Já fazia muito tempo que eu não sentava na ponta do mercado
para olhar a vida. Desde que o prefeito César Souza inventou uma reforma
gourmet e tirou da ponta o Bar do Alvin, ir ao mercado Público de Florianópolis
virou um sofrimento. Por ali, tudo agora é espaço de boy e de madame. Turistas
comendo pratos caros e cervejas artesanais. Não tem mais o samba de raiz, nem
as cadeiras de plástico e principalmente pessoas. Gente nossa, dessas que a
gente conhece, dos botecos, das quebradas. Até bem pouco tempo nem cerveja
tinha, só aquela de pescoço longo, tamanho pequeno e preço nas alturas. Passo
por ali quase todo o dia, mas não gosto. Não reconheço ali o povo daqui. E não
tem mesmo.
Mas, hoje, me assaltou a vontade de ver a vida passar. E não
há melhor lugar no mundo do que a ponta do Mercado, que dá vista para o
terminal de ônibus. Ficar ali, sentado, é ver passar diante de si a cidade. As
pessoas e seu corre-corre cotidiano. Dez minutos e a gente já cumprimentou pelo
menos uns três. Estudantes, trabalhadores, donas de casa em compras, mascates,
cantores, mendigos, skatistas, artistas de rua, é uma miríade de vida, uma vida
que se conhece. Tão diferente da que se expressa no vão do mercado, antes tão
nosso.
O sol estava quase a pino quando entrei no bar. Era o espaço
do antigo bar do Alvin. Tudo arrumadinho demais. E os garçons? Nenhum conhecido,
todos sem sotaque. O exato sentido de solidão. Antes, já se gritava: “Ei,
Marcelo, um chope”. “Neto, um bolinho de bacalhau”. E se via o Alvin,
circulando pelas mesas. Mas agora, nada. Aquela coisa sem vida, sem gritos, sem
bebuns. Uma gente arrumadinha demais. Enfim, sentei. Aquele lugar é, sem
dúvida, o melhor lugar de Floripa para se ver a vida que pulula no centro. Bem
em frente ao Camelódromo, na diagonal com o terminal central. É um sem fim de
gente.
O garçom foi simpático, mas não era amigo. Pedi um chope e
fique ali, bem na porta, vendo as gentes passarem. É uma experiência sem igual.
Um vai e vem de pessoas que carregam nas almas suas dores, seus medos, suas
alegrias. O cego, o sem perna, a mocinha de pernas de fora, a do shortinho
curtíssimo, o homem da água de coco, a velhinha com a sombrinha, o vendedor do
chip da TIM, a senhorinha bem arrumada com sacolas do xopingue, as garotas falantes
com sacolas do Kilojão, os garotos sarados, os equatorianos com suas sacolas
cheias de muamba.
Vez em quando algum amigo ou conhecido que passava ligeiro
me acenava. E eu ali, morrendo de vontade que fosse outro tempo. Bateu quase
que um sentimento de vazio. Meio da tarde e eu ali, sozinha, ruminando minhas
ausências. Nenhum garçom pra contar das namoradas, nenhum amigo para dividir as
coisas da vida, nenhum ombro companheiro para as lágrimas e lamentações. Só
aquele sonzinho de música cabeça, e aquela coisa limpa demais. O garçom chegou,
solícito: “Mais um?”. “Tá”. Fazer o quê. O primeiro chope tava amargo demais,
pedi um da brama. A porra do bar só serve duas marcas de chope. Ou isso, ou
vaza. Caralho, e é o melhor lugar da cidade, na ponta do Mercado. Ódio. Fiquei,
ainda que com aquele sentimento de estar traindo o Alvin e toda a companheirada
que antes frequentava o bar.
Mas a vida ali na esquina dessa cidade que amo me chamava. E
eu mergulhei. Esquecida do ambiente abuguesado e dos clientes entojados,
fiquei, virada para a rua, balançando no vai e vem. Lá na outra ponta do camelódromo
começou um bafon, uma mulher gritava por conta de uma sombrinha. Sorri. A vida!
Do nada surgiu um cara com uma caixa de som e começou a cantar. Músicas bregas,
de traições e mágoas de amor. Pedi o terceiro chope, sem nem olhar para dentro
do bar. O centro da cidade é bom demais. Não saberia viver sem isso.
Por fim, 30 pila mais pobre (é, 10 pila cada chope), decidi
pegar o rumo do sul. Misturei-me a multidão que assomava rumo ao terminal, passei
a catraca da Plataforma B e procurei o Rio Tavares. Lá estava, parado, e com
pouca gente. “Milagre, milagre”, gritei, mentalmente, e corri arrastando a
sacola da Millium, onde tinha comprado umas almofadas vermelhas. Sentei esbaforida. Um menino no meu lado
sorriu. E eu retribui.
Ah, tem horas que vale a pena viver.
Aqui, a histórica entrevista com o Marcelo, garçom no Bar do Alvin.
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