Com meu pai, buscado caminhos...
Então, de repente, a velhice mostra sua cara. E não é aquela
dos folhetos da previdência privada, nem da Unimed. É velhice real, que chega e
toma conta daqueles que amamos, com doenças e esquecimentos. Pode ser o pai, ou
a mãe, ou um avô. E, no contrapé, pega de surpresa, afinal, as pessoas até
percebem o velho, mas não notam que ele está perdendo a autonomia. Assim, sem
manual e sem qualquer experiência anterior, por vezes é preciso enfrentar uma
situação nova, cheia de desafios e surpreendentes ensinamentos.
Foi assim com Nelson. Sempre ativo e tomando conta de tudo,
um belo dia foi surpreendido pela filha rasgando documentos importantes. Ela
perguntou o motivo daquilo. E ele negou veementemente que o havia feito. Não se
lembrava. Acendeu a luz vermelha e lá se foi a família buscar um médico. Um dos
melhores de Porto Alegre. Ele fez uma consulta padrão e em poucos minutos já
dava o diagnóstico: Alzheimer. Essa doença tão temida, que provoca o
esquecimento. A filha fica meio sem chão, mas, seguindo as receitas médicas
começa a medicar o pai.
O remédio logo mostra a que veio. Nelson estava como um
bobo. Já não conseguia articular as palavras, não controlava as necessidades
físicas, a boca entortava, não queria comer. Foi um baque, porque ele sempre
fora o arrimo da casa. Vivendo no meio do mato, sem muitos recursos, a filha,
atarantada com a mudança drástica de comportamento, decidiu suspender a
medicação. Talvez tenha sido o que o salvou. A bobeira passou e ele começou de
novo a atinar as ideias. A outra filha decidiu buscar outro médico. Trouxe para
Florianópolis. Nova consulta, um médico capaz de olhar a pessoa e não a doença.
Ele chegou à conclusão de que o que Nelson precisava era de uma boa nutrição, cuidado
e atenção. O demais, como a perda de memória, ficaria monitorando. Poderia ser
o esquecimento normal da velhice. Aos 85 anos isso não era algo tão fora da
realidade.
E assim foi feito. Alimentação saudável, música, cuidado e
paciência. Muita paciência. Mas, essa não é uma jornada fácil. Os velhos
precisam de atenção durante 24 horas. Porque eles podem esquecer um fogão
ligado, um cigarro aceso, meter a mão onde não devem. Aí vem o drama: como
cuidar 24 horas, se é preciso sair para trabalhar? A vida vira de pernas para o
ar. E quando o velho precisa ser trocado, usar fraldas e tudo mais, torna o
cuidado ainda mais difícil. Afinal, é preciso força para erguer, virar,
movimentar. Ter uma pessoa idosa em casa, exigindo atenção permanente, é uma
virada radical. Poucas famílias conseguem segurar essa barra.
Na verdade, ninguém está preparado para essa tarefa. Não há
conhecimento sobre como proceder, o que fazer. A pessoa velha, doente e fora de
sua casa, fica irritadiça, nervosa, rebelde. Não se sabe o que fazer. E a única
saída é ir tateando no escuro. Ler sobre o tema, buscar relatos de outras
pessoas que enfrentam o mesmo drama, buscar amparo. Algumas famílias são
maiores, podem dividir as tarefas, construir tabelas de horários para um e para
outro, constituindo turnos, rotinas, afinal, o cuidado é permanente. Ainda
assim, é difícil conciliar estudo e trabalho. Agora, e quem não tem família,
faz o quê?
Quem pode cuidar um
velho?
Cuidar de uma pessoa velha e doente é difícil demais. Não
existe nenhum lugar onde se possa buscar ajuda. Cada família que se vire. Existem
os cuidadores particulares, mas o preço a pagar é muito alto. Para uma família
de trabalhadores fica inviável. Possivelmente é por isso que uma das opções
mais buscada é colocar os velhos num asilo. Não é por descaso ou desamor. É justamente
o contrário. Sem condições de cuidar e tendo de prover a família, a pessoa fica
sem saída.
Em Florianópolis já existe uma casa, no bairro Santa Mônica,
um bairro nobre, que funciona como creche. A família leva o velho e ele fica lá
enquanto o povo trabalha. No fim do dia vão buscar e ele vive em família, sem
ser privado da companhia dos parentes. Mas, igualmente, é uma opção privada e
caríssima.
Há algumas pessoas que já discutem em grupos na internet a
possibilidade de criar um movimento pró-creches públicas para velhos. Mas, lendo
mais sobre o assunto, surgem muitas dúvidas sobre se esse é um caminho
saudável. No geral os velhos não gostam de sair de seus lugares habituais,
mesmo os que estão sem memória. Eles têm suas próprias rotinas e andar com eles
pra lá e prá cá, todos os dias, pode ser motivo de estresse. E teriam de sair
da cama muito cedo para acompanhar quem vai ao trabalho. Um sacrifício total.
E, depois, o velho não pode ser tratado como se fosse uma
criança. Esse é um dos erros mais comuns que se comete. Eles já passaram por
essa fase, e ainda que não tenham lembrança de várias coisas, de alguma maneira
sabem que não são bebês. Então nada de guti, guti, nem de tutelagem. É
fundamental que o velho tenha alguma autonomia. Que possa decidir sobre o que
comer, o que fazer, como passar o dia. A família que cuida precisa ficar de
longe, a cuidar e, vez em quando, propor um passeio, uma distração. Mas, isso,
como já vimos, não é uma opção para muita gente.
Fui buscar na internet sobre a experiência de cuidar velhos
em Cuba, que é um país com uma proposta socialista, e percebi que lá eles têm
discutido bastante essa questão. Porque também estão vendo sua população viver
bem mais. Esse é um assunto novo, afinal, a longevidade não era coisa que fazia
parte da nossa vida. No Brasil, entre 2005 e 2015, a proporção de idosos de 60
anos ou mais, passou de 9,8% para 14,3%. E há estimativas de que em 2050 esse
número triplicará. Esses são números do Brasil, mas o envelhecimento da
população é uma tendência mundial. Não é sem razão que o sistema capitalista aponta
para reformas de Previdência em todos os países. Querem os velhos trabalhando
até a última gota de energia.
Mas, voltando a Cuba. Lá, a população já tem uma experiência
de 60 anos de socialismo, a ideia de solidariedade é uma coisa que vive no
cotidiano das gentes e assim como com as crianças, é comum numa rua ou numa comunidade
específica, todos cuidarem de todos, prestando atenção em quem saiu, quem está
doente. Ainda assim, podem-se ler muitos artigos sobre a necessidade de um
cuidado mais específico para com os velhos. Também há debates sobre a criação
de creches públicas para esses casos. É um tema em discussão. Enquanto isso, o
estado orienta as comunidades a se ajudarem uns aos outros no cuidado com os
velhos, principalmente com os doentes.
No mundo capitalista já não temos essa sorte. Nem da solidariedade,
nem da preocupação. No geral, quem tem um velho que se vire com ele. É comum as
pessoas ficarem sozinhas na estrada, inclusive com o sumiço dos amigos. Na vizinhança
também pouco se consegue de solidariedade. As pessoas se preocupam, perguntam,
mas não estão dispostas a uma ajuda concreta. O máximo que se tem é mirada do
pessoal da padaria ou do mercadinho, que é avisado sobre a doença do
esquecimento, porque as famílias colocam ali um telefone para o caso de a
pessoa aparecer sozinha ou se perder.
A logística do cuidado, dentro de casa, tampouco é coisa
fácil. A vida de todos fica afetada. Uns mais, outros menos. Há muito estresse,
pois é preciso respeitar religiosamente os horários de cuidado, para que
ninguém fique prejudicado. Alguém tem uma aula fora do horário, uma reunião,
uma festa, e toda a família precisa se reacomodar. E, em Florianópolis, onde o
transporte é um drama à parte, garantir isso é dureza. Uma pessoa que mora no
sul da ilha, como eu por exemplo, leva mais de duas horas para fazer o percurso
entre a casa e o trabalho, e qualquer atraso numa parte do caminho pode
significar que alguém ficou na mão. Haja maracujina.
Mas, ainda há outros tropeços, como enfrentar a tristeza de
ver alguém perdendo a memória ou a rotina incessante das repetições. Há
momentos em que os velhos ficam irascíveis e até violentos. Porque não
conseguem verbalizar uma palavra, ou porque não se lembram de algo, ou porque
não querem tomar banho. É doloroso. A velhice pode ser um momento bonito se o
velho tiver saúde e pessoas que o amam a sua volta. Mas, isso não é válido para
todos. Até porque, hoje, as famílias são pequenas e muitas não conseguem
estabelecer uma rotina de cuidados. Outras há que não encontram outra forma
senão asilar. E sofrem com isso também.
Assim que a propaganda da previdência privada sobre a melhor
idade é uma enganação. Somos uma geração que precisa aprender como fazer para
cuidar dos nossos pais, ou tios, ou avós, porque eles estarão aí. E nós, os
trabalhadores, não temos muitas escolhas. Por isso não é bom tatear às cegas,
abrindo a mata à facão. Dá muito trabalho e cometem-se muitos erros.
Então, esse é um tema sobre o qual precisamos falar mais,
aprender juntos, como sociedade. Termos mais solidariedade real. Afinal, já
existem estudos que mostram que no caso dos que optam por cuidar dos velhos em
casa, boa parte acaba morrendo primeiro que eles, por conta do tremendo estresse
a que ficam submetidos, seja pela logística, seja pela tristeza de ver os pais
ou avós definharem.
Hoje, eu estou nessa missão de cuidar do meu pai - conto com meu companheiro e dois sobrinhos - o que ajuda bastante. E quando
caminho na minha rua meus olhos procuram os velhos. Não os vejo. Mas se os vir,
vou fazer como os cubanos: oferecer o conhecimento que estou construindo,
oferecer ajuda no cuidado. Creio que esse pode ser um caminho. Se cuido do meu
pai, posso cuidar do pai ou da mãe de alguém no mesmo período. Quem sabe a
gente não começa, por aí, a constituir uma solidariedade por rua. Enfim, são
coisas que me acometem, pensamentos, ideias, utopias.
E por aí vamos...
Tema super importante.
ResponderExcluirVou compartilhar, se me permites.
Bela reflexão.
Abraço!
Te entendo em um... 200%!! Elaine Tavares... 100% por ter vivido a coisa do lado do "cuidador" e agora, 100% mais, por senti-lo do lado do 'cuidado'...
ResponderExcluirA Europa e os Estados Unidos, têm apostado na volta às antigas comunidades 'colaborativas', chamadas: "Senior Cohousing" onde a qualidade de vida melhora e a minimização do problema já é muito!
Realmente para o humano é. Quase impossível cuidar. Passei maus momentos com meu pai que acabou contraindo honzaimer e faleceu 2 anos depois, porem, fui totalmente presente em todos os sentidos e, contei com a ajuda de irmãos e principalmente de minha mãe e minha esposa e, hoje estou cuidando de minha mãe que está com 93 anos em cima de uma cama e com dependência total da família, Mesmo assim dou graças ao Senhor em me dar forças para vencer as barreiras do dia a dia.
ResponderExcluirAdorei.
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