Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O novo ano - 2021


 As celebrações de um novo começo na vida das gentes são tão antigas quanto a própria raça. Nas culturas mais remotas o “recomeço” era celebrado sempre no solstício ou equinócio de primavera (dependendo do hemisfério), quando tudo começa outra vez a florir. É que como o conceito de tempo ainda não havia sido aprisionado nos relógios, a vida das comunidades se regia pelas estações. Naqueles dias, o povo se reunia em festivais, cantando, dançando e bebendo em honra da terra. As mulheres engravidavam e a vida florescia. Era a completude do ciclo da existência, sempre se repetindo. Reavivar, Recomeçar.

No geral, sou otimista. Mas, desde que a cultura da morte tomou o país, tenho andado ajujada de dores. Elas respingam todas as possibilidades de alegria e, imiscuídas na existência, se destacam absurdamente. No campo pessoal tenho visto meu pai caminhar devagarito para o grande começo. Não é coisa fácil. E esse ano de 2020 foi particularmente duro. Cada pessoa que tomba, anonimamente, por conta do plano perverso desse governo, é como uma chaga aberta no meu próprio corpo. Sim, no capitalismo, as coisas são assim mesmo, o tempo todo. Os trabalhadores caindo como moscas para enriquecer meia dúzia. Mas, com a pandemia, fica tudo ampliado demais. Por isso invejo quem dorme.

Minhas noites não são calmas. Elas se preenchem com o cuidado do pai e o pensamento na dor dos que vão perdendo seus amados por pura negligência. Tá osso. Sim, todo mundo vai morrer. Mas, não precisava ser por falta de um respirador, ou de uma UTI. A morte tinha de ser como a de Antônia, a do filme, que realiza tudo o que precisa realizar, deita e parte.

Esta noite não vou dançar, nem cantar, nem celebrar. Tampouco enviarei votos de esperança ou de gratidão. Não. Na solidão, buscarei e afiarei as adagas, sistemática e lentamente. Porque haverá de chegar o momento - coletivamente  - de rasgar essa noite escura. Haverá de chegar... E que seja logo!

Porque esse sim será o grande recomeço, o tempo novo.



quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Pelo Natal


E então eis que que chega o aniversário daquele que andou com os perdidos e distribuiu ternura por toda a região da galileia há mais de dois mil anos. Uma criatura tão especial que ultrapassou a barreira do tempo e até hoje é lembrada como o compadecido, o que realizou a nova aliança. A partir desse Jesus, histórico ou desejo, não houve mais o tributo a um deus violento e vingativo. Mas, a compreensão de que estamos nesse lindo jardim e que aqui devemos semear a alegria, a bondade, a solidariedade e o amor.   

Jesus, o assassinado, mostrou que é um deus fraco, incapaz de salvar quem quer que seja. Mostrou que o deus verdadeiro é o que, no meio da mais profunda dor, só pode estender os braços e acolher, em lágrimas, dizendo a única palavra que precisamos: “estou aqui”. Somente juntos nos salvamos. O deus de Jesus é o amigo sincero, o companheiro, o que não abandona, o que abraça, o que compartilha, o que morre junto se preciso for. Ele não aparece entre mil megatons prometendo ilusões. Ele nos diz que nosso tempo aqui precisa ser vivido no amor, na ternura, no encontro com o outro, real, caído.  

Que nesse dia do aniversário, quando essa generosa ideia de Jesus completa mais uma volta em torno do sol, nós possamos nos irmanar nessa proposta de amor. Há uma longa jornada pra cumprir nessa terra e Jesus nos convida a ser feliz. Amar, sem esquecer que é justamente esse compromisso que nos leva a lutar contra todos os vilões do amor. Contra eles, vamos à batalha. Porque haverá de chegar o dia em que ela não será mais necessária.   

Que nosso Natal possa ser sereno, apesar de toda a dor que temos vivido nesse ano de pandemia, quando a vida parece não ter qualquer valor. Que nós, os vivos, possamos tocar o coração de cada um dos que nos é caro e dizer: “estou aqui”. Isso já será suficiente.   

Feliz aniversário, Jesusinho... Feliz Natal para todos nós. 

2020 – O ano da peste


O ano que termina foi o ano da peste.  Já em janeiro os primeiros casos do novo coronavírus apareciam na China, ainda sem causar preocupação, visto que poderia ficar isolado naquela parte do mundo. Seguindo a lógica do “não é comigo” o resto do mundo seguiu tranquilo e no Brasil até o carnaval, cheio de aglomeração, aconteceu, apesar de já se saber que o vírus escapara do oriente em direção à Europa.

Quando no mês de março os diversos países do continente Europeu começaram a reportar casos do vírus houve uma comoção geral. Cenas dos hospitais lotados e das centenas de caixões chocaram a população brasileira, que assistia a tudo pela televisão sem imaginar  o que estava por vir por aqui, e que seria muito pior. O anúncio das 500 mortes por dia na Itália causou estupor, assombro. Mas, quando chegamos a mais de mil aqui no Brasil, já ninguém mais se importava.

No mês de abril a Covid-19 faria uma entrada triunfal no Brasil e na América Latina,  provocando também centenas de mortes. Estados como o Amazonas, por exemplo, abriram covas e mais covas para os mortos que não paravam de chegar. No Equador os mortos ficavam por dias nas ruas, sem gente para recolher. Foi um verdadeiro terror, pois nem os médicos, nem os trabalhadores da saúde sabiam muito bem como lidar com o vírus. Houve muita desinformação e medo. Põe a máscara, tira a máscara, tudo era muito pouco certo.

Diante disso, para piorar o que já era o mais puro horror, o governo federal decidiu travar guerras políticas com seus inimigos e abandonou a nação, demitindo dois ministros de saúde médicos e contratando um militar para gerir a crise. O resultado não poderia ser outro: mais mortes e uma absurda incompetência administrativa.  Sem um plano nacional de combate ao vírus, estados e municípios foram definindo as políticas ao longo do caminho. No começo, optaram por ouvir a ciência, fechando comércio, escolas e tudo mais. 

Mas, com o passar dos meses, começaram a ouvir o empresariado que não queria perder os lucros e tudo voltou a se abrir, ocasionando ondas de novos casos. A tal ponto que hoje já estamos próximos dos 200 mil mortos. Mortes que poderiam ser evitadas porque com o passar do tempo os trabalhadores da saúde já tinham certo saber sobre a doença e as formas de proteção.  Ainda assim, muita gente se foi porque não encontrou um respirador no hospital.

O “ano da peste” define também mais um ano de mandato do atual presidente, que já havia promovido um grande desmonte no primeiro ano. Com a guerra política e o negacionismo em relação à ciência, só conseguiu fazer com que a tragédia se aprofundasse. Chamando a pandemia de uma gripezinha ele foi para a televisão receitar remédios inúteis, além de gastar horrores comprando estoques dessa medicação que agora mofa nos armazéns. Não há nada a fazer com eles. Não há remédio para prevenir o vírus. Prejuízo para a nação, dividendos para os amigos do Trump.

E assim, entre um espetáculo e outro do presidente, os meses foram se passando, sem que o governo federal tomasse a frente no combate à pandemia. Nem teria como, ocupado que estava em aprofundar o assalto ao estado brasileiro. Mergulhado nas denúncias de corrupção envolvendo os filhos e a própria esposa, o presidente tratou de criar várias cortinas de fumaça para tirar do foco as falcatruas da família. E, com isso, foi também fortalecendo esse grupo que surfa na mesma onda do negacionismo. Negação da doença, negação dos cuidados, negação da vacina.

No mês de junho, Fabrício Queiroz, o pivô da famosa “rachadinha” criada por Flávio Bolsonaro foi preso, num sítio do advogado da família do presidente em Atibaia. A imprensa tratou o caso de forma muito superficial e fosse outro o presidente, seria a morte política. Mas, para Bolsonaro não pegou nada. Ele seguia visitando padarias, sem máscara, ora dizendo que tinha se infectado com o vírus, ora dizendo que não. Uma pantomima sem fim. Queiroz foi preso, foi solto e até agora o filho número 1 não respondeu pelo crime. Nem ele, nem o pai, que interveio de maneira descarada na Polícia Federal, sem que nada lhe acontecesse.

Enquanto isso, os partidos começaram a esquentar as baterias para a eleição geral de novembro, que iria eleger prefeitos e vereadores. O vírus seguia ceifando vidas, mas os candidatos não fizeram caso. Houve campanha de rua, do mesmo jeito de sempre, só que com máscara. E também foi o tempo em que os índices de infecção voltaram a crescer. E quando novembro chegou, lá foi o povo a aglomerar mais um pouco nas filas de votação, com o corona bem satisfeito.

O resultado das eleições foram os esperados. Bolsonaro não elegeu os seus, mas também não foi responsabilizado pela inoperância na condução do combate ao coronavírus. Os menos convictos acabaram voltando para o reduto seguro dos velhos partidos das oligarquias tradicionais, sem abrir mão do conservadorismo, e voltamos a ver PP, DEM e PSDB assomando nos municípios. Praticamente nenhuma mudança no pensamento geral da nação, apesar de algumas vitórias pontuais de lideranças envolvidas em lutas específicas contra o racismo, LGBT ou agroecologia. As candidaturas de esquerda que propunham mudanças estruturais foram derrotadas e os ganhos da esquerda liberal, ao fim e ao cabo, não oferecem nada que efetivamente altere o sistema de forças. Serão espaços de resistência e denúncia, mas provavelmente só isso.

No Congresso Nacional dormem mais de 50 pedidos de impedimento do presidente da nação, por corrupção, por improbidade administrativa, por desleixo na gestão da saúde, por incapacidade governativa, enfim, múltiplos motivos. Mas, os deputados preferem sentar em cima dos pedidos e negociar cargos e emendas milionárias. Não há, na classe política brasileira em geral, qualquer preocupação com a população. Tudo gira em torno de interesses pessoais. Tanto que agora, ao fim do ano, com o visível crescimento do contágio do coronavírus por conta das liberações gerais, a casa legislativa nem se toca e segue a vida, muito mais envolvida com a eleição do presidente da Câmara e do Senado do que com qualquer outro tema. Afinal, quem preside a Câmara define a agenda, e isso é poder.

Vários países do mundo já iniciam a vacinação em massa a partir do final esse ano, mas aqui no Brasil o presidente vai à televisão dizer que não haverá vacina para todos, que ele não vai tomar e que tampouco vai obrigar que a população se vacine, será facultativo, como se a saúde pública pudesse ficar à deriva, sob o desejo individual de cada brasileiro. O presidente faz piada com a vacina chinesa e não organiza uma estratégia de vacinação. Estamos completamente entregues ao desmando e a inoperância. É um caos programado e bastante adequado ao sistema de poder.

É bom lembrar que enquanto as gentes se debatiam no meio da absurda guerra política que se transformou a questão da Covid 19 ao longo desse tenebroso ano, o governo seguiu destruindo o país, acabando com “tudo isso que tá aí” conforme o prometido. Não atuou contra as queimadas que varreram a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado, sendo conivente com fazendeiros e mineradores que aplaudiam o fato de o fogo ter aberto mais espaço para a exploração. Um fogo que provavelmente nasceu das mãos dessa mesma gente.

O presidente não moveu um dedo para parar com a violência no campo e nas terras indígenas, pelo contrário, incentivou. Abriu as portas para as armas estrangeiras, chegando ao ponto de zerar o imposto para importação, mais uma vez gerando lucros para as empresas estrangeiras. E no finalzinho do ano ainda rematou com a proposta de desmonte completo da política da saúde mental. Uma volta ao hospício e a medicalização, bem ao gosto da indústria da morte que são as farmacêuticas e os hospitais privados. Também tentou meter a mão na verba da educação garantindo que ela escoasse para mãos privadas. Ou seja, seguiu cumprindo as promessas feitas aos fazendeiros, ao agronegócio, às escolas particulares, aos parceiros estrangeiros.

Chegaremos ao ano 2021 com a sensação de que esse que passou foi um ano perdido. Mas, apenas perderam os trabalhadores. Os mais ricos do mundo ficaram ainda mais ricos por conta da pandemia, e a maioria das gentes apenas se debateu como pode nesse mar de descaso. A sobrevivência foi um ato de sorte.

O mais doloroso para nós brasileiros é que o ano que se aproxima seguirá sendo um ano de peste. A vacina tardará o quanto o presidente puder fazer tardar e nós ainda teremos de amargar mais 360 dias com o que parece ser um bando de gângsteres dando as cartas e assaltando o estado no máximo vapor.

O dramático de tudo isso é que os trabalhadores passaram esse ano na mais completa apatia gerada pelo medo de perder o emprego e de morrer pela Covid, o que aprofundou ainda mais a exploração. O aumento dos preços da alimentação, da luz, da água, da moradia foi motivo de apreensão, mas não de indignação. E nem mesmo o apagão no estado do Amapá, que chegou a ficar mais de 15 dias sem luz por conta da incompetência de uma empresa privada, provocou passeatas ou manifestações.  Nenhuma solidariedade, nenhuma cobrança. Nada. Pelo contrário, encerramos 2020 com 37% dos brasileiros aprovando um governo genocida. E nada disso foi capaz de fazer reagir as Centrais sindicais, outrora tão combativas, e que praticamente estão mortas. Tampouco houve, ou há, qualquer ação por parte dos partidos de esquerda que deram toda a energia na eleição, sem sequer carregar nas tintas contra o governo federal. A maioria disputou os municípios com propostas locais, sem ligação com a política nacional, pensando talvez que se não atacassem Bolsonaro teriam chance. Ingenuidade ou má fé? Ainda estamos para ver.

2020 foi, enfim, um ano triste demais. Perdemos amigos, familiares, conhecidos, amigos dos amigos, perdemos uma infinidade de vida e não ainda recobramos a consciência. A consciência de classe.

Enquanto isso, cercado de cadáveres, o presidente inaugura exposição de roupas usadas por ele na posse e usa a verba do governo para promover empresa de eventos do filho mais novo que agora também entra na política pela mão do pai. E praticamente ninguém diz um ai. Ao que parece, para esse senhor que ocupa a presidência, tudo é permitido. Sem limites.

Que se acabe logo esse 2020 e que a luz da rebeldia apareça para incendiar o mundo. Porque geralmente é assim mesmo. Uma fagulha, uma ínfima fagulha e quando se vê, já está.

Aqui estamos, na espera. 


sábado, 19 de dezembro de 2020

Jornalicídio doloso - jornalista processada por interpretar a realidade



 A palavra jornalismo vem do grego diurnalis, que significa “do dia”. Quando passa a designar um fazer significa então “análise do dia”. Isso é o que está na etimologia e é o que deveria estar na cabeça de cada um de nós, os que praticamos o jornalismo todos os dias. Observar a vida, os fatos, e narrar, não como meros porta-vozes, mas como sujeitos capazes de analisar e interpretar os fatos para além da aparência. 

Pois foi exatamente isso que fez a jornalista Schirlei Alves ao cobrir o vexaminoso julgamento do caso André Aranha, acusado de estuprar uma garota numa casa noturna da capital catarinense. Na audiência, o advogado do dito estuprador coloca foco na vida da jovem estuprada, Mariana Ferrer, e a humilha em diversos momentos, tratando-a como se ela fosse culpada por ter sido estuprada. Na verdade, até aí nada de novo, pois sempre foi essa a estratégia das defesas de estupradores: virar o jogo para a vítima. “Estava bêbada, estava de vestido curto, estava com roupa transparente, provocou, que fazia ali àquela hora”, e tudo mais. Até aí, pão comido. Como também foi pão comido o resultado do julgamento. Depois de toda a pressão sobre a vítima, o resultado foi a absolvição do Aranha. 

Com todo o rebuscamento da linguagem do juridiquês, o processo aponta que existem situações em que “o erro exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo... quando há a vontade, mas não a plena consciência”. E foi – linhas gerais – em cima disso que o homem foi absolvido. Chegaram à conclusão de que não foi estupro, porque, mesmo que tenha havido o dolo (perda da virgindade) não houvera a intenção.

Como uma boa jornalista, Schirlei Alves, se debruçou sobre o processo, leu as letras pequenas e fez suas análises e interpretações. Uma delas lhe permitiu apontar a genial expressão “estupro culposo”, que acabou ganhando destaque e levando o país inteiro a discutir o caso. Ou seja, Shirlei percebeu que a lógica usada na sentença permitia uma analogia com o que conhecemos como homicídio culposo – quando uma pessoa mata outra sem intenção de matar (o caso de um acidente, por exemplo). Claro que o que a jornalista fez foi uma ironia - porque nem isso seria. Mas , foi uma ironia que não surgiu do nada. Ela está subentendida nos autos. 

Como as palavras são polissêmicas, cada um que leu o texto atribuiu um sentido e a expressão foi usada para criticar de maneira jocosa o judiciário e todos os operadores que atuaram no caso. Obviamente que a exposição nacional, e até internacional do acontecido, causou indignação aos envolvidos. Então, trataram de judicializar a jornalista. E agora, ela responde processo por ter analisado um fato e interpretado o mesmo com base nas informações dos autos. Ou seja, ela disse algo que eles não haviam dito mas que estava subentendido nas entrelinhas.

Seria até engraçado um processo por isso, mas é claro que não é. Porque estamos no Brasil, porque a Justiça tem classe e porque esse é um tempo em que o jornalismo tem de ser calado. Na verdade, todos os tempos são tempos que tentam calar o jornalismo, aquele, de verdade, que interpreta, que desaloja, que desequilibra, que analisa criticamente. Mas, momentos há em que ele tem mais espaço. Não é o caso dos nossos dias. Vale lembrar outro colega jornalista e professor, o Cristian Góes,  que foi processado por ter escrito um texto de ficção com o qual um desses “coronéis”  nordestinos se identificou. Cristian foi condenado por fazer ficção e ainda teve de pagar por isso. Loucura? Não! Realidade brasileira. 

O processo agora contra Schirlei segue essa lógica da tentativa do cala-boca. Diz para os jornalistas: não vejam para além das aparências, não tentem interpretar nada, não realizem a análise do dia, não façam mediações inteligentes com seus leitores, limitem-se a carregar vozes, fiquem nos seus lugares de capachos do sistema.

O caso Schirlei Alves então passa a ser o nosso caso, dos jornalistas, dos que fazem jornalismo, dos que tem apreço pelo jornalismo.  E é preciso contar essa história, para que a jornalista não venha a ser condenada por interpretar um fato, por criar uma manchete fora do padrão. Por que se isso acontece é um tiro no peito do jornalismo e aí, não é “jornalicídio culposo”, mas doloso mesmo, porque a intenção é obviamente a de matar qualquer possibilidade de um trabalho que fuja da normose disso que alguns chamam de jornalismo, mas que é apenas um pastiche, limitando-se a dizer que: segundo fulano isso, segundo fulano aquilo. 

O jornalismo de verdade vai além do porta-voz. Ele mexe no vespeiro. Ele expõe a ferida, sangrando. O que Schirlei fez foi isso: de maneira inteligente, expôs, numa expressão tão curtinha, toda a pantomina do julgamento e da ação do estuprador. 

Que se mexam o Sindicato, a Fenaj, as instituições internacionais. A Schirlei não pode ficar sozinha nessa batalha. Notas de repúdio não são suficientes. Há que ter movimento forte. 

Tô contigo, Schirlei Alves.

Homenagem aos vivos - Pedro Martínez Pírez



 Conheci o Pedro numa das Jornadas Bolivarianas no Iela, em 2006. Jornalista da velha cepa, daqueles que sabem farejar uma boa pauta, seja onde for que estiver. Lembro-me dele, numa das mesas, dando conferência bem compenetrado, mas quando o outro convidado começou a falar coisas sobre Cuba ele imediatamente sacou do bolso o gravador – extensão do seu corpo - e registrou a fala. Aquilo era notícia. Óbvio que me tomei de amores. Desde aí ele tem sido nossos olhos e nosso coração em Cuba.

Nascido num fevereiro de 1937, na bela Santa Clara, ele é filho de poeta, o mesmo que lhe apontou o amor pelo jornalismo, pelo rádio e por Cuba. De família pobre, começou a sua vida de trabalhador muito cedo. Aos 12 anos já tinha emprego, bem como os outros quatro irmãos, ajudando no sustento da casa. Com 16 anos já estava na escola do Comércio, seguia trabalhando, e ainda encontrava tempo para a militância anti-Batista editando jornais mimeografados contra o ditador. Não demorou muito e lá estava ele no Movimento 26 de Julho.

Quando a revolução se fez vitoriosa ele estava na Universidade e já no primeiro ano largou tudo para ajudar o novo governo, indo trabalhar no Ministério de Relações Exteriores como diplomata, exercendo funções no Equador e no Chile onde também continuou fazendo jornalismo, sua paixão. De volta à Cuba em 1964 ele funda a revista OCLAE, ligada a organização dos estudantes, atua nos órgãos da Juventude Rebelde e na Prensa Latina. Desde aí não larga mais a caneta nem o microfone. Seu destino seria o de narrar a vida.

Em 1973 chega à Rádio Havana, onde está até os dias de hoje, incansável, na sua missão de informar. Ali já cumpriu praticamente todas as funções, além das coberturas jornalísticas nacionais e internacionais. Não bastasse isso ainda seguiu para Angola nos anos 80, quando ajudou na luta sendo formador de jornalistas em Luanda. De volta a Cuba seguiu sua saga de formador, como professor titular da Universidade de Habana, mas sem nunca largar o microfone.

O Pedro é um desses seres gigantes que, na sua humildade de revolucionário cubano, atua silenciosamente e sem parada. Hoje, com mais de 80 anos, segue sua rotina de “reportero” e dirigente da Rádio Habana. Já recebeu todos os Prêmios possíveis, e segue com seu riso fácil e sua absurda capacidade de doação à revolução cubana e à revolução mundial.

Alto, magro, elegante, ele é uma mistura adorável de ternura, alegria e capacidade de trabalho. Ele é repórter com letras maiúsculas. Ele é jornalista, narrador. Mas, mais que tudo, ele é um cubano repleto de amor pela sua gente e pela sua revolução. A ele faço reverência e registro meu mais profundo amor. Ficará marcado para sempre na minha memória nossas alegres caminhadas no Centro de Florianópolis, com o equatoriano Fernando Sarango, nos encantando com as bugigangas do Mercado Público, do mesmo jeito que nos encantamos nos mercados de rua de Quito. Compartilhamos, cúmplices, desse mesmo amor pelas coisas simples, populares.

Amo-te Pedro Martínez e agradeço aos deuses por esse encontro. Viga longa, meu amigo querido, a ti e a Cuba revolucionária.

Conselho de Saúde do Campeche alerta



O Campeche é um bairro que tem tradição de luta e de organização. Por isso, na manhã desta quarta-feira o Conselho Comunitário de Saúde se reuniu para discutir a situação relacionada à pandemia. O relato é de que estamos vivendo agora, neste mês de dezembro, um dos momentos mais dramáticos do processo, bem mais grave do que no início, em março. Praticamente já não há mais sequer um leito nas UTIs da cidade e os Postos de Saúde estão sobrecarregados ao máximo, com os trabalhadores arriscando a vida todos os dias. Por isso mesmo não é hora de relaxar. Mesmo aqueles que não acreditam que haja uma pandemia, precisam saber que os serviços de saúde estão em colapso. O que significa que se tiverem um infarto, ou precisarem de cirurgia ou qualquer outro tratamento mais complexo – que não tenha nada a ver com a Covid – tampouco conseguirão espaço nos hospitais.

Agora, com a chegada da temporada de verão e a liberação de 100% das vagas de hotéis, a situação tende a piorar ainda mais. Por conta disso é preciso que a comunidade saiba como está a situação do Posto de Saúde, para evitar choro e ranger de dentes depois.

O novo Posto de Campeche foi inaugurado pelo prefeito Gean Loureiro com a promessa de colocação de quatro equipes, com médicos, enfermeiros e todos os profissionais necessários para o atendimento. Mas, isso não aconteceu. Apenas outra nova equipe foi alocada. Desses trabalhadores um número bastante expressivo está em trabalho remoto por conta de serem do grupo de risco. Isso significa que a equipe encolheu ainda mais. Apesar de ter quatro médicos atendendo, as equipes estão limitadas a duas. Nesses meses de pandemia o atendimento presencial ficou focado apenas nos casos de Covid. As demais demandas são resolvidas por telefone.

O Posto tem atualmente seis números de celular ativos para receber as chamadas. Cada um deles recebe mais de 450 mensagens por dia. É praticamente impossível dar vazão aos pedidos na velocidade necessária. Isso estressa os trabalhadores e também a comunidade, que se sente abandonada. Isso leva a cenas de agressão e gritaria no posto, o que deixa os profissionais ainda mais esgotados, pois ninguém quer saber dos problemas. Só querem atendimento.

Outro problema enfrentado pelos trabalhadores são as pessoas que omitem os sintomas da Covid e buscam atendimento no posto e só depois de terem esperado e sido atendidos é que vai se descobrir que podem estar infectados. Aí já podem ter espalhado o vírus para muito mais gente. “Quando sabemos de antemão que a pessoa tem sintomas todo o atendimento é diferenciado, inclusive os equipamentos de proteção da gente. Omitir os sintomas expõe todo mundo ao risco”.

O tempo todo em risco os trabalhadores do Posto também enfrentam a demora dos resultados dos exames para confirmação de Covid. “Se alguém apresenta sintoma, logo é afastado e faz-se o teste. Mas os resultados demoram demais e muitas vezes o trabalhador  retorna ao trabalho e ao convívio sem saber se teve ou não o vírus. O teste deveria ser rápido para que pudéssemos isolar imediatamente toda a rede de contato”. Essa é na verdade uma das formas mais acertadas de cuidar das pessoas. No Uruguai, por exemplo, onde um infectologista criou um teste rápido, nacional, e a testagem foi massiva, e as mortes não dispararam. Porque ao ser testado e comprovado a Covid, a pessoa pode ser isolada e toda a sua rede de contatos detectada. Aqui no Brasil nada disso acontece e a proliferação do vírus segue a todo vapor.

Agora, com a temporada e a circulação de milhares de turistas, a perspectiva é de caos. E é preciso relembrar: o posto de saúde não atende apenas Covid. São todas as doenças.

A reunião do CCS juntou além dos conselheiros, diversas lideranças comunitárias e entidades para discutir um plano conjunto. A intenção é massificar a informação sobre prevenção e vigiar para que as pessoas tomem o máximo de cuidado nos espaços públicos. Não há medicamento para prevenir a Covid. A melhor estratégia ainda é o isolamento social, a máscara e o lavar as mãos.

É certo que nosso verão é lindo, nossa praia também. Mas, é melhor que estejamos vivos para curtir. É muito importante que a comunidade entenda que o trabalho dos profissionais de saúde do posto local tem sido árduo e arriscado. Há que protegê-los também, pois quanto menos gente tiver no posto para fazer o atendimento, pior é a situação. Estamos vivendo um momento dramático e a linha entre a vida e a morte é ténue.

Os meios de comunicação estão sempre divulgando o número de pessoas recuperadas, como se isso fosse uma grande vitória contra o vírus. Não é. Todos aqueles que têm contato com o vírus e desenvolvem sintomas podem ter graves problemas de saúde. Há pessoas que perdem olfato, paladar, desenvolvem problemas cardíacos, respiratórios. O sofrimento é grande, mesmo depois de ser “curado” da Covid. Então, não dá para vacilar. Essa doença não é brincadeira.

Cuidado, cuidado e cuidado. Essa é a orientação. Não aglomerar, seguir realizando a limpeza de tudo o que tocar e apostar no isolamento no tanto que for possível. Não sendo, usar a máscara e o álcool gel.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Brasil: o assalto ao estado


O Brasil segue em passos largos no processo de contaminação pelo coronavírus, vivendo um de seus piores momentos desde julho, ultrapassando a marca dos 300 mil contaminados em uma semana. Enquanto isso o presidente da nação desinforma sobre a vacinação, faz piadinhas, inaugura exposição de suas próprias roupas e vai pescar. Tudo isso diante uma população completamente apática. Os gritos só aparecem nas redes sociais e em um ou outro meio de comunicação como o jornalão Folha de São Paulo que escreveu no seu editorial que “a estupidez assassina do presidente passou de todos os limites”. Mas, o fato é que o presidente passa dos limites a cada semana e isso só faz aumentar o índice do seu limite porque, ao que parece, nunca é suficiente.

Só para falar da pandemia é preciso lembrar que o país foi deixado a sua própria sorte, sem um plano nacional de combate ao vírus, com os governadores e prefeitos tendo de agir cada um por conta própria. A única coisa articulada em nível nacional ao longo desses meses da peste tem sido a ação dos empresários para que nada feche e a roda do capital siga girando. Tem funcionado e é o que mantém o país com altas taxas de contaminação.

Agora, quando o mundo já inicia o processo de vacinação, com pelo menos quatro propostas de vacina, o Brasil, de novo, viverá a guerra da politicagem. O presidente diz que vai coordenar o processo de vacinação, mas não faz absolutamente nada. O Ministro da Saúde diz que vai ter um plano “caso houver demanda”. É o horror. Ao mesmo tempo, quando alguns governadores anunciam planos de compra de vacina e de vacinação, o governo federal ameaça com retaliações. Uma situação que em qualquer outro lugar do mundo colocaria a população nas ruas em protestos massivos. Aqui não. Os jornais divulgam números de aprovação ao governo que chegam aos 37% e uma taxa de 22% dos brasileiros que afirmam que não vão se vacinar em hipótese alguma, porque a vacina é um plano comunista para se apoderar do cérebro das pessoas.

E assim, apesar de termos laboratórios de extrema qualidade, como o Butantã, e um dos melhores processos de vacinação do mundo, a tendência é caminharmos para o desmonte do sistema de saúde e de tudo aquilo que se construiu com muita luta.

Mas, engana-se quem pensa que essa é uma nave desgovernada. Não é. O timoneiro sabe muito bem para onde está levando o país. Inclusive ele anunciou isso com todas as letras durante sua campanha eleitoral. Quem depositou o voto na urna sabia muito bem que a proposta era o desmanche e a destruição de “tudo isso que tá aí”. Logo, não há surpresas. O capitão do mato entrega o país para a mão privada estrangeira e nacional e, por conta disso, vai engordando sua conta bancária para - quando não for mais necessário - sair de cena, muito bem remunerado. Junto com ele atua um Congresso Nacional muito bem orquestrado e alinhado à essa política de destruição. É a nacionalização do conhecido bordão do velho comunicador Silvio Santos “tudo por dinheiro”.

Então, quando forem dizer que não há um plano de vacinação nem qualquer plano para o país, pensem bem. Há um plano sim. O plano é assaltar o estado no mais curto tempo. Pegar o que der.

Enquanto isso, as Centrais sindicais estão mortas, a maioria dos sindicatos também. Mesmo aqueles que representam os trabalhadores que jamais tiveram a opção de ficar em casa. Não há movimento entre os comerciários nem nos trabalhadores da indústria. Só há medo. Medo de perder o emprego. Medo de morrer. Medo. É o caldo perfeito para que o assalto ao estado aconteça sem maiores tremores.

O plano, portanto, segue, com competência, enquanto a morte nos espreita.

É tempo de ocupar as ruas. Ou isso, ou o matadouro.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O cuidado sem remédios, ruim para o cuidador, bom para o velho



A vida da gente é feita de escolhas. Elas definem nosso caminho. Meu pai me chegou há cinco anos com diagnóstico de Alzheimer. Estava fraquinho, não conseguia andar muito menos pegar os talheres para comer. Foi como um furacão em casa, pois tudo teve que começar a ser ajeitado para suas necessidades. Eu nada sabia de Alzheimer ou cuidado com pessoas dementes. Haveria de aprender no corpo-a-corpo com a realidade. Nos primeiros meses foi difícil demais, mas, com o andar da carruagem a gente vai se adaptando.  

A primeira batalha foi com os remédios. Que fazer para segurar as crises de violência, os gritos na madrugada, as alucinações, o desespero da fuga, a insônia permanente? A única coisa que consegui pensar foi em médico e remédio. E fui à luta. Na parceria com o médico começamos a experimentar algumas medicações. Mas, cada remédio dado, pioravam as crises. Houve um dia em que ele quase arrancou o portão da casa, aos gritos de socorro, pela madrugada adentro. Desses remédios que se usam para o Alzheimer, usei todos, mas como piorava eu tirava.  

Até que decidi não transformar mais o meu pai num campo de testes. Escolhi cuidar sem remédio. Iria aguentar as crises apenas no osso do peito. Durante o dia, uma gota de canabidiol, que não é remédio, é vida. E quando a ansiedade ficava muita, um cigarro, dos mais fortes, pois a nicotina, me ensinou um médico, é forte calmante nessas situações. Assim temos caminhado nesses anos.  

Alucinações o pai não tem mais e tampouco crises de violência ou tentativas de fuga. Consegui estabelecer uma rotina durante a noite, com a qual consigo fazer com que ele durma algumas horas. Bom, e qual é preço disso? Cuidado 24 horas. Definitivamente o que substitui os remédios é a presença, a atenção, o cuidado, as coisas que fazemos juntos. O dia inteiro inventando coisas. Isso obviamente cobra um tempo danado da gente, e praticamente toda a vida que a gente tinha deixa de existir - só há um hiato para o trabalho, ainda necessário. De resto, os dias são passados em função dele, pois se a atenção não chega, o bicho pega.  

Entendi que esse caminho é bastante duro para o cuidador porque exige atenção integral, entrega total. É dureza. Não são todos os que podem fazer isso. Algumas pessoas até têm sucesso com a medicação. Mas eu preferi desistir. Como o pai tem saúde de ferro não há sequer outros medicamentos para atrapalhar. O único remédio que ele toma é o da pressão que o médico disse que não é bom parar. Como é só um, fica bem fácil administrar.  

O resultado dessa escolha é ver o pai bem de boa, fazendo suas pequenas loucurinhas como colocar coisas no vaso do banheiro, comer todas as bananas da fruteira, mexericar no armário de comida, espiar no portão conversando com algum amigo imaginário. Ele não fica irritado, não fica violento, não fica ansioso. Só perde a tramontana na hora de trocar de roupa. Não gosta que lhe baixem as calças. Mas, com paciência, tudo dá certo. Também não gosta de banho e o jeito é levar ele para o box, com roupa e tudo e ir molhando devagar. Conforme a roupa vai molhando, ele mesmo vai tirando. É bem engraçado. Lógico que é uma operação demorada, mas temos todo o tempo do mundo. 

Depois, é ficar com ele no alpendre vendo os passarinhos, os gatos, os cachorros, ouvindo música, tomando uma cervejinha. É pesado pra mim, mas essas cenas do cotidiano, valem toda a pena. Como hoje, depois do banho, ele dormitando à sombra, com o gatinho a lhe lamber a mão. Nenhuma rugosidade na sua adorável vida. Só o passar das horas. Por vezes conversamos, bastante tempo, numa língua estranha. Mas, nos entendemos.

Tudo o que eu queria era que as pessoas pudessem ter esse tempo para cuidar de seus velhos. Pois, com certeza, isso lhes dá um final de vida sereno, cheio de alegria e dignidade. Coisa que eles merecem depois de tanta vida de trabalho. Não é fácil, mas, vale a pena. 


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O tempo dos maus? Onde estás, felicidade...


A morte de um mendigo numa padaria em São Paulo - ao qual, antes, foi negada ajuda - e que, depois, teve seu corpo coberto por um plástico, enquanto a vida no entorno seguia sem atropelos provocou muitos comentários nas redes sociais sobre a falta de generosidade das pessoas. Há que falar sobre isso.  

Frequentemente ouvimos que estamos vivendo o pior dos mundos, que nunca houve gente tão ruim ou descabeçada. Não é verdade. Esse tipo de gente sempre existiu em todos os tempos. Cada tempo tem sua cota de maldade, de terror, de medo. Basta a gente pensar como seria, sendo pobre, trabalhador ou mulher, viver no século 16 ou 17, por exemplo, no Brasil? Ou na Idade Média, na Europa? Ou no Império Romano? Ou em Bagdá, no século III? Ou no Egito antigo? Ou na Mongólia? Ou na China imperial? 

Esse não é o pior dos tempos. É o nosso tempo. E nesse tempo, a tecnologia possível nos permite, inclusive, saber o que acontece em cada canto desse planeta. É o que torna os terrores ainda maiores, porque são mais visíveis. 

E assim como temos de analisar porque nos tempos passados foi possível tanta maldade humana, há que refletir porque hoje é assim. Maldade, indiferença, ódio. Não creio que haja uma explicação antropológica, mas sim uma explicação social. É o tipo de sociedade que existe que faz com essas pessoas possam se expressar e se manifestar. Quais as forças dominam a sociedade em cada época? Esse é o tema. 

Falando sobre o nosso tempo há que observar que o mundo capitalista alfabetiza os seres humanos, desde a tenra idade, para a competição, o individualismo, o egoísmo. Há que vencer o outro. Há que eliminar o outro. Há que disputar. Não se ensina solidariedade, cooperação, empatia. Isso é coisa de um grupo muito pequeno de pessoas que foge da caixa. A regra é olhar para o que está do nosso lado com absoluta indiferença sobre seu destino. Que se lasque. É por isso que a maioria não liga para um mendigo doente, um corpo no chão. Não há ali uma maldade intrínseca. Há um aprendizado social.   

Não sem razão que propostas sociais como o anarquismo e o comunismo são tão combatidas. Porque essas são formas de organizar a sociedade que escapam da lógica de dominação de uma minoria sobre a maioria. São propostas que, demarcadas suas diferenças, tem como elementos centrais a lógica da cooperação. Ou seja, não se compete, a proposta é atuar junto para que todos desfrutem da vida à larga. É justamente por isso que nesse tempo, de capitalismo tardio, a ideia de comunismo precisa ser demonizada. Imaginem as pessoas compreendendo o que seja isso? Imagina viver sem precisar destruir o outro? Viver sem ser explorado? Viver sem fome? Viver com acesso à terra, à moradia? Não. Isso impede a sociedade de avançar, dizem. É coisa do demônio.  

A ideologia obscurece a verdade. A mentira assume o status de verdade. E as pessoas, ensinadas desde o berço, acabam acreditando que se trabalharem muito poderão vencer na vida. E para isso, há que ir derrubando qualquer um que cruze o caminho. A sociedade do mérito, que é uma falácia.  

Então, antes de clamar aos céus sobre o tamanho da maldade no mundo, há que construir escolas de solidariedade, da prática do comum. Escolas não formais, é claro. Mas, escolas na vida, nos bairros, nas igrejas, nos partidos políticos, nos movimentos sociais. Há que alfabetizar para o bem-viver. Isso não brota do nada, muito menos da nossa vontade. É uma prática política. E que não pode ficar relegada a guetos, a ações pontuais. Precisa ser massiva e organizada. Precisa negar o capitalismo. Precisa ser uma força de destruição do que aí está. Não pode ser uma prática de convivência. É de destruição da forma social capitalista. Sem isso, seguiremos com nossas lágrimas. 

A felicidade é uma construção social e coletiva. A felicidade é o horizonte do comum. Não vai existir no capitalismo. Não vai. 


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Réquiem para Diego


Hoje foi um dia que chorei um bocado. Cada vez que entrava na internet e via algum escrito sobre Diego Maradona. Uma sensação de perda, profunda e dolorida. O Maradona era um cara especial. Um tipo que tendo ficado famoso poderia ter simplesmente vivido sua fama, sua grana, tornando-se um babaca, como tantos que conhecemos. Não é fácil sair da pobreza, conquistar o mundo e não se perder. Diego perdeu-se em muitas coisas. Álcool, drogas, mulheres. Sabe-se lá que dores o atormentavam. Sabe-se lá se foi apenas deslumbramento. O pequenino de Lanus  aproveitou a vida à larga. Teve seus ataques, mostrou sua sombra, expôs os demônios. E ele poderia ter ficado nisso. Mas, não. 

Diego decidiu caminhar pelas estradas conflagradas. De repente, lá estava ele com Fidel, o demônio comunista. Declarava seu amor à Cuba e tatuava-se com a cara do Che, seu irmão geográfico. E amou Chávez, e amou o bolivarianismo, e se misturou com as gentes sofridas desse imenso continente. Diego latino-americano, Diego cubano, venezuelano. E ficou feliz com Mujica, com Lula, com os Kirchner, com Evo. Maradona caminhava pelas nossas estradas, sonhava os sonhos da gente, de uma Pátria Grande, de uma Abya Yala soberana. Diego era parça.

Diego Maradona já era um saco de pancadas pela forma como vivia. Não precisava achar mais motivos para ser demonizado. Mas não se achicou. Mostrou-se na sua inteireza, como um sujeito político, como um homem engajado, e levantou as bandeiras que acreditava serem necessárias para as gentes latino-americanas. Diego foi pura paixão. Pelo futebol, pela Argentina, por Nuestra América. Por isso essa tristeza. Encantou um irmão. Cheio de defeitos, de ambiguidades e contradições, mas absolutamente certo acerca do que deveria amar.

Não é sem razão que hoje choram os amantes do futebol, os argentinos, os cubanos, venezuelanos, bolivianos, uruguaios, equatorianos, colombianos, paraguaios, peruanos, brasileiros, salvadorenhos, guatemaltecos, nicaraguenses, enfim, todos os que aprenderam a amá-lo, em campo e fora dele.

Diego foi um deus do futebol, e poderia ter ficado ali, naquele pedestal inútil de conversinha mole. Mas não, ele desceu, fez-se irmão, parceiro, amigo. Fumava charuto cubano, usava boné com estrela, sapateava na cara dos que apenas o queriam como um macaquinho amestrado.

Diego viveu. Atormentado, sofrido, mas também alegre, pleno, cheio de amor por esse mundo ainda não-visto, ainda não-constituído, mas que caminha em cada um de nós que coloca seu tijolinho na luta pelo mundo novo. esse meio-dia que virá. 

Que as nossas lágrimas lavem todas as suas trapalhadas e que ele possa entrar no céu dos bons, abençoado pela Compadecida de Suassuna. E que lá de cima, com seus parceiros de vida que também já encantaram, sopre segredos para que possamos enfrentar melhor a caminhada.

Gracias, gordo, gracias... por ter escolhido nossa gente em vez de ficar na indiferença.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Os negros e a chibata



Não, não vi o vídeo. Apenas a imagem se repete na minha linha da vida o tempo todo. O homem negro sendo espancado por dois seguranças, enquanto aparentemente uma mulher incentiva. Hoje é o Dia da Consciência Negra e a situação se reveste de especial perversão. É assim aqui, nos Estados Unidos, na Europa, em qualquer lugar. Ser negro é ser alvo. Aqui em Joinville uma mulher, eleita vereadora, também teve a vida ameaçada, porque cometeu a ousadia de ser petista e negra.  

Negro não pode falar alto em nenhum lugar. Porque matam. Negro não pode andar na rua de noite. Porque matam. Negro não pode ter carro bom. Porque matam. Negro não pode olhar feio pra ninguém. Porque matam. Negro não pode se arvorar a ser político. Porque matam. Negro tem que ficar no seu lugar. E que lugar é esse? O da sombra. Negro tem de olhar baixo, tem de ser silencioso, servil. Negro não pode ostentar, nem dar risada alto. Tampouco pode estar na rua depois da meia-noite, nem andar de boné ou de capuz. Negra tem de se comportar, não pode circular em loja chique. Negra tem de se contentar com emprego ruim e aceitar. Essa é nossa sociedade, que é nascida da violência, do estupro e do tráfico negreiro. Hoje, temos na presidência uma criatura abjeta que cristaliza essas práticas, que incita a violência, o estupro, o racismo. Então, os desgraçados acreditam que não tem a menor importância matar, socar, violentar. Fazem tudo à luz do dia, diante das câmeras e postam nos seus perfis. Está tudo permitido. Fazem isso com os negros pobres em maior medida, mas, não se enganem, ninguém está salvo, nem o otário que hoje dirige a Fundação Palmares. Nem ele. Porque ser negro é ser alvo. Essa é uma verdade que ninguém pode negar. Como ultrapassar essa cerca, de ser uma sociedade que mata negros? Como superar essa chaga aberta? Reforma e Revolução. Atuar agora, na luta pela redução de danos, mas também pavimentar o caminho da revolução. Porque é preciso viver agora. É preciso existir sem medo agora. É preciso poder brincar na rua agora, ser vereadora agora, circular nos lugares agora.  

Mas, ainda também é hora de fazer os desgraçados largarem a chibata, como um dia os marinheiros liderados por João Cândido fizeram ao ocuparem o encouraçado Minas Gerais, no Rio de Janeiro. "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira... Vossa Excelência tem o prazo de 12 horas para mandar-nos uma resposta satisfatória..." Assim falava já como almirante, o marinheiro comandante da revolta acontecida em 1910, João Cândido, com os canhões apontados para o palácio, no que ficou conhecido como a Revolta da Chibata. Vários navios aderiram. Os negros em luta enquanto na praia, o povo acompanhava, maravilhado, o balé dos navios amotinados. Os negros, armados, definindo sua história e a dos que viriam depois. João, que era um homem viajado, sabia da história do Encouraçado Potenkin, quando os marinheiros russos deram início ao que depois virou a revolução. Ele sabia que era preciso atacar e atacou. Foi vitorioso.  

É fato que depois da revolta o governo matou muitos dos amotinados, prendeu, demitiu, todo o kit básico da resposta do poder. Mas, a chibata nunca mais voltou. É assim que se avança.  

No Brasil, segue sendo necessária a revolta da chibata. Outra vez, outra vez e outra vez. Até que um negro e uma negra possam simplesmente ser em qualquer lugar do país.  

Viva o Dia da Consciência Negra. Uma consciência de revolução! Viva Zumbi, Dandara, Tereza de Benguela, João Cândido, João Gama, Maria Firmina, Carolina de Jesus, e tantos outros.  

Estamos juntos, agora e amanhã.


A vaca emburrada


Tenho a mania de juntar coisinhas, pequenas e singelas lembranças dos lugares por onde andei. Com isso vou enfeitando o que chamo de “altar dos meus afetos”. Pedrinhas, pedaços de pau, bonequinhos, enfim, mimos. Com a doença do pai, eles foram sendo sistematicamente eliminados. Faz parte da agitação do fim de tarde, um desesperado mexe-mexe. Aí, as mãozinhas vão pegando os meus recuerdos e arrancando cabeça,  tirando pedaços. Um a um eles foram desaparecendo. As lembranças vivem apenas na minha cabeça agora. Uma das poucas coisas que ainda conservo à vista é um pequeno altar com meu São Francisco, o quilin (antiga divindade chinesa), e um presépio que fica montado o ano todo porque eu definitivamente amo essa hora do nascimento do meu jesusinho. Nesse presépio, que é bem estranho – com os personagens meio desproporcionais - tem uma vaca, que, por supuesto, devia estar na manjedoura. Ela é gozada, grande demais diante das outras peças - como o camelo que é minúsculo - e tem uma singularidade: a cara da vaca parece emburrada. Virou então uma referência para todos nós na casa. Assim, quando temos de clamar por algum milagre a gente chama: “santa vaca emburrada, rogai por nós”. E ela ajuda. É nossa santinha.  

Pois hoje o pai danou de mexer no presépio e eu meio desesperada porque também não dá pra falar pra não pegar, que aí mesmo é que ele pega. E puxa o são José, e puxa Maria, e pega as ovelhas, e olha o camelo, e muda os reis magos de lugar. E eu só rezando pra ele não pegar a vaca emburrada. Mas, não deu outra. Pegou. E vira pra cá, e vira pra lá. Até que... pimba. Lá se foi a vaca emburrada para o chão. Ai jesuzinho... Já era a minha santinha. Fiquei estaqueada. Esperando. Quando ele finalmente se acalmou e deixou meu presepinho fui ver o que havia restado da vaca, caída embaixo da poltrona. Pois para minha surpresa lá estava ela, intacta. Milagre.  

Essa minha santa vaca emburrada é forte mesmo. Aleluia.



terça-feira, 17 de novembro de 2020

Eleição x Revolução



Como sempre, depois das eleições, a gente acorda meio atordoada. É de lei. A gente entra no processo sem esperança, a gente sabe que as eleições são definidas pelo poder econômico, que há pouca consciência crítica e tal, mas, no andar da carruagem dá aquela animadinha. Quem sabe, dessa vez? Quem sabe, um milagre? Então, a derrota das pautas da esquerda nos traz de volta ao mundo real. 

No campo institucional praticamente não há espaço para as propostas de mudança estrutural. É uma completa ilusão. O conservadorismo é a regra, o sistema se mantém intacto. Algumas pequenas vitórias aqui e ali levantam a moral, mas é só uma musculação da esperança, porque, de fato, mudam muito pouco o estado das coisas. Ser um vereador de esquerda, por exemplo, numa Câmara qualquer, ajuda a denunciar, a inspirar a consciência de classe, a alfabetizar politicamente, mas tem pouca interferência na vida das cidades. Os projetos da direita, que definem as cidades, passam, e ponto final. Há, óbvio, avanços, na medida em que colocam temas que não seriam colocados, mas é tudo. No que é estrutural, os inimigos vencem.

Isso nos leva ao ponto: só uma revolução pode efetivamente colocar o mundo “patas arriba”. Não há outra escapatória. As tentativas institucionais, como na Bolívia, na Venezuela, mostram que as conquistas são poucas e que as reformas estruturais caminham com exasperante lentidão, além de serem sistematicamente atacadas. Já Cuba, que botou a elite reinante pra correr, avançou muito e só não avançou mais porque está bloqueada e isolada no mar do capitalismo. Só que lá houve mudanças na estrutura. E como disse um otário aí, lá eles “só” têm educação, saúde e segurança de qualidade e universal.  Isso não é bolinho. Foi conquistado no braço, revolucionário.

Assim que a ressaca da eleição, esse véu de maya, só aponta um caminho. Esse caminho pode parecer inexistente, nebuloso, inalcançável. Mas, uma olhadinha na história e a gente já percebe que ele pode aparecer assim, do nada, no meio da bruma, nos mostrando que ainda que não tivéssemos percebido, ele estava lá. Daí a necessidade de formar as colunas de combatentes. Preparar e preparar, pois quando o vento dissipar a cortina, temos de estar prontos para caminhar, combater e vencer.

Acordei triste, mas já me animei e tal qual Morgana, a bruxa celta, já estou de pé, na beira do lago, esperando a barca.



domingo, 15 de novembro de 2020

O sistema é bruto



No mundo capitalista o espaço reservado ao pobre é o da servidão. Quem aceita isso vai arrastando a miséria. Quem não aceita, toma porrada. Não há concessões. Passeatas, protestos, manifestações, tudo o que envolver reivindicação, trabalhador, gente pobre, é enfrentado na bala. A polícia não arrega. E nós, no Brasil, tivemos provas bem concretas nos últimos anos, quando as passeatas dos apoiadores do atraso – os riquinhos e a classe média - eram protegidas pela força bruta, e até fotos eram sacadas com os soldados, “amigos da paz”.  

Quando a noite cai, tudo o que acontece nas comunidades de periferia, nas favelas, nos bairros empobrecidos é bandidagem. E a polícia se compraz em entrar atirando. Aqui em Florianópolis, dia desses, mataram um menino de 12 anos. “O que um guri desses estava fazendo na rua a essa hora?”. Meia noite de uma noite quente. Deveria estar no teatro?  Ah, mas era uma comunidade pobre e nela, para a força, tudo que se move, de noite ou de dia, é bandido. E há que combater o tráfico. E quando a comunidade em luto se rebela em protesto, mais balas, mais porrada. Para que o medo siga grande e imobilize. 

Nos beach clubes de Jurerê, praia da elite, a droga rola solta. Mas, lá, não chega a força matando tudo que se move. Não. Lá estão os jovens brancos, sarados, criados a toddy, embriagando-se com champanhe, dando lucro aos bares da moda. Ali tudo é permitido: cocaína, heroína, boa-noite cinderela, estupro, o que for. Nada está fora da lei. Não há pé na porta, não há tiroteio, não há combate ao tráfico. Não. Traficante? Bandido? Esse tem cor e tem endereço certo. Não vou nem falar nos donos reais das drogas, né? Que certamente não são os gurizinhos da favela. Esses não têm aviões, nem salvo condutos presidenciais. Eles são apenas vendedores, um elo fraco da corrente.  

O sistema é bruto e existe para foder com a maioria. Uma pequena parcela dessa gente, luta. Outra parcela, bem grande, aceita a servidão, seja por medo, por desconhecimento, por puro cansaço. Parece que se mantiver a cabeça baixa e aceitar a migalha, poderá viver em paz. Mas, não. Isso é ilusão. Mesmo o que se ajoelha vai ser pego, mais hoje, mais amanhã. Pode estar na rua numa “hora imprópria”, pode ser confundido com alguém, pode ter a cor errada, no lugar errado. Pode estar com a roupa errada ou segurando um guarda-chuva. O sistema não poupa ninguém, se for da classe trabalhadora.  

Então, a única saída é enfrentar o bicho. Na porrada mesmo. No protesto, na manifestação, na batalha nas ruas. Porque quando muitos se juntam contra a minoria, acontecem coisas fabulosas, como a revolução russa ou a revolução cubana. O sistema tem um poderoso braço de propaganda, que engana, que mente, que esconde. Então, a parada é dura, dura mesmo. Mas, há que quebrar esse espelho de mentiras. E mudar as coisas. O sistema é bruto, mas podemos ser mais. O que ocorre é que não há escolhas. Quem luta pode morrer, mas quem não luta também. Então, qual vai ser? Que sejamos capazes do grito dos zapatistas. Já basta!  

Que viva o povo em luta! 

Que nossas noites tragam a primavera.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

O Brasil e as eleições municipais


As eleições municipais acontecem agora em novembro e, salvo algum evento cósmico, os candidatos ligados ao atraso e à morte podem levar as prefeituras em grande parte dos mais de cinco mil municípios do país. Também pode ser que as Câmaras de Vereadores fiquem recheadas de moralistas e negacionistas. Uma vertiginosa queda ao fundo do poço. Isso porque, passados quase dois anos de governo de Jair Bolsonaro, a população ainda não conseguiu avaliar de maneira clara o tamanho do buraco no qual estamos metidos. Desde o primeiro dia, a lógica foi a da destruição. Não se tratava do “mudar tudo isso que taí”, mas sim “destruir tudo o que há". E foi por isso que cada nome para os ministérios foi seguindo a bizarra lógica do seu antagonista. Ou seja, para o ministério da Agricultura, alguém que apoia o agronegócio. Para o meio ambiente, quem quer destruí-lo, para a fazenda, um Chicago boy privatista e entreguista, para a Saúde, um militar sem formação e assim por diante.  

Quando a pandemia se abateu sobre o país, a partir de março, o que se viu foi um festival de absurdos, com o completo abandono da população. O governo federal não apresentou um plano nacional de combate ao vírus e de proteção das gentes. Pelo contrário. Minimizou a doença e atuou através de mentiras e opiniões sem base científica, receitando cloroquina e ivermectina, como prevenção. Um completo fracasso que já nos cobrou quase 200 mil vidas. A saída política foi jogar a culpa das mortes sobre os governadores e prefeitos e é justamente por isso que agora, nas eleições, estamos vendo nas propagandas dos chamados “bolsonaristas” a “denúncia” de que prefeitos e governadores “comunistas” foram os responsáveis pelo desastre econômico e pela perda das vidas. Ou seja, quem procurou proteger a população é atacado como responsável pelas perdas econômicas e humanas. Uma inversão completa dos fatos, mas muito bem amarrado via o gabinete do ódio e a máquina de mentiras dos aliados do presidente. O marquetim tem sido eficaz.  

A eleição nos Estados Unidos unificou de maneira organizada esse grupo que compõe a base de apoio de Bolsonaro. As pessoas passaram o último mês em intensa campanha, trazendo para a realidade local os temas que comandaram as eleições no país do norte. Segundo eles, o próprio deus estava atuando no sentido de eleger Donald Trump, homem eleito pelo divino para salvar o planeta dos pedófilos, comunistas e ladrões de crianças. Como eles colocam nessa turma os adversários políticos de Bolsonaro, a campanha nos EUA serviu para alavancar o debate na campanha eleitoral local. Vencer os candidatos “comunistas” é ponto de honra para esse grupo.   

A derrota de Trump nos Estados Unidos deixou a militância bolsonarista perplexa. Mas foi por pouco tempo. No mesmo dia em que se anunciou Biden como o novo presidente começaram a circular as informações de que tudo isso faz parte do “plano” de Trump para retornar com ainda mais poder. Então, a mensagem da semana é: reforçar as campanhas dos candidatos do presidente para fortalecer o cinturão de proteção em torno de Trump, pois ele vai virar o jogo. E toda hora circulam fotos de novas cédulas de votação encontradas ali e aqui que darão a vitória ao amado do senhor: Donald.  

Não bastasse isso, o presidente do Brasil continua atuando no sentido de desacreditar qualquer vacina contra o coronavírus que venha do “eixo do mal”: Rússia, China ou Cuba. Entre seus apoiadores as informações que circulam é de que essas vacinas transformarão as pessoas em autômatos comunistas, portanto, ninguém deve tomar. Hoje, depois que a Anvisa suspendeu a pesquisa que vinha sendo tocada pelo Instituto Butantan, com base em informações falsas de que uma pessoa voluntária do teste havia morrido por conta da vacina, os grupos estão em polvorosa. “Estamos salvos dos comunistas”, “Graças ao bom deus não haverá vacina chinesa”, “nos livramos da vacina do Dória”. E mesmo que a informação correta já tenha sido anunciada, de que o homem morto se suicidou e que não há ligação com o teste em si, nada muda. A mentira já pegou. Afinal, se a mais importante agência de vigilância sanitária do país veio à público suspender a vacina, é porque alguma coisa há. Navegar nesses grupos é verdadeiramente desafiar a sanidade.  

E assim vamos seguindo para as eleições, em meio a toda essa ideologização da morte. Bolsonaro politizou o trabalho de combate ao coronavírus e agora segue politizando a busca pela vacina. Se ela não vier dos Estados Unidos, ele não vai comprar. Dane-se a população. Chegou ao ápice da estupidez ao comemorar a morte do voluntário da vacina, divulgando nas redes sociais que “Bolsonaro ganhou mais uma”. Sim, ele tem essa estranha mania de se referenciar na terceira pessoa, como se fosse o avatar de si mesmo. O “ganhar”, no caso, é desacreditar a ciência, o Instituto Butantan e, por tabela, seu agora adversário, João Dória, que por descolar-se da sua política durante a pandemia virou milagrosamente “comunista”.  

A vertiginosa queda do país nas mãos desses tipos segue, aparentemente sem freio. Ao que parece, os brasileiros precisarão de mais tempo para perceber toda a perversidade que se esconde por trás das políticas negacionistas do governo federal. E enquanto o grupo de apoio do presidente se movimenta alucinadamente à base das teorias conspiratórias e com a espada de Javé nas mãos, a corrupção familiar segue a todo vapor, o judiciário faz vistas grossas, os deputados se enrolam em alianças fisiológicas e a classe dominante vai acumulando sem se sujar. O sistema, que Bolsonaro dizia que ia destruir, segue azeitado e forte, alicerçado por ele e seus seguidores. 

Por fim, ainda que possa uma que outra prefeitura ser conquistada pelos partidos de centro-esquerda, provavelmente o nosso “day after”, o pós-eleição, se converterá em um festival de horrores.  

Há uma longa jornada ainda para se cumprir.  

sábado, 7 de novembro de 2020

O pai, o Steve e o Hegel

 


Meus dois velhinhos cara-a-cara

Os dias pandêmicos são longos e lentos. O pai acorda cedo e o dia passa devagar. Nos momentos em que ele dorme procuro fazer meu trabalho do Iela, as leituras dos jornais latino-americanos, o acompanhamento das notícias nos sítios, redigir os textos, fazer as artes do instagram, realizar as postagens nas redes e plataformas, fazer entrevistas gravadas, participar de alguns debates. É uma correria porque ele dorme pouco. E quando está acordado fica difícil eu me concentrar. A atenção tem de ser para ele. Anda por todo canto, mexe em tudo, intisica os cachorros, os gatos, caça bastante confusão. Há que ficar atenta, e ainda assim, vez em quando ele cai ou se machuca, porque basta um segundo de distração e pimba.  

Na última semana comecei a fazer o curso do Hegel. Leitura sistemática da Fenomenologia do espírito. É bem engraçado. Porque durante o dia eu tento abrir algumas brechas para a leitura, mas a cada parágrafo há que parar para limpar um xixi, um cocô, ou tirar o pai de alguma trampa. Imagina estudar filosofia assim? Desgasta. Nossa senhora da vaca emburrada, valei-me.  

Não bastasse isso agora o cachorro que mora aqui em casa, que eu resgatei da rua há 12 anos, também está velhinho. Então, ele tenta pular o muro ou subir na mesa, mas não está mais conseguindo dar o impulso. O resultado é que ele se estabaca todo no chão. E claro, tal e qual o pai, não adianta falar nada, porque não há compreensão. Aí preciso ficar encontrando formas de criar barreira para ele não tentar os pulos. É um baita estresse, porque eu não dou conta. Tem hora que é o pai tentando abrir o portão de um lado, e o Steve querendo saltar o muro do outro, e eu tendo de correr de um lado pra outro para evitar problemas. O Hegel só me olha de revesgueio, apontando minhas certezas sensíveis. O meu ser-aí se desvanece.  

Quando a noite chega e o pai já está deitadinho, eu olho para o Hegel, ele me olha. Mas, então, decido. Porfa, preciso de uma alienaçãozinha. Aí vou ver Discovery, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve. A terceira temporada, um arraso. Entschuldigung, Hegel, mas o Saru vence.  

Quando a barra do dia desponta, lá pelas cinco horas, enquanto o pai já começa com seu deambuleio no quarto, eu retomo o Hegel, só um pouquinho, até que tenha de sair para as tarefas. Não é fácil, mas, quem disse que seria? 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Eleições nos Eua



Então hoje se encerra mais um show, que é com o que se parecem as eleições estadunidenses. Comícios espetaculosos, muita produção, muita grana. A forma se sobrepondo ao conteúdo. Dois partidos que são como dois irmãos siameses, duas cabeças no mesmo corpo. Pelo menos no que diz respeito à política para Nuestra América. O país tem uma política de estado para nossos países que praticamente não muda, seja quem for o presidente, desde 1823, quando uma mensagem do presidente James Monroe lapidou o que seria a “doutrina Monroe”: a América para os americanos. Com essa consigna os Estados Unidos garantiram a balcanização da América Latina, impedindo o avanço do colonialismo europeu, mas também travando a proposta generosa de Bolívar de uma Pátria Grande.  

Na frase de Monroe, o substantivo “americanos” não engloba as gentes de todas as Américas, mas apenas os estadunidenses. Coisa que mais na frente, em 1831, já morto Bolívar, vai se concretizar no chamado “destino manifesto”, que é a doutrina que atribui aos Estados Unidos um destino, outorgado pelo próprio deus, de expandir seu território e seu poder por todo o globo. É assim que usando o nome de deus, o governo se apropria de mais de um milhão de quilômetros quadrados do México. Foi o destino manifesto que também serviu de escudo do avanço para o Oeste exterminando populações inteiras de grupos originários e é o que ainda bramem os governantes quando fazem suas guerras: em nome de deus, da democracia e da liberdade (do grupo de elite, claro), agarrados num deus onipotente, e que lhes transferiu poder na terra, os governos avançam sobre a América Latina, o oriente médio e qualquer outro espaço que desejem tomar.  

Quanto às ideia de Monroe e do destino manifesto não se diferenciam os democratas e os republicanos. 

A gente nota nas redes sociais que uma boa parcela das pessoas mais à esquerda tende a torcer para que o vencedor seja Baiden, já que Trump é o “best friend” do Bolsonaro e uma segunda vitória do milionário pode fortalecer ainda mais as políticas ultraliberais do governante brasileiro. Mas, é bom lembrar que Baiden foi vice de Obama e que os dois juntos lideraram inúmeros conflitos fora de seu país. Nos oito anos de Obama na casa branca, não houve um só dia sem que os Estados Unidos não estivesse bombardeando algum lugar.  Não bastasse a guerra “quente” também há que se contabilizar as intervenções disfarçadas - como o apoio à queda de Kadafi – e as ações econômicas contra dezenas de países não alinhados. Portanto, mesmo que pareça simpático, Baiden tem um largo histórico belicista.

Para os estadunidenses o que conta são as questões internas e é por isso que artistas e intelectuais progressistas estão na aba de Baiden. A crise sanitária com o coronavírus, que já cobrou mais de 200 mil vidas, colocou ainda mais à nu um sistema de saúde que se guia pelo dinheiro. Quem tem seguro, pode ter uma chance de viver, dependendo de qual seguro pode pagar. Mas, quem não tem, morre. E ponto. Os democratas tem uma proposta de saúde pública, que nem chega aos pés do nosso SUS, mas já é algo. Também há toda uma expectativa com relação a política do estado com os negros e com as mulheres. Algo que pode ser uma ilusão, visto que mesmo quando um presidente negro, democrata, esteve o governo, o sistema prisional seguiu encarcerando muito mais negros do que em outros tempos. De qualquer forma, Biden aparece como mais moderado que Trump. E é nisso que esses grupos estão apostando. Pelo menos, tirar Trump. 

Já para nós, na América Latina, qualquer um dos que vencer vai ser problema. Biden inclusive já tem se manifestado dizendo que quer controlar nossa Amazônia. E isso não significa que vai nos defender de Bolsonaro. Não se enganem. Se Trump perder, o presidente brasileiro vai chorar, mas se Biden estender a mão ele logo, logo, muda de “best friend”, afinal, seu fascínio é pelo império. É o nosso Darth Vader.

Assim que fiquemos de olhos no resultado. As eleições nos EUA não são diretas. Quem vota e decide a questão é um colégio eleitoral de 500 e poucas pessoas, delegados dos estados. A eleição é feita em cada estado e cada um tem suas próprias regras. Se houvesse uma comissão para acompanhar as eleições verificando se não há fraude, ela certamente teria muita dificuldade. Lá, os eleitores podem votar por correio e de maneira antecipada. Não há coordenação nacional. Portanto, a segurança do processo é muito precária. A coisa é tão doida que mesmo se um candidato tiver mais votos no geral ele pode não levar, como já aconteceu. Portanto, talvez fosse hora de os Estados Unidos invadirem os Estados Unidos para levar democracia e liberdade ao povo de lá.  

Por aqui só nos resta acompanhar. Quem vencer terá seu próprio pacote de maldades para as nações latino-americanas. Nosso papel não é torcer por um ou outro, mas nos prepararmos para enfrentar quem quer que seja. 



domingo, 1 de novembro de 2020

A luta pelo território



Foi o peruano José Carlos Mariátegui o primeiro teórico latino-americano a entender que  o racismo estrutural contra os indígenas no seu país estava totalmente vinculado ao fato de que esses eram os donos da terra. Nos anos 1930, ao escrever os seus sete ensaios sobre a realidade peruana, ele coloca claramente que o que estava em jogo era o controle do território. Com a invasão da América em 1492, os europeus se posicionaram como conquistadores e usurparam os territórios, desde aí a luta pela retomada por parte dos povos autóctones tem sido sistemática. Em alguns países é mais evidente por conta do alto índice de população autóctone, como é caso do Peru. É percebendo a centralidade da luta pela terra que Mariátegui vai dizer que não existe uma “questão indígena” propriamente dita, mas sim uma batalha pelo território, e, consequentemente, pelas riquezas que ele esconde ou mostra.  

Essa percepção não vale apenas para o Peru. Ela pode ser observada em toda Abya Yala já que cada espaço desse território passou por violentos processos de colonização. Mesmo os países que se colocam no campo dos países centrais – como os Estados Unidos e Canadá - foram cenários de sangrentas batalhas e recorrente tentativa de extermínios das etnias originárias do território. E até hoje, confinadas em reservas, as etnias sobreviventes ainda precisam travar sistemáticos embates para garantirem autonomia e autodeterminação. E justamente porque se recusam a abandonar seus territórios e sua cultura original, são tratados como atrasados, encrenqueiros, entraves ao progresso, o que reforça ainda mais o racismo e a discriminação.  

A lógica é semelhante tanto no norte como no sul. Se as comunidades indígenas aceitam os espaços de reserva destinados – ainda que não sejam os originários - e se mantém quietos, podem até ser tolerados. Mas se ousarem se levantar em reivindicações, tanto de território como em direitos, passam a ser demonizadas e sofrem toda a sorte de campanhas desmoralizadoras. Um exemplo nos Estados Unidos é a comunidade Dakota, que luta contra um oleoduto que lhes destrói a água e as terras em Standing Rock. Apesar do apoio de comunidades de toda Abya Yala, essa comunidade Sioux ainda não logrou garantir o direito de decidir sobre seu território. O oleoduto é de interesse nacional, dizem os governantes e os “índios” são um atrapalho. E lá estão os canos, arrasando e destruindo o modo de vida de quem ainda vive no território tradicional.  

No Brasil, apesar do número de almas indígenas ser pequeno em relação à totalidade da população - cerca de 900 mil indígenas declarados – o fato de as mais de 300 comunidades ocuparem perto de 12% do território nacional ainda é visto como um excesso: “muita terra pra pouco índio”, dizem. E, da mesma forma, se a comunidade indígena se integra ao modo de produção capitalista, usando o território para culturas de exportação por exemplo, como o soja, aí são aplaudidas e visitadas pelos ministros bolsonaristas, apontadas como exemplo de “índios modernos”. Já as que reivindicam os territórios originais para viverem outra forma de organização são apontadas como anacrônicas, fora da realidade. E contra elas se movimentam todos os meios de comunicação de massa reforçando assim o racismo que foi introduzido com a colonização.   

Em Santa Catarina temos três etnias que ainda resistem na luta pelo seu espaço tradicional: os Kaingang, os Laklãnõ Xokleng e os Guarani. Cada uma delas com seus avanços e tropeços vem lutando para manter seu espaço e sua cultura. Não é coisa fácil. Sem a possibilidade de viver plenamente sua cosmovivência eles precisam sair dos territórios para tentar garantir a sobrevivência. É assim que chegam à capital, Florianópolis, em todos os verões, com seus artesanatos. Ao exigirem uma casa de passagem, um espaço digno onde possam descansar, logo são demonizados pela mídia comercial. E se multiplicam as reportagens mostrando os lugares onde eles ficam como espaços de sujeira e degradação, como se fosse da natureza deles e não do lugar inadequado. De novo, o racismo estrutural se manifestando contra aqueles que apenas querem seu espaço legítimo nesse mundo que foi construído sob os cadáveres de seus ancestrais. Outra vez a luta pelo território delimita o peso do ataque. Os indígenas que decidem se transformar em mão de obra do capital são saudados pelos governantes como inteligentes e moderno. Já os que permanecem nos territórios são os entraves ao progresso. De novo, a terra, a propriedade,  como questão central.  

Se passarmos para a cidade o tema terra volta a dividir as pessoas. Aqueles que conseguem ter a sua casinha ou mesmo pagar em dia o seu aluguel são saudados como cidadãos de bem. Já os que, sem saída, precisam ocupar terras públicas ou vazias, são apresentados como invasores, ladrões, criminosos e tudo de ruim que se pode dizer. O território, no capitalismo, é só para quem tem dinheiro para comprar. Quem não tem, que morra. Essa é lógica.  

Só que nesse mundo do capital, o número de pessoas que não têm propriedade é muito maior do que os que têm.  Então, o combate está dado.  

Nessa terça-feira, em Florianópolis, essa gente desprovida de terra e de direitos estará em luta. Povo que ocupa, povo que resiste, povo que luta, povo que intisica, povo que se nega a aceitar a imposição do capital, povo que se movimenta, povo que clama, povo que também quer morar, que também quer bem-viver. Por que a cidade tem de ser só para quem tem dinheiro ou propriedade? Toda essa gente ameaçada de despejo em plena pandemia por um projeto do prefeito local, que quer aprovar uma lei que permita o despejo sumário, sem necessidade de mandado judicial, estará em marcha. A Marcha pela Vida da Periferia. Virão as famílias que hoje ocupam terra urbana, virão os indígenas que lutam por uma casa de passagem, os que apoiam essas lutas, os que sabem que mesmo diante do perigo do vírus, há que se mover, porque sem isso, a morte vem igual.  

Os caminhantes, que se reunirão em frente à Catedral a partir das 14h, são aqueles que sabem muito bem que a tal democracia do “proprietário”, não os inclui e contra isso lutam. Porque a terra  não pode ser espaço de especulação. Ela tem de ser espaço de vida e de produção coletiva.  

É uma batalha pelas consciências. É uma batalha para destruir a ideologia do capital que normaliza a exclusão, a fome, a miséria, como se não houvesse outro mundo possível.  

Há.  

E são essas pessoas que estão na construção.   


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Sobre o estranho caso do governador que caiu sem um ai


O Estado de Santa Catarina sempre se caracterizou por ser um espaço onde a oligarquia ainda domina, sem qualquer chance para a esquerda e tanto que os partidos desse campo nunca conseguiram chegar perto de uma vitória eleitoral. O máximo que se conseguiu foi garantir a presença do PMDB que, é claro, passa bem longe das pautas de esquerda. Na primeira vez, com Pedro Ivo, ainda tinha rasgos do velho MDB, depois, com Paulo Afonso e Luiz Henrique perdeu todo o resquício de oposição, entregando-se ao credo neoliberal se qualquer pejo. Luiz Henrique mesmo foi nefasto.  

Por isso quando vieram as eleições para governador em 2018 já se tinha como pão comido que a velha política seguiria seu curso. Mas, eis que surge o fenômeno Bolsonaro e um desconhecido, saído das fileiras da Polícia Militar (bombeiros), por carregar a sigla (PSL) do então candidato à presidente, simplesmente abocanhou quase 30% dos votos catarinenses no primeiro turno. A disputa então foi entre ele, Carlos Moisés, e Gelson Merise, representante da direita tradicional (PSD). Uma eleição deveras intragável. O resultado no segundo turno foi a vitória acachapante do desconhecido Moisés com 70% dos votos válidos. Santa Catarina se juntava às hostes bolsonaristas com furor.  

Veio a posse e o governador eleito foi tomando pé da situação. Deixava para trás uma elite governante perplexa, mas não vencida. Durante o primeiro ano governou sem arroubos, mas também parecia estar se descolando das propostas grotescas advindas do bolsonarismo. No final de 2019 ele simplesmente rompe com Bolsonaro e imediatamente passa a ser tratado como inimigo pelos bolsonaristas raiz que o haviam colocado na cadeira de governador. Fazia uma aposta. Tinha maioria no parlamento e acreditava que poderia governar em paz.  

Veio a pandemia e ele imediatamente se colocou à frente do processo, dialogando diariamente com a população e tomando medidas opostas as que eram orientadas pelo presidente Bolsonaro. Mais uma onda de acusações de traição até que em junho a vice-governadora, ainda aliada de Bolsonaro, rompe com o colega de governo. Aí começa a queda. Disputas na Assembleia por conta da taxação dos agrotóxicos e depois o escândalo dos respiradores comprados à vista e sem condições de uso no combate à pandemia foram palmilhando o caminho da derrota. Sem os bolsonaristas o governador enfraquecia e a velha direita arreganhava os dentes.  

A ponta do estopim para derrubar Moisés veio de um ato administrativo prosaico: o aumento salarial aos procuradores do estado, sem passar pela aprovação dos deputados. Com essa carta na manga começou o ataque e a busca pela saída do governador do cargo. A intenção era responsabilizar Moisés e sua vice, Daniela, tirando os dois da parada. Com isso assumiria o governo o presidente da Assembleia, deputado Júlio Garcia, das fileiras do PSD, tradicional partido do poder catarinense. Tudo parecia caminhar para esse desfecho. Votações realizadas, o governador foi levado ao tribunal para que seu impedimento fosse garantido. Então, no meio do caminho, um deputado do PSL decidiu dar seu voto contrário à implicação da vice. Com isso, o castelo de cartas da velha direita ruiu.  

Com o processo de impedimento aprovado, o governador Carlos Moisés foi afastado do cargo, e a vice, Daniela Reinehr, que havia se retirado do governo, retorna como governadora. Assim, o bolsonarismo raiz volta a comandar Santa Catarina. Daniela é advogada, ex-policial militar e produtora rural. Totalmente desconhecida dos catarinenses tem na sua biografia o que chama de “militância” pela deposição de Dilma Roussef. Filiou-se ao partido de Bolsonaro pouco antes das eleições.  

O estranho em todo esse processo é que ele se deu em completa solidão. Apesar de ter levado 70% dos votos dos catarinenses, o governador Moisés não conseguiu mobilizar praticamente ninguém em sua defesa. Tirando a postura sempre puxa-saquista da rede de televisão NSC – a maior do estado – nada mais sobrou ao governador. Não teve passeata, não teve protesto, nada. As votações aconteceram sem qualquer rugosidade, o que mostra o completo descolamento da figura do governador com a população. A própria oposição mais à esquerda, acreditando que iria se livrar de dois coelhos – governador e vice – com uma cajadada só, se deu mal. Afastado do bolsonarismo o governador Moisés certamente seria um mal menor diante do que se apresenta.  

Essa virada nos planos da oligarquia pode agora fazer com que as coisas mudem no processo. Conforme a governadora em exercício vá mostrando sua plataforma e suas prioridades, o julgamento final do governador afastado pode se alterar. O tabuleiro do xadrez catarinense deu xeque, mas ainda não desfechou o mate. Nos próximos 180 dias muita coisa pode acontecer.  

Enquanto isso o Estado segue vivenciando alta na contaminação do coronavírus, sem direção no governo e sem qualquer paixão popular diante da briga nos altos escalões, tanto de um lado quanto de outro. A fria ação da política sem alma. A pandemia comendo e a indiferença comandando. Parece que nada está acontecendo. É um tempo de completo vazio já quem nem mesmo no uatizapi ou nas redes sociais o assunto tem importância.  

Mas, pode ser que tudo isso mude conforme a nova governadora for governando. Ou não, como diria o poeta baiano.