O pai, apesar de já entrando nos 88 anos tem uma energia incrível. Ele passa o dia inteiro em função, andando pra lá e pra cá. Quando se aquieta é alerta. Mesmo à noite ele costuma levantar umas três ou quatro vezes. Até então tudo bem. Ele geralmente levanta e vem bater na porta pedindo café. Acha que já é de manhã. Eu levanto, explico pra ele que é de noite e ele volta para o quarto. Há duas semanas esse ritual mudou. Naquela noite ele não apareceu. Eu estranhei, mas não pensei em nada de mais. Ele só veio bater na porta por volta das seis horas da manhã. Eu já estava de pé. Abri a porta e dei de cara com uma cena de “Carrie, a estranha”: o pai, com a cara toda ensanguentada. Até hoje não sei de onde tirei calma para não demonstrar pavor e tentar ver o que havia acontecido. Apesar da sangueira ele tinha apenas um corte na testa, grande, mas não profundo. Não soube dizer o que havia acontecido. Quando entrei no quarto encontrei toalha, lençol, travesseiro, tudo sujo de sangue. Provavelmente ele dormiu sentado e deu com a cabeça na mesa. Única possibilidade. Observei então que não dava mais para deixá-lo dormir sozinho e embora ele fique brabo com a minha presença, decidi armar uma cadeira de praia ao lado da cama dele e ficar vigiando. Na noite seguinte, lá estava eu, toda torta, meio dormindo, amparando a cada vez que ele levantava para fazer xixi. Ficou furioso a noite toda, mas não arredei pé. Quando foi de manhã, já na hora de me arrumar para o trabalho, ele dormia profundamente. Sai de mansinho e fui tomar banho. Não deu cinco minutos. Quando eu voltei, lá estava ele no chão. Machucou os dois braços, se encheu de hematomas, um perigo total. Cair pode ser fatal para um velho. Que fazer? Como estar atenta o tempo todo? Que coisa difícil. Agora as coisas estão assim, uma nova fase, novos aprendizados e muito mais cansaço. Fico com ele a noite toda e, de manhã, quando vou trabalhar, alguém fica com ele. Vigilância total. Não é fácil, porque as noites são muito mal dormidas e logo cedo há que estar alerta e dar conta da vida. Não sei até onde vai ser possível aguentar esse batidão, mas estou indo em frente. Durante o dia, procuro dormir como posso, no ônibus, ou, depois que chego a casa, quando ele também cochila. Mas é um não-dormir, um estado de alerta o tempo todo. Agora ele já se acostumou com a minha onipresença durante a noite. Ainda assim, toda vez que ele desperta para ir ao banheiro, quando vê minha cabeça assomando, começa a rir e pergunta: mas o que tu tá fazendo aqui? Tô te cuidado, meu velhinho. Tô te cuidando.
O carnaval de 2020 em Florianópolis terá um grande vazio. Pela primeira vez em 33 anos não estará à frente dos festejos o alegre e querido Ernani Hulk, histórico Rei Momo da corte da alegria, que encantou em setembro do ano passado depois de uma longa luta contra o câncer. Nascido em Blumenau, ele assumiu o amor pela cidade abraçando o carnaval e por mais de três décadas arrastou a multidão pelas ruas, clubes e sambódromo. Quem vive o carnaval sabe o quanto sua figura era estimada e é justamente por isso que ele será o mais novo boneco da corte do Berbigão do Boca. O Berbigão é o mais popular bloco de carnaval de Florianópolis, nascido em 1993 e que com o passar do tempo se transformou na festa popular mais importante da cidade, carregando pelas ruas, com alegres marchinhas, para lá de 40 mil pessoas na abertura dos festejos de Momo que acontece uma semana antes da festa oficial. Florianópolis já teve um dos melhores carnavais de rua do Brasil, num tempo em que tudo acontecia ao redor da Praça XV. Por ali passavam os blocos, as grandes Sociedades com seus carros de mutações (únicos no país) e as escolas de samba. Para a população a alegria era gratuita, pois não tinha que pagar nada para ver as maravilhas que se construíam ao longo do ano para apresentação no Carnaval. Com a inauguração da Passarela do Samba Nego Quiridu em 1989 as escolas foram deslocadas para lá e os desfiles passaram a ser comercializados. A rua esvaziou, mantendo-se apenas os blocos de sujos. E foi a nostalgia dos velhos carnavais da Praça XV que levou um grupo de rapazes a criar o Berbigão. Era o carnaval de 1992. Eles curtiam a ressaca, quarta-feira de cinzas, em frente ao mar de Coqueiros, cheios de saudade de um tempo em que a festa era na rua. Queriam também aumentar os dias de folia, agora tão protocolar. Começaram a lembrar do bloco Bacalhau do Batata, de Olinda, que sai depois que tudo acaba. Pois aqui haveria de sair antes. Logo veio à mente o berbigão, fruto do mar típico da ilha, para dar nome ao bloco e como a ideia tinha sido do Boca (Paulo Bastos Abraham), ficou “Berbigão do Boca”. O bloco sairia uma semana antes do carnaval, circulando pelas ruas do centro, sem nenhum custo para a população. Quando 1993 chegou lá estava o Berbigão pronto para a festa. No começo era só um bloco, que já nos primeiros anos ia arrastando muita gente. Mas, quando em 1995 inventou de incorporar grandes bonecos no cortejo, com a construção da figura gigante do primeiro Rei Momo, o Lagartixa, pelas mãos do artista Alan Cardoso, o bloco foi ficando com cara de um Boi-de-Mamão carnavalesco e a cidade foi se apaixonando. Seguir atrás do Berbigão do Boca começou a ser de lei. Ano após ano, outros grandes bonecos foram sendo criados, de figuras importantes da cultura local que já tivessem partido para o outro plano, e hoje já são 40 deles que seguem junto à multidão, imortalizando o povo do carnaval e da cultura. É de alegre lembrança a eterna rainha do samba, a Nega Tide, que sempre dizia: “valhamideuzi, eu não quero virar boneco”. Pois ainda assim, virou, pois era figura imprescindível no carnaval. Claro que o que ela não queria era morrer, pois só vira boneco quem parte. E, conforme conta o Alan da Pandorga, o artista dos bonecos, só depois de cinco anos da passagem é que ele começa a confeccionar. Isso porque quando morreu o Aldírio Simões, um nome importante da cultura local, eles decidiram fazer logo o boneco para homenagear o amigo. Só que enquanto construía a figura, o boneco, do nada, se mexeu. Alan decidiu, por isso, esperar o morto esfriar bastante. Mas, esse ano, ele abriu exceção, pois não poderia sair o Berbigão sem o Hulk. E por isso mesmo já está pronto o 40º boneco, lembrando o mais querido Rei Momo da cidade. A farra do Berbigão do Boca, no dia 14 de fevereiro, começa ao meio dia no Mercado Público. Tem festival gastronômico, com receitas de berbigão, tem shows de todo tipo de música de carnaval e quando chega às 19 horas, a banda, formada por músicos locais, com muito sopro, sai pelas ruas arrastando o povo. A cidade se enche de alegria e as gentes de todas as idades podem curtir as velhas marchinhas e o carnaval na rua, seguindo o cortejo dos bonecos. É festa pra rachar, é uma coisa louca, todo mundo botando pra quebrar, no Berbigão do Boca, uma festa genuinamente popular. A folia do Berbigão do Boca foi declarada em 2008 como uma festa de utilidade pública, e em 2011 definida como Patrimônio Imaterial da cidade.
O pai não andava muito bem e eu levei ele no Posto de Saúde para uma consulta. Cumprimos todas as regras. Ir para a fila de madrugada, pegar a senha e depois marcar a consulta. Claro que não levei ele para a fila. Ele ficou em casa, esperando. Com a consulta garantida o Renato levou ele. No posto é o de praxe, com alguma espera. Até aí tudo bem. Mas, ocorre que há um ar-condicionado no modo polo norte. O pai com problemas respiratórios. Uma coisa complicada. Isso sem falar nos outros doentes, com gripe e tal. Aquilo não é de deus. Mas, tá. A médica pediu uma radiografia do pulmão. Beleza, seguimos os trâmites da espera. O pai tomou os antibióticos e era para ver se tinha ficado tudo bem, então a espera de mais de uma semana para fazer o raio-x não complicou. Beleza. Hoje fomos fazer a tal da radiografia. E no meu coração assomou a certeza. Poucas pessoas estão habilitadas a cuidar de pessoas velhinhas, com demência. O moço insistia em pedir para pai encostar o queixo e o peito na placa. Ele não entendia. Eu falei: deixa eu ajudar. O moço: não, a senhora não pode entrar. E eu: Mas, moço, ele tem demência, não compreende as coisas, eu preciso mostrar pra ele como fazer, tem que ter paciência. O moço: não. E insistia em dar os comandos. O pai foi ficando nervoso, porque não entendia. Com muito custo eu convenci o moço de ficar com o pai dentro da sala. Ele me colocou uma roupa de chumbo, eu acho. E eu tentando fazer o pai fazer o que era preciso. Mas, ele já estava nervoso e com dor no braço por conta de uma queda, e não obedecia. Um climão. Por fim fizemos a chapa de costas, mas tinha uma que era de lado. O pai não conseguia, de jeito nenhum, erguer os braços. Doía. O moço tentou levantar, ele gritou de dor. Eu fiquei braba. - Moço, ele está com o braço luxado, não poder erguer. Quer saber, não vamos fazer essa chapa. Foda-se. Fica só a de costas. O moço ficou meio brabo. Mas, porra, aquilo estava sendo uma tortura e uma confusão. E o pai foi ficando nervoso a ponto de descompensar um pouco. ´Já não ordenava mais a fala, gemia com dor no braço. Um terror. Resumindo a ópera. A radiografia ficou pela metade. Não sei muito bem como as coisas deveriam ser, mas creio que poderia ter alguma técnica para ajudar pessoas nessas condições. O pai, no geral, não consegue verbalizar o que está sentindo direito. Tudo tem de ser muito intuitivo. Claro que entendo que o trabalhador do raio-x está ali atendendo dezenas de pessoas por dia, às vezes até em condições ruins. Mas, haveria que ter uma capacitação sobre como lidar com pessoas assim, bem velhinhas e confusas. A nossa população está envelhecendo, isso é uma novidade, e cada vez mais haverá gente assim. Não creio que eles possam seguir o atendimento padrão. Sei lá, algum jeito tem de ter, afinal saí sem a chapa. Fica a dica então para o sistema de saúde. Hoje foi difícil.
Em tempos de Oscar, no qual se celebra a indústria do cinema, apresento nosso documentário feito a facão, produzido e financiado com recursos salariais próprios, meus e de Rubens Lopes. Quinze dias rodando o Uruguai, vivendo aventuras, raiva e alegria. Por fim, um trabalho que conta um pequeno pedaço da saga do povo da Banda Oriental, seguindo Artigas por mais de 500 quilômetros, à pé, na luta pela libertação. Esse é o nosso prêmio, ter conseguido trazer à luz essa linda história, ainda que sem recursos técnicos ou financeiros, porque, no capitalismo, a cultura é guerrilha.