Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A vaca emburrada


Tenho a mania de juntar coisinhas, pequenas e singelas lembranças dos lugares por onde andei. Com isso vou enfeitando o que chamo de “altar dos meus afetos”. Pedrinhas, pedaços de pau, bonequinhos, enfim, mimos. Com a doença do pai, eles foram sendo sistematicamente eliminados. Faz parte da agitação do fim de tarde, um desesperado mexe-mexe. Aí, as mãozinhas vão pegando os meus recuerdos e arrancando cabeça,  tirando pedaços. Um a um eles foram desaparecendo. As lembranças vivem apenas na minha cabeça agora. Uma das poucas coisas que ainda conservo à vista é um pequeno altar com meu São Francisco, o quilin (antiga divindade chinesa), e um presépio que fica montado o ano todo porque eu definitivamente amo essa hora do nascimento do meu jesusinho. Nesse presépio, que é bem estranho – com os personagens meio desproporcionais - tem uma vaca, que, por supuesto, devia estar na manjedoura. Ela é gozada, grande demais diante das outras peças - como o camelo que é minúsculo - e tem uma singularidade: a cara da vaca parece emburrada. Virou então uma referência para todos nós na casa. Assim, quando temos de clamar por algum milagre a gente chama: “santa vaca emburrada, rogai por nós”. E ela ajuda. É nossa santinha.  

Pois hoje o pai danou de mexer no presépio e eu meio desesperada porque também não dá pra falar pra não pegar, que aí mesmo é que ele pega. E puxa o são José, e puxa Maria, e pega as ovelhas, e olha o camelo, e muda os reis magos de lugar. E eu só rezando pra ele não pegar a vaca emburrada. Mas, não deu outra. Pegou. E vira pra cá, e vira pra lá. Até que... pimba. Lá se foi a vaca emburrada para o chão. Ai jesuzinho... Já era a minha santinha. Fiquei estaqueada. Esperando. Quando ele finalmente se acalmou e deixou meu presepinho fui ver o que havia restado da vaca, caída embaixo da poltrona. Pois para minha surpresa lá estava ela, intacta. Milagre.  

Essa minha santa vaca emburrada é forte mesmo. Aleluia.



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