar as músicas do Expresso Rural, abro uma cerveja, e entre cantorias e bailados vou mexendo os caldeirões. Quando o pai acorda, já encontra a cozinha nessa polvorosa, porque também como a mãe, eu faço uma baita bagunça com os temperos e as panelas. Como ele gosta de música, ponho os vídeos do Orlandinho e ele se diverte com os passinhos. A gente dança. Depois, passamos para as músicas gaúchas, de preferência as que falam de Uruguaiana. Ele toma um vinho e a comida vai se fazendo. Não há mau humor nem má vontade porque tudo está temperado com a bem-querença. É quando sinto, visível e concreto, o espírito da minha mãe. Ela conhecia esse segredo. Era só amor. 

Acho que é por isso que consigo fazer comidas gostosas, mesmo que sejam meio sem sal (por conta da pressão alta da turma). E, assim, vamos mantendo o bom astral e a alegria, apesar de ter de conviver com uma doença tão terrível como é o Alzheimer. 

Não, a vida não é um conto de fadas e nem todos os dias são bons. Mas, seja em qualquer hora, ver o riso do pai é a melhor pedida. Vale todos os sacrifícios. Penso que era isso que ia mudando o humor da mãe, todas as manhãs, enquanto ia cozinhando. Sua alegria era a mesa farta e todos nós saboreando. Mas, ela encontrava um jeito de se “vingar” também, deixando a pia repleta de louças. Acabo fazendo igual. Cozinho, mas bagunço. Por isso o Renato, quando se prepara para sua tarefa de lavar a sujeira toda, diz:

- A dona Helena passou por aqui. E é bem verdade.



segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O império às claras


Ouvi ontem a fala do presidente dos Estados Unidos sobre a retirada do “seu” pessoal do Afeganistão. Ele informava à nação sobre a evacuação do país e sobre quem eles tinham decidido salvar. Tranquilo e sem pejo ele disse que 28 mil afegão tinham sido resgatados, aqueles que durante esse tempo de ocupação haviam colaborado com os Estados Unidos. “Fizemos isso, porque é assim que somos. Cuidamos dos nossos”. Pois bem, 28 mil pessoas e ponto final. Os demais que se virem. Foram lá e destruíram um país, então esse descaso com as gentes não é novidade. “Só se dá bem que é nosso amiguinho”. E provavelmente a audiência aprovou sem destaques a decisão.

Disse ainda o presidente que não havia mais o que fazer no Afeganistão. Eles tinham ido pra lá para pegar Osama Bin Laden e destruir a Al-Kaeda. Isso já estava feito. Então, nada mais havendo a tratar, encerramos essa etapa. Foram 20 anos para ver que nem Osama estava lá, nem a Al-Kaeda. Mas, Julian Assange, o homem que o governo estadunidense quer encarcerar e destruir, já havia dito há anos atrás: não se trata de vencer, se trata de manter a máquina de guerra. Tudo o que há é o business. Tudo que se quer é manter a economia girando. E, depois, o mundo é tão grande. Há tantos países para destruir. Mas, não se preocupem, quem ficar do nosso lado, a gente resgata. Essa foi a mensagem.

Assim, apaziguados e certos de terem sido solidários com os seus amiguinhos, os estadunidenses devem ter ido dormir em paz. Provavelmente haverá algumas campanhas de denúncias por conta da situação das mulheres e depois, em alguns dias, o assunto sai das manchetes e tudo segue seu curso. Tampouco se falará que o Talibã é cria do serviço não tão secreto dos EUA.

Pouco sei do Afeganistão, sua cultura e sua forma de viver. Mas, ao longo desses 20 anos sempre estive do lado daqueles que defendiam o direito do país se autodeterminar. Dizem alguns que lá é um emaranhado de clãs, dominado por tradições arcaicas e que é dever do mundo ocidental, civilizado, impor sua maneira de viver a isso que consideram um atraso. Bem, nós, em Abya Yala, sabemos de cor e salteado sobre o que acontece quando alguém se arvora em ser  “a” civilização. No caso específico do Afeganistão nós pudemos acompanhar via satélite: os crimes, os massacres, o terror, a tortura, tudo o que foi imposto pelas armas estadunidenses em nome da “democracia e liberdade”. Provavelmente isso só foi bom para uma minoria que encheu os bolsos. De novo, o que deve ter pesado foram os negócios, o dinheiro, o lucro.

Assim que os fatos se apresentam sem disfarces para todos nós. Quem tiver olhos para ver, que veja. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. Enquanto o que dominar o mundo for o interesse de uma classe minoritária, as coisas serão assim.



Farinha pouca, meu pirão primeiro


Esse é um ditado popular que infelizmente parece ser a regra no mundo humano. Aquilo que toca individualmente é o que acaba prevalecendo. O coletivo serve para bonitos discursos, mas a prática é o que determina aquilo que realmente somos e pensamos. Um dos exemplos disso é a vacina. Há os que, em nome de suas convicções individuais, preferem deixar o coletivo se explodir. Mesmo sabendo que a vacina terá mais eficácia quando mais gente estiver vacinada, há os que se negam, ainda que nos seus perfis de redes sociais façam emocionados discursos pela família, por deus, por gatinhos ou cachorros. 

Outro exemplo são as lutas sindicais, coletivas. Uma batalha travada por uma categoria precisa da adesão de todos, mesmo aqueles que não são tocados pelas decisões. Lembro-me das greves da UFSC quando os técnicos de nível superior decidiram criar uma associação própria porque entendiam que os ganhos vinham só para os de nível médio.  Estudados, sabiam muito bem que numa greve existem várias demandas e que os ganhos podem não chegar da mesma forma nem no mesmo tempo para todos. Houve greves que os TAEs de nível superior ganharam mais, e outras que os de nível médio ganharam mais. É assim. 

Também havia e há até hoje os que sequer fazem greve porque acreditam que estão muito bem, que o seu salário tá bom, que não sofrem assédio, que têm chefias camaradas etc... Então, se existe alguém que não está satisfeito, que lute sozinho. O bom e velho egoísmo funcionando a mil. Sempre tentamos trabalhar isso nos movimentos, observando que a luta coletiva é o que fortalece a categoria, e que as batalhas pontuais a gente vai travando ora aqui, ora ali. 

Agora mesmo a UFSC define um retorno ao trabalho presencial em setembro, apenas para os técnico-administrativos é claro, bem no meio de uma nova onda da Covid, com a variante Delta chegando para arrasar. A ideia, diz o documento da reitoria, é preparar os setores gradualmente para o retorno, ainda que diga que os setores precisam abrir das 08 às 18. Onde fica o gradual aí? E como trabalhar em salas que não têm a devida ventilação quando os prédios foram sendo feitos para o uso de ar-condicionado? Há tantas coisas que causam insegurança e até terror. 

Isso acontece com todos os trabalhadores? Não! Existem setores na UFSC que podem estar bem preparados para um retorno. Inclusive existem trabalhadores que nunca pararam de ir à universidade, presencialmente, para resolver problemas. Eu mesma fui várias vezes ao IELA ligar os equipamentos, fazer limpeza, fazer a manutenção nas máquinas fotográficas, filmadoras e em outras máquinas que não podem ficar tanto tempo paradas. Sabemos o quão difícil é conseguir a estrutura. Amamos a UFSC e temos muita clareza de que precisamos cuidar. E por que eu fui ao IELA? Porque lá estou sozinha. Não divido o espaço com ninguém e nunca permiti ar-condicionado no meu espaço, sempre de janelas abertas. Ora, essa é minha realidade, individual. 

O mesmo não acontece com uma parcela bastante grande da universidade. Boa parte dos trabalhadores labuta em salas coletivas, fechadas. Então, o compromisso ético de cada um de  nós deve ser com essa maioria. A luta coletiva precisa estar em primeiro lugar. Atualmente, os mais diversos setores da UFSC, com suas especificidades tão díspares, estão trabalhando na sua capacidade máxima. Cada pequeno setor segue dando respostas para a comunidade e para a instituição. Ninguém está parado. O trabalho da maioria está sendo feito remotamente, mas, possivelmente, muitos colegas já foram até a UFSC para resolver alguma coisa presencialmente. Porque é assim que são os trabalhadores comprometidos com a universidade.

Assim que um retorno presencial em massa não tem sentido algum nesse momento, muito menos na lógica confusa da administração que afirma ser um retorno gradual, mas exige setores abertos. Haveremos de retornar, é certo. Quando for seguro. E ainda não é. Por que então expor os trabalhadores a um risco desnecessário? Por conta das cobranças da imprensa pelega? Ora, desde quando a UFSC se rendeu à bocas-alugadas de plantão? O documento da reitoria diz que serão acompanhados os casos de infecção que possam surgir. Ora? O que é isso? Depois de os trabalhadores serem infectados, sem necessidade, o que a UFSC fará? Rezar? Chorar no enterro? Isso não tem qualquer cabimento. 

Cada trabalhador da universidade sabe do seu trabalho e a maioria sempre esteve e está comprometida com a qualidade do que faz, sabendo muito bem o que significa ser um trabalhador público. Sim, existem os ladinos, os preguiçosos, os egoístas. Mas, esses, são poucos, exceções. Não podem servir como base. 

O que deve nos orientar é a luta coletiva. Enquanto houver um único colega em risco, por conta de uma decisão irresponsável, temos de estar juntos, lutar juntos.  

Precisamos preparar a universidade para o retorno, é certo, mas isso não se dá assim, num ato administrativo, sem diálogo com os trabalhadores e sem a devida contrapartida estrutural. Esse retorno precisa ser articulado e discutido com as categorias que conformam a UFSC. Não estamos em Marte. Estamos aqui e temos muito a contribuir. 

Esperamos que a administração central não se esqueça de tudo que prometeu na campanha eleitoral. A democracia tem de ser participativa e, tal e qual a solidariedade, ser uma prática cotidiana e não um discurso vazio.