Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

No mercado...


Já fazia muito tempo que eu não sentava na ponta do mercado para olhar a vida. Desde que o prefeito César Souza inventou uma reforma gourmet e tirou da ponta o Bar do Alvin, ir ao mercado Público de Florianópolis virou um sofrimento. Por ali, tudo agora é espaço de boy e de madame. Turistas comendo pratos caros e cervejas artesanais. Não tem mais o samba de raiz, nem as cadeiras de plástico e principalmente pessoas. Gente nossa, dessas que a gente conhece, dos botecos, das quebradas. Até bem pouco tempo nem cerveja tinha, só aquela de pescoço longo, tamanho pequeno e preço nas alturas. Passo por ali quase todo o dia, mas não gosto. Não reconheço ali o povo daqui. E não tem mesmo.

Mas, hoje, me assaltou a vontade de ver a vida passar. E não há melhor lugar no mundo do que a ponta do Mercado, que dá vista para o terminal de ônibus. Ficar ali, sentado, é ver passar diante de si a cidade. As pessoas e seu corre-corre cotidiano. Dez minutos e a gente já cumprimentou pelo menos uns três. Estudantes, trabalhadores, donas de casa em compras, mascates, cantores, mendigos, skatistas, artistas de rua, é uma miríade de vida, uma vida que se conhece. Tão diferente da que se expressa no vão do mercado, antes tão nosso.

O sol estava quase a pino quando entrei no bar. Era o espaço do antigo bar do Alvin. Tudo arrumadinho demais. E os garçons? Nenhum conhecido, todos sem sotaque. O exato sentido de solidão. Antes, já se gritava: “Ei, Marcelo, um chope”. “Neto, um bolinho de bacalhau”. E se via o Alvin, circulando pelas mesas. Mas agora, nada. Aquela coisa sem vida, sem gritos, sem bebuns. Uma gente arrumadinha demais. Enfim, sentei. Aquele lugar é, sem dúvida, o melhor lugar de Floripa para se ver a vida que pulula no centro. Bem em frente ao Camelódromo, na diagonal com o terminal central. É um sem fim de gente.

O garçom foi simpático, mas não era amigo. Pedi um chope e fique ali, bem na porta, vendo as gentes passarem. É uma experiência sem igual. Um vai e vem de pessoas que carregam nas almas suas dores, seus medos, suas alegrias. O cego, o sem perna, a mocinha de pernas de fora, a do shortinho curtíssimo, o homem da água de coco, a velhinha com a sombrinha, o vendedor do chip da TIM, a senhorinha bem arrumada com sacolas do xopingue, as garotas falantes com sacolas do Kilojão, os garotos sarados, os equatorianos com suas sacolas cheias de muamba.

Vez em quando algum amigo ou conhecido que passava ligeiro me acenava. E eu ali, morrendo de vontade que fosse outro tempo. Bateu quase que um sentimento de vazio. Meio da tarde e eu ali, sozinha, ruminando minhas ausências. Nenhum garçom pra contar das namoradas, nenhum amigo para dividir as coisas da vida, nenhum ombro companheiro para as lágrimas e lamentações. Só aquele sonzinho de música cabeça, e aquela coisa limpa demais. O garçom chegou, solícito: “Mais um?”. “Tá”. Fazer o quê. O primeiro chope tava amargo demais, pedi um da brama. A porra do bar só serve duas marcas de chope. Ou isso, ou vaza. Caralho, e é o melhor lugar da cidade, na ponta do Mercado. Ódio. Fiquei, ainda que com aquele sentimento de estar traindo o Alvin e toda a companheirada que antes frequentava o bar.

Mas a vida ali na esquina dessa cidade que amo me chamava. E eu mergulhei. Esquecida do ambiente abuguesado e dos clientes entojados, fiquei, virada para a rua, balançando no vai e vem. Lá na outra ponta do camelódromo começou um bafon, uma mulher gritava por conta de uma sombrinha. Sorri. A vida! Do nada surgiu um cara com uma caixa de som e começou a cantar. Músicas bregas, de traições e mágoas de amor. Pedi o terceiro chope, sem nem olhar para dentro do bar. O centro da cidade é bom demais. Não saberia viver sem isso.

Por fim, 30 pila mais pobre (é, 10 pila cada chope), decidi pegar o rumo do sul. Misturei-me a multidão que assomava rumo ao terminal, passei a catraca da Plataforma B e procurei o Rio Tavares. Lá estava, parado, e com pouca gente. “Milagre, milagre”, gritei, mentalmente, e corri arrastando a sacola da Millium, onde tinha comprado umas almofadas vermelhas.  Sentei esbaforida. Um menino no meu lado sorriu. E eu retribui.

Ah, tem horas que vale a pena viver.


Aqui, a histórica entrevista com o Marcelo, garçom no Bar do Alvin.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Sobre o "caos" no Espírito Santo

Esposas e familiares dos PMs se movimentam contra o arrocho e a insegurança

A mídia comercial tem mostrado o "caos" no Espirito Santo por conta da greve dos policiais militares. Algumas coisas precisam bem esclarecidas sobre esse movimento. Em conversa com o cabo Noé, vice-presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiros Militares do Espírito Santo, colhemos as seguintes informações. 

1 - Não é uma greve de policiais. O que acontece é que as esposas e familiares dos policiais estão trancando as portas do batalhões e não estão permitindo que eles saiam. 

2- Os familiares decidiram fazer isso porque é vedado aos policiais fazer greve.

3 - Os familiares reivindicam um salário melhor aos policiais e também condições de trabalho. Hoje o salário médio é de 2.750 bruto, e é o pior salário do Brasil. No Espírito Santo eles estão sem ganho real há sete anos, e desde há três anos sequer têm reajuste da inflação. A situação é de penúria.

4 - Não bastasse a falta de salário, os policiais são obrigados a trabalhar enfrentando riscos cotidianos sem as condições para sua proteção. os coletes a prova de bala estão vencidos, e os que estão na validade precisam ser usados em sistema de rodízio. Um veste a proteção e outro não. A sorte define quem vive.

5  - As perdas salarias chegam a 45%, mas a Associação dos Praças alega que um reajuste de 10% já poderia abrir uma negociação. Ainda assim o governador Paulo Hartung, que é do PMDB, se nega a negociar. 

6 - A postura do governador é descrita como "imperial". Segundo os policiais eles prefere morrer a ceder. 

7 - Por outro lado, os policiais e suas famílias já estão morrendo e tampouco estão dispostos a seguir assim.  

8 - Se hoje o estado vive um caos, com criminosos nas ruas, tiroteios, sequestros, roubos de carro, saques, a responsabilidade deve ser dada a quem de direito: o governador e sua política de arrochar os trabalhadores em vez de cobrar as dívidas do empresariado local. Como sempre, o argumento para manter o salário baixo e não garantir a segurança dos soldados é a falência financeira do estado. Como sempre, pagam os trabalhadores.  

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Abandonada pelos prefeitos, abraçada pela população


 Campeche mobilizado na luta contra o esgoto na praia

Comunidades do norte da ilha lutando pelo Rio Papaquara - Foto: Eduardo Dahse

Florianópolis é conhecida no Brasil inteiro pelo seu carnaval e pela estonteante beleza de suas 42 praias. Para incrementar o turismo, os governantes investem em anúncios milionários nas revistas nacionais, oferecendo a “ilha da magia” como um lugar de natureza exuberante, tranquilidade e prazer. Lugar de magia, até pode ser, mas quem faz a mágica são os moradores, que precisam dar tratos à bola para manter a cidade e as praias como espaço de beleza. Isso porque o abandono no que diz respeito ao serviço básico de esgoto tem colocado em risco não apenas as praias turísticas, mas também dezenas de comunidades que assistem, impotentes, a morte de seus rios.

No último mês, a comunidade do Campeche, sul da ilha, por exemplo, foi obrigada a realizar atos de fechamento de bocas de desague de esgoto nos rios locais, porque a praia está contaminada, em vários pontos, pelas águas servidas. Assim, desde quatro domingos atrás os moradores se organizaram e foram tapando, com sacos de areia, os canos por onde desaguam os esgotos de condomínios e outras residências, sem qualquer tratamento. A intenção tem sido despertar o poder público que parece ter abandonado as comunidades à própria sorte.

Durante o governo de Dário Berger, o Campeche foi contemplado com obras preparatórias para o tratamento do esgoto. Era o tempo do Programa de Aceleração do Crescimento, programa nacional de investimento em estrutura do governo petista. O bairro se movimentou. Vieram as máquinas, os canos e os moradores assistiram ao frenesi das obras com preocupação. Onde desaguariam as águas servidas que correriam pela rede de esgoto? Como o Campeche é um bairro que discute sua vida desde os anos 80, de maneira coletiva, o debate foi aberto. A proposta da Casan (empresa estadual que cuida da água e do saneamento), apoiada pelo prefeito, era construir um emissário submarino que levaria os dejetos para o mar, saindo atrás da ilha do Campeche. Naqueles dias houve protestos e levantamento popular.

Os moradores não aceitaram a ideia de jogar a bosta no mar, pois as experiências de emissários submarinos já comprovavam que os dejetos voltam e contaminam as praias. Foi uma longa luta. Como proposta alternativa, a comunidade apresentou projetos de estações de tratamento menores e espalhadas. O governo não concordou. A luta seguiu e acabou que nada aconteceu.   A comunidade ficou com a rede coletora pronta, mas ligando a lugar nenhum.

Com a chegada de César Souza Júnior à prefeitura, novamente veio à baila a problema do esgoto. A comunidade seguiu reivindicando e promessas foram feitas. O prefeito chegou a criar um programa chamado “Se liga na rede” e fez discursos prometendo atingir – em parceria com a Casan - 75% da cobertura de esgoto tratado na cidade. No Campeche, nada aconteceu. E nas demais comunidades também não. O problema estourou no início de 2016 quando a famosa praia de Canasvieiras, no norte da ilha, ficou contaminada pela sujeira que vinha do Rio do Brás. Foi um escândalo nacional. Turistas iam parar nas emergências com vômitos e diarreias, enquanto o rio agonizava em meio à merda.  Por conta do problema de Canasvieiras, outras comunidades praieiras começaram a se ligar que seus rios também estavam com problemas. No Campeche, os moradores detectaram vários pontos de desague de rio, completamente poluídos. Cursos de água como o Rio do Noca (conhecido como riozinho e point da praia) apresentavam água lodosa e cheiro ruim.

Naqueles dias, uma fiscalização na região de Canasvieiras, a respeito do rio do Brás, levantou que 57% das residências estavam com sistemas sanitários irregulares. Além disso, a capacidade de bombeamento do esgoto para a estação de tratamento estava baixa. Foram feitas promessas de ampliação dessa capacidade e realizada uma ação emergencial.  Mas, a ação do governo com relação a Canasvieiras não foi de resolução do problema, apenas de mascaramento. Vieram as máquinas e fecharam com areia a saída do rio na praia. A água contaminada já não escorria pela areia, mas o problema seguia lá. Desde aí pouca coisa foi feita realmente para resolver. A população bem sabia que tudo aquilo poderia se repetir.

Por conta do alerta em Canasvieiras outras comunidades passaram a vigiar suas praias. Foi o caso do Campeche, que percebeu pontos de desague de esgoto. O bairro do Campeche sofreu uma vertiginosa expansão nos últimos anos, com uma série de condomínios e prédios ocupando os espaços próximos à praia. Como existe a rede de esgoto pronta, muita gente acaba ligando o seu esgoto doméstico nela. Ocorre que não há estação de tratamento, e esse esgoto todo vai desaguar nos rios da comunidade. Por conta desse problema, moradores iniciaram uma campanha para que a prefeitura tomasse conhecimento da situação e oferecesse uma solução. Foram realizados atos e abaixo-assinados, mas nada aconteceu.

Nesse verão de 2017 quando os turistas chegaram a grande número, lá estava, de novo, o problema do esgoto escorrendo na praia. Vários pontos de desague formaram lagoas lodosas e malcheirosas que, inadvertidamente são usadas pelas famílias como espaços seguros para colocar os filhos pequenos. Preocupados com a possibilidade de viroses ou outras doenças atacarem os turistas e principalmente as crianças, os moradores iniciaram ações de denúncia e protesto. Assim, todos os domingos estão indo nos pontos de desague, fechando com areia e informando aos frequentadores da praia do perigo.  Já se completou um mês e nenhuma ação foi feita pela prefeitura ou pela Casan. Ao que parece, o prefeito Gean está mais preocupado em desmontar o serviço público e atacar trabalhadores do que resolver os problemas da cidade. E, no geral, os prefeitos costumam jogar o problema para a Casan, como se a saúde dos rios e da natureza da cidade não lhes dissesse respeito. É um descaso sistemático, só superado esporádica e paliativamente quando a mídia comercial mostra algum problema.

No último final de semana as comunidades do norte da ilha também realizaram protestos denunciando a poluição no rio Papaquara que é um efluente do Rio Ratones, e que, doente, pode afetar toda a Bacia do Ratones. O Papaquara deságua justamente da Estação Ecológica de Carijós e é fundamental que ele siga saudável e limpo. Para pedir providências do poder público, as comunidades ocuparam a estrada geral que vai para o norte distribuindo panfletos e conversando com turistas e moradores. Eles também buscavam conscientizar aqueles que de maneira irresponsável jogam seus esgotos na rede pluvial. É uma batalha difícil para aqueles que, organizados, estão sempre a proteger a cidade. Pois, tem de brigar com o poder público e também com os próprios vizinhos.

Já no Campeche, os moradores que vem fechando os pontos de desague na praia promoveram um abaixo-assinado chamando a atenção dos frequentadores da praia que imediatamente fizeram filas para assinar. Todos querem manter a praia bonita e limpa e entendem que é preciso haver uma ação urgente da prefeitura tanto na fiscalização das ligações irregulares quando na solução do problema. Desde há anos que a comunidade oferece alternativas, inclusive com projetos prontos, mas não encontra parceria nas administrações municipais.  

Os dados do município para tratamento de esgoto apontam que 53% da cidade é atendida pelo tratamento. César Souza chegou a prometer 75%, mas o que se vê todos os dias são problemas de poluição nos cursos dos rios e nas praias. O que está acontecendo então? Esses sistemas não são eficazes? Se não são, por que não chamar a comunidade para decidir e resolver? Como já falamos, desde há anos, por conta das reuniões do Plano Diretor, os moradores de Florianópolis já apontaram saídas. Só que os administradores fazem ouvidos moucos e preferem apostar em obras faraônicas e inúteis que só beneficiam quem as constrói. No fim das contas, a situação segue se agravando e, como sempre, são as pessoas, organizadas coletivamente, que precisam fazer o trabalho dos governantes.

A luta segue, para salvar os rios e a vida.