Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Um triste brasil para os trabalhadores



O jogo do toma-lá-dá-cá entre o governo de Temer e o Judiciário garantiu mais um gol de placa para a classe dominante: a terceirização irrestrita. Com isso, o Brasil volta ainda mais no tempo, alcançando a era em que os trabalhadores não tinham qualquer direito garantido e podiam ser movidos ao bel prazer dos patrões. A decisão do Superior Tribunal Federal, pouco depois de garantir aumento salarial de 16% para seus membros, permite que a partir de agora mesmo as atividades-fim possam ser terceirizadas. Até então apenas as atividades-meio como limpeza, transporte e segurança eram permitidas. Mas, agora, vale para qualquer função. Ou seja, uma empresa pode funcionar sem nenhum empregado contratado, com cada tipo de trabalhador vindo de uma empresa diferente.

Essa decisão abre-se também uma porta gigantesca para o fim do serviço público tal como o conhecemos, com concurso para os trabalhadores e com estabilidade, evitando assim, os bota-fora a cada governo de plantão. Afinal, ali também a terceirização já vem sendo implantada, com empresas gerindo hospitais, creches e instituições de assistência. Logo, logo, a máquina pública também poderá terceirizar todos os trabalhadores.

Importante lembrar que a terceirização não diminui custos, pelo menos não no serviço público. A empresa leva uma bolada de dinheiro enquanto paga uma mixaria para os trabalhadores, como é hoje com as empresas de limpeza. O resultado é sempre o mesmo: os donos cheios de grana e os empregados na maior precariedade.

A votação no STF foi de sete votos a favor e apenas quatro contra. Os argumentos dos que votaram a favor seguem o mesmo padrão dos do governo: "com a terceirização aumentarão os empregos". O que eles não dizem é que os empregos que existirão serão quase uma escravidão, já que não contarão mais com qualquer amparo. A reforma trabalhista, aprovada pelo Congresso, já tratou de eliminar todos os possíveis “gastos” que a classe patronal possa ter com trabalhadores. Sobra então, o emprego precário, sem direitos, sem férias, sem 13º, sem nada. A pessoa pega ou larga, e pronto. Salários baixos, nenhuma garantia, é o salvem-se quem puder. Carteira assinada, nem pensar.

A terceirização está apta também a entrar no serviço público. Professores poderão ser contratados por hora, médicos, enfermeiros, dentistas, qualquer um. Não precisará mais de concurso, apenas contrato temporário. Viveremos a mais brutal exploração do trabalho humano, comparada talvez aos primórdios do capitalismo, quando as pessoas, apesar de trabalharem 15 ou 18 horas por dia, morriam de fome. 

O cinismo dos togados, que recebem mais de 30 mil de salário e ainda gozam de imunidade sob todos os aspectos, inclusive de crítica, não tem mais limites. O ministro Celso Mello declarou que: “Pode a terceirização constituir uma estratégia sofisticada e eventualmente imprescindível para aumentar a eficiência econômica, promover a competitividade das empresas brasileiras e , portanto, para manter e ampliar postos de trabalho”. Tudo às claras. O que importa é garantir mais e mais lucros para os empresários. Os trabalhadores são mero detalhe. Como se não fossem eles, e somente eles, os que podem geral valor. 

A vida vai ficar ainda bem pior para os trabalhadores, sejam eles qualificados pelo ensino formal ou não. O mundo “mad-max” ao vivo e a cores. Os “jogos vorazes” estarão abertos, com as pessoas que têm apenas sua força de trabalho para vender se digladiando entre si, enquanto o 1% que detém a riqueza assiste, inebriado pelo champanhe e pelo sadismo, em nome do lucro e da competitividade. 

O capitalismo na sua fase mais perversa, da superexploração exacerbada. O paraíso do empresariado predador e especulador. 

Todos os dias cai um direito. Todos os dias a classe dominante avança mais sobre os trabalhadores, sugando feito vampiro até a última gota. 

E as ruas estão quietas. E alguns esperam as eleições.  



quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Venezuelanos voltam para casa


Enquanto a mídia a mando dos Estados Unidos transforma em “crise humanitária” a migração de venezuelanos para países vizinhos, outros tantos sonham em voltar para seu país, por não suportarem as condições de vida e trabalho nos países para onde migraram em busca de vida melhor. Por conta disso, nessa semana o governo venezuelano disponibilizou um avião para trazer de volta para casa dezenas de venezuelanos que estavam no Peru. 

Como a Venezuela tem sofrido desde 2015 uma guerra econômica, com a ação criminosa de empresários escondendo comida, remédios e provocando escassez, muita gente decide pegar as trouxas e sair do país. Essa migração tem sido bastante incentivada pelas forças oposicionistas do governo Maduro e por conta disso se disseminam propagandas sobre como a vida no estrangeiro pode ser melhor, inclusive dizendo que os governos do Brasil, Peru e Colômbia podem assegurar casa, saúde e crédito para novos empreendimentos.  Algumas pessoas caem nesse conto e cruzam as fronteiras. 

Mas, chegando aos países, não encontram as promessas feitas. No caso do Brasil, há poucas semanas, os venezuelanos foram rechaçados por hordas violentas, também organizadas por políticos e entidades conservadoras brasileiros. O resultado é mais tragédia para uma gente já golpeada pela guerra econômica travada pelos Estados Unidos contra a Venezuela. 

Como resposta a campanha da direita que procura incentivar a migração, o governo da Venezuela tem incentivado a volta. Nessa segunda-feira, um avião lotado partiu de Lima, Peru, para Caracas, com um grupo de cem pessoas. Outras, que moram mais perto da fronteira, estão vindo por terra. Ao chegarem, no encontro emocionado com familiares, contaram que foram enganados com falsas promessas e chegando ao Peru foram explorados por empresários que pagam salários com valores abaixo do prometido. Alguns também foram vítimas de coiotes e traficantes de drogas e pessoas.  
Quem vive na Venezuela sabe o que têm sido esses últimos anos de ataque econômico. Os grandes meios divulgam incessantemente que o país será atacado pelos Estados Unidos, que vai faltar comida, que o terrorismo vai atacar. Tudo isso provoca medo e desespero nas pessoas, que acabam caindo nas armadinhas da migração provocada. 

O governo de Maduro iniciou uma série de medidas para vencer a galopante inflação, também provocada pelo ataque econômico, e espera que isso possa melhorar a situação. Ele insiste que não faltará comida, embora, é claro, a guerra movida contra a Venezuela obrigue a população a alguns sacrifícios, como as já conhecidas filas. 

A migração na Venezuela sempre existiu, como em todos os países latino-americanos. Uma olhada nos números da própria Organização das Nações Unidas mostra que hoje, há muito mais colombianos e brasileiros na Venezuela do que venezuelanos na Colômbia ou no Brasil. Mas, essas informações a mídia não passa porque o que interessa é fazer crer que o país bolivariano é um inferno de onde todos querem sair. 

Os cubanos sabem muito bem o que é isso. Desde 1959 que os Estados Unidos move feroz campanha contra a ilha. Mas, lá, as gentes se mantiveram firmes e de pé. Na Venezuela também. A maioria apoia e confia que, junto com o governo, vai vencer a guerra movida pelos EUA contra o povo.  Não é coisa fácil porque a direita venezuelana segue atuando com desenvoltura no país, tendo como braço armado os grandes meios de comunicação. A pedagogia do terror e do caos tem sido bastante eficaz, minando as possibilidades de soberania do país. É uma batalha, é a luta de classes. A velha elite petroleira que perdeu poder, aliada com os EUA, querendo voltar. E para isso, vai destruindo o país e o povo junto. Para eles, pouco importam essas pessoas que hoje saem da Venezuela aterrorizadas com suas campanhas de ódio. Tudo o que querem é retomar o controle do país.


terça-feira, 28 de agosto de 2018

Paixão encantou


Ele atravessou quase um século e foi o responsável pela criação da chamada "tradição gaúcha". Sua figura sempre foi bastante controvertida. Criticado por ser de direita e legitimador de uma ideologia gauchesca ligada ao latifúndio, Paixão amealhou bons adversários ao longo da vida. Mas, mesmo esses reconhecem que, antes dele, o gaúcho não tinha uma identidade tão consolidada como a que foi sendo fortalecida pelo movimento tradicionalista iniciado por Paixão e Barbosa Lessa nos tempos do colégio. Com eles nasceu o CTG (Centro de Tradição Gaúcha) e deles derivou tudo o que hoje se conhece como tradição.

Sou nascida na fronteira, marcada pela cultura missioneira. Tenho em mim agarrada essa herança telúrica, oriental e desde bem guria vivencio a tal da "tradição". Aprendi, estudando, que a ideologia do latifúndio, do gaúcho ideal, é cotidianamente apreendida e reinventada pelos trabalhadores nas canhadas e na imensidão dos campos. A bombacha, o mate, o cavalo, as longas noites de invernada, o churrasco, as danças, o modo de ser no mundo. Tudo isso está incorporado de maneira indelével, e do nosso jeito, do jeito daqueles que realmente vivem a realidade de ser um "peão", um trabalhador, um paysano, na solidão do latifúndio.

Nunca fui a fundo saber das intenções de Paixão Cortes ou de Barbosa Lessa. Sei que nos tempos da ditadura, no Rio Grande, se utilizou muito esse movimento para consolidar a obediência e a disciplina. Mas, o que guardo nas retinas é a alegria das festas da campanha, das carreiradas, nas quais os trabalhadores se reuniam para dançar e comer churrasco, cantando as músicas que falavam do seu fazer cotidiano, da sua vida real, ainda que muitas vezes idealizada pelos poetas. O que posso dizer é que do Rio Grande trago essas lembranças à flor da pele. Criada que fui no CTG Tropilha Criola, onde dançavam os pobres e os ricos, e fiel parceira do meu avô, camponês sem terra, jamais me desvencilhei dessa herança que o campo me legou.

Digo adeus a Paixão Cortes com certa gratidão. Porque reconheço que aquilo que ele criou como pesquisador e comunicador transcendeu ao que pudesse ter em mente como alguém ligado à classe dominante ou às tradições conservadoras. O nativismo está para além, eternamente se reinventando desde baixo, e ele, mesmo sem querer, é responsável por isso. Valeu, Paixão. E que vivam os gaúchos e gaúchas de todas as querências...


Foi-se um dos grandes do rádio


Nas ondas curtas, era imbatível. Ouvíamos seu programa na Capital e na Record, sempre de manhãzinha. A música sertaneja era seu filé. Simples, alegre, engraçado, ouvi-lo era como ouvir um tio. Fazia parte da família. E era quem nos chamava para levantar, e ir para a escola. Com ele aprendi a amar os grandes da música caipira. 

Sumiu há tempos do rádio, porque as novas tecnologias substituíram os velhos por uma geração homogenizada ou então pelos tradicionais geradores de medo e violência. 

Foi embora nessa segunda-feira (27 de agosto), cumprindo 92 anos nessa terra. "Vamos se mexendo, turma, vamos". Obrigada Zé Bettio, por tanta alegria e doçura.

O Xangô do São Francisco



Era assim. Todas as tardes era hora de ir ao Xangô, um espaço de bar/discoteca/ salão que havia na beira do Rio São Francisco, em Pirapora. Por volta das cinco horas o tempo era de um banho nas duchas do rio e depois ficar à toa, pernas para o ar, vendo o pôr-do-sol, aquela quenturinha envolvendo o corpo. 
A vida passava devagar naquelas lindas paragens das Minas Gerais. 

Uma cuba libre, a cabeça tonteada. A cidade toda passava por ali, pelo menos a que nos interessava. O flerte, o olhar oblíquo, aquela coisa morna do norte de Minas. Um deixar-se estar, apenas fruindo o som do rio, passando devagar. Tudo era devagar. Por vezes um beijo, um volteio de corpo, o mergulho nas águas profundas. Pirapora. Pira Poré. 

E no som que ecoava das caixas do Xangô, Alceu... E a belle de jour... as tardes de dias azuis... Era bom! E a gente, no azul, também viajava. Saudades daqueles verdes anos!

domingo, 26 de agosto de 2018

Sobre o direito de se manifestar na UFSC


Entrei na UFSC no ano de 1994. Fui trabalhar na Agecom sob as vistas do Moacir Loth e Raquel Moysés, dois jornalistas extraordinários. Ali aprendi a amar a UFSC. Não com esse amor bobo, de trabalhador acrítico, que veste a camisa pra agradar patrão. Mas com o amor compromisso, de quem sabe a importância que pode ter uma casa de saber quando for verdadeiramente popular. Um amor crítico também, capaz de enxergar as coisas erradas e denunciar. Como quando quase perdi o emprego por denunciar em nível internacional o assassinato de cachorros no HU, que eram usados pelos estudantes e jogados no lixo, ainda vivos. Aquilo foi um furdunço, minha cabeça quase rolou.

Mas, foi justamente esse episódio que colocou em questão a tal da liberdade de expressão. Como jornalista na UFSC eu deveria fazer vistas grossas ao crime? Ou, de maneira responsável, denunciar e provocar a mudança? Creio que fiz o que era certo. Mas, não faltaram os censores, os apontadores de dedo, os críticos do jornalismo. Acreditavam esses que, proteger e amar a UFSC era ficar calado diante do horror. Não eu. E, com o apoio do chefe e dos colegas, venci essa parada. 

Depois, ainda na Agecom, mas sob outra chefia, vivi a dor da censura. Matérias feitas que iam para o lixo, trabalhos que não me permitiam fazer, a voz calada, a impossibilidade da expressão. Foi um tempo ruim, duro e triste. Mas, superei. Encontrei em meio a toda essa dor, o caminho para a construção do IELA, onde hoje atuo. E da voz sufocada, da censura e da impossibilidade, voltei a escrever e dizer das coisas da UFSC e da América Latina. Porque é a alma do jornalismo ser crítico. Ou isso, ou não é jornalismo. 

A UFSC sempre foi esse espaço contraditório. Em alguns lugares impera o conservadorismo, o reacionarismo, o desrespeito. Em outros aflora a liberdade, a beleza, a comunhão. É uma instituição pública e, como tal, abriga a pluralidade que existe na sociedade mesma. E, cada um de nós, professores ou técnicos, temos a liberdade de expressar o que quisermos. Em alguns cantos é mais difícil que outros, mas é a batalha normal da vida. A gente enfrenta e avança. 

Foi por se saberem numa instituição pública e afeita a democracia que trabalhadores, estudantes e membros da comunidade expressaram sua dor e sua inconformidade com a tragédia que se abateu sobre o reitor Luiz Carlos Cancellier, preso de maneira violenta, levado ao presídio e impedido de entrar na UFSC por conta de uma denúncia de “obstrução de justiça”.  

Era o dia da celebração do aniversário da UFSC. E era para ser uma data festiva. Mas, não foi. O Cao havia se matado. Jogara-se do alto do xopingue por não suportar a dor de ser banido da universidade, espaço que amava a mais não poder. A dor, para os amigos, a perplexidade para os conhecidos, o estupor até para os inimigos. Ele sequer completara metade da gestão. Sua figura galhofeira, sempre com o cigarro entre os dedos, não mais circularia pelo Hall da reitoria em busca de espaço para “fumaçar”.  Fora levado à morte por uma ação truculenta e desnecessária. 

Naquele dia, que deveria ser de festa, as gentes ainda estavam de luto. Mas, a UFSC tinha de seguir em frente, então se decidiu que o que era para ser festa, seria celebração da vida e protesto. Foi assim que as gentes da comunidade construíram faixas, cartazes e palavras de ordem. E foram para o Hall onde estavam as autoridades. Aquele dia de aniversário seria diferente e inauguraria a foto do Cao na galeria dos ex-reitores. E os amigos, colegas e companheiros se manifestariam contra os abusos que tinham sido praticados pelos agentes do poder público, da polícia e da justiça. Colocaram seus nomes e rostos em relevo, para lembrar que a ação fora praticada por pessoas, com nome e sobrenome. Porque o Estado não é um ente, ele é feito de gente. 

Aquele foi um dia triste. Para todos. 

Pois agora, passados meses daquele momento, o atual reitor, Ubaldo Balthazar,  e seu chefe de gabinete, Áureo Moraes, foram denunciados por um procurador do Ministério Público, Marco Aurélio Dutra Aydos, por, segundo ele, ofender a honra da delegada que conduziu a prisão de Cancellier, Érika Marena. Isso porque ela era um dos rostos estampados nas faixas das pessoas que protestaram. O procurador quer que os dois paguem uma multa de 15 mil reais por danos morais, quantia estipulada pela própria delegada. Alega ainda que os dois, reitor e chefe de gabinete, deveriam ter impedido a manifestação. 

Ora, desde que a UFSC foi inaugurada, nos anos 60 do século passado, as pessoas protestam por aqui. E nem mesmo na ditadura militar algum reitor impediu a livre manifestação. É fato que sempre foi comum o chamamento da polícia para conter as manifestações. Mas elas nunca foram de fato impedidas. As pessoas ficam ali, enfrentam a polícia, gritam, levantam seus cartazes. 

Agora imaginem num dia de luto e tristeza, quando as pessoas precisavam expressar sua indignação e quando todos ali estavam irmanados no mesmo sentimento de impotência diante da morte trágica? Quem haveria de impedir que ação se fizesse? Cada um e cada uma que se somou naquele hall estava ainda vivendo a perplexidade. E os rostos dos algozes do reitor morto era uma necessidade do luto. 
Nem o reitor, nem o chefe de gabinete teriam podido impedir a manifestação. Não o fizeram nem no próprio velório do reitor, quando uma estudante se manifestou em protesto contra o reitor morto. Porque a expressão ainda é livre nesse país, o qual muitos ainda chamam de democracia. Porque as pessoas ainda podem gritar, protestar, denunciar. E, a considerar a “normalidade” da UFSC, se a manifestação não estava colocando em risco ninguém, que motivos haveria para impedi-la?

Não posso entender o que moveu esse procurador público a tornar “crime contra a honra” um grito de dor, um protesto legítimo.  Penso que numa democracia – como dizem os juízes do Lava-Jato – ninguém é intocável. Sendo assim, os agentes públicos estão todos submetidos à mesma assertiva. Também podem cobrados, criticados e denunciados. 

Assim, nesses dias de imobilidade e medo, quando tudo nos convida ao silêncio assustado, venho manifestar esse velho amor pela UFSC, que extrapola os dirigentes se plantão. E nesse amor, manifestar também minha solidariedade aos colegas Áureo e Balthazar. E dizer que nessa específica batalha, pelo direito de garantir a livre expressão da dor, estamos juntos.