Alzheimer/Velhice

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

As escolas, os estudantes e a flor



Uma das táticas infalíveis do processo de produção de consenso é a repetição contínua e sistemática de mentiras. São tantas vezes ditas que viram verdades. Nelas, também é bastante comum as coisas trocarem de lugar. A vítima vira o vilão. É batata!

Assim tem sido com os estudantes que ocupam escolas. De repente, aqueles garotos e garotas, que se aborreciam nas salas de aula, decidiram tomar o presente à unha. E diante de uma proposta que os governantes chamaram de “reestruturação” resolveram se levantar. A gurizada não é burra. Logo se deu conta que a reestruturação queria dizer destruição. Na época, o governo paulista, de Geraldo Alkmin (PSDB) decidiu fechar escolas onde achava que não eram “rentáveis”. Como se uma escola tivesse de ser lucrativa.

A gurizada teria de sair do seu bairro, viajar quilômetros para chegar noutra escola, com salas de aula ainda mais cheias, com professores massacrados e mal pagos. Então, não houve dúvidas. Começaram a ocupar suas escolas para impedir que fossem fechadas. Que crime é esse? Um guri, uma guria, fincar pé na sua escola, porque que quer aprender, conhecer, se instruir, isso é irregular?

As ocupações em São Paulo, em Goiás, no Rio Grande do Sul, em Minas, mostraram que algo estava acontecendo, e que era grave. Naqueles dias, o assunto foi parar na mídia e até certo ponto os estudantes foram respeitados na sua luta. Depois, quando o processo se espalhou, a classe dominante viu que era preciso parar com a “brincadeira”. Veio então a ordem para desocupar com a força policial. E todo o Brasil acompanhou a retirada da gurizada, com a velha violência de sempre. A coisa parecia superada.

Com a consolidação do golpe parlamentar, as forças conservadoras, que já arreganhavam os dentes desde 2013, assomaram, ganharam musculatura, se fortaleceram e começaram a impor suas pautas ao país. Veio então a reforma do ensino médio, assim, por decreto, sem sequer passar pelo legislativo. Acabava com a obrigatoriedade do ensino de matérias universalistas, fundamentais para a formação de um pensamento crítico: sociologia, filosofia, artes. Nada disso na escola pública. Essas cadeiras que fazem pensar só nas escolas privadas, onde se forma a classe dominante. De novo o velho refrão: “Pobre tem de ficar no seu lugar”.

Então, a gurizada se levantou outra vez. E os secundaristas voltaram à tática de ocupar escolas. Porque ali é o lugar onde passam grande parte do seu tempo, no mais das vezes, tentando, com muito esforço, manter a cabeça de fora do poço de mediocridade e superficialidade que o ensino formal no geral propicia. Poucos professores conseguem garantir uma aula crítica, cheia de motivação. Afinal, a maioria deles precisa correr de uma escola a outra, dando dezenas de aulas, para garantir um salário mais ou menos capaz de suprir suas necessidades vitais. Ainda assim, por conta da bravura e do compromisso político com os alunos, boa parte dos educadores supera as dificuldades e rema contra todas as forças do atraso. Os alunos sabem disso. Reconhecem os que lutam. Não é sem razão que quando tem greve, apoiam e lutam junto.

E os alunos apoiam as greves, quando as aulas param, porque sabem que param para que possam continuar. Para que possam melhorar. E quando a mídia e os governos gritam que os professores são vagabundos porque saíram da escola, porque pararam as aulas, os alunos sabem que não é assim. Porque estão ali, cotidianamente, vendo o esforço que fazem para garantir um ensino de qualidade na escola pública.

Por isso que agora, quando esse ensino sofre outro ataque – além da já tradicional exploração do professor – os estudantes insistem em se manter na escola. Dentro dela. Para que essa escola siga aberta, para que continue resistindo no mar das dificuldades, preparando as cabeças para o enfrentamento da vida.

O levante dos secundaristas brasileiros na defesa da educação é de uma riqueza sem par. Não é uma luta pontual. É constituída pela universalidade do problema educativo. Questiona tudo: as leis, os cortes de verba, o sumiço das matérias de humanidades e a própria forma de ensinar. Há uma coisa incrível aí nessas ocupações que vai contra tudo o que se diz do jovem do século XXI.

“Só querem fumar maconha e ficar na internet”, insistem em dizer os governantes sem moral e ética. Pois o concreto da luta desmente cabalmente essa falsa informação. Os secundaristas querem a escola, querem estudar, e querem que tudo isso aconteça de uma forma diferente da educação bancária reservada para os pobres. Os secundaristas estão abrindo portas e janelas, deixando entrar o ar do novo século. Eles ensinam sobre essa nova escola, que tem de ser livre, participativa, motivadora, humana, cooperativa, solidária. Quem tem olhos para ver, que veja.

O fato é que o levantes dos estudantes, independentemente do que venha acontecer, com toda a truculência que está deflagrada, já venceu. Ele é igual a flor do poema de Drumond:

“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.”

Podem vir as bombas, os cassetetes, os fuzis, as prisões. Pode vir o que for. Já era. Nasceu, e é uma flor. Ainda que tudo se acabe, ainda que as escolas sejam retomadas e  invadidas pelos ladrões de futuro, pelos vilões do amor, a lição já terá sido aprendida.

Os estudantes mostram, com essas ocupações, que a escola pode ser boa, bonita e capaz de formar seres cheios de beleza e conhecimento transformador. Não tem retorno. O estopim foi aceso e não há como parar. O projeto de escola de hoje para frente tem de ser outro. E vai ser, a despeito de tudo. A história nos mostra que é assim. Quando confrontados com a força da mudança, aqueles que querem conservar o atraso usam de todas as armas. Violentam, humilham, tortura, matam, desaparecem. Mas, ainda assim, as coisas mudam. E mesmo as leis que são criadas para abafar, ou garantir o uso da força bruta e da tortura - como agora – também são atropeladas pela vida que quer viver. Foi assim em Córdoba, em 1918, quando os estudantes mudaram o jeito de ser universidade. Foi assim na França de 1968, quando os estudantes acenderam lutas gigantescas junto com os trabalhadores, foi assim no México em 1968, quando apesar do massacre que matou mais de300 estudantes, a universidade se transformou.

Hoje, vendo os meios de comunicação silenciarem sobre essa flor que brota do “asfalto”, e as forças conservadoras incitarem outros jovens e familiares a esmagar a beleza, o que nos cabe é apoiar, proteger, regar. Porque essa gurizada está fazendo história, mudando a temperatura do mundo. Eles sabem que a vida só tem sentido no jardim. Por isso, plantam.

A vitória já aconteceu. 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

“Então eu tô louco?”




Nos finais de tarde é tempo de tomar chimarrão com o pai, buscando conversas e lembranças do fundo da memória. É a hora em que ele faz perguntas sobre coisas que não consegue mais entender. Não como a criança, cheia de curiosidade. É um velho, por vezes sem memória,  cheio de perplexidades. Hoje, em meio a um gole e outro do mate, ele puxou um “recuerdo” lá dos anos 70. É assim. Do nada, se lembra de coisas muito antigas. Enquanto lhe explicava que amanhã é feriado pelo dia dos mortos, ele perguntou por um velho amigo dos tempos da Rádio Fronteira do Sul, onde trabalhou durante anos em São Borja. “E o Lauro, já morreu?” 

- Sim, pai, já morreu há muitos anos, muitos mesmo.

Ele terminou o mate, bem devagar. Depois, coçou a cabeça e disse: “Tantos amigos meus já morreram e eu não estava sabendo de nada”. Aí é a hora de explicar que ele sabia sim, só que esqueceu, por conta de a memória estar com algumas falhas. Uma longa e minuciosa explicação que ele escuta atento.

- Eu sabia, e esqueci?

- Sim, isso mesmo. Mas aí a gente vai conversando e tu vais lembrando.

Um silêncio. Mais silêncio. “Mas, então, eu tô louco? Como posso não lembrar?”

E lá vou eu de novo, explicando devagar. “Não pai, não estás louco, é que...”

A vida de quem vai ficando velho é assim. Como se fora uma Penélope de Ítaca. Tece o tapete durante o dia, amarra os fios da memória, busca lá dentro da cabeça alguma fagulha de passado. E quando vem a noite, algum duende trata de desfazer toda a trama. Quando chega a manhã ali está de novo o tapete, esperando ser tecido.

Então, quando vem a tarde, e estamos juntos, tudo se repete. As perguntas, as respostas. É triste e ao mesmo tempo um aprendizado. Hora de aprender a lentidão outra vez, numa vida que foi tão cheia de coisas para fazer. Tempo de também buscar memórias igualmente esquecidas ou obscurecidas. Puxando o novelo do passado vamos refazendo a tapeçaria, dele e minha. Por vezes me surpreendo com a capacidade que tenho de recuperar detalhes ínfimos de histórias velhas. Conto e reconto, dia após dia. E quando ele se lembra, dá uma gostosa risada. Rimos juntos.

Às vezes ele parece triste, outras vezes fica com raiva, por não conseguir lembrar. Mas, de repente, passa um cachorro, aninha a cabeça no seu colo e ele se perde na ternura do gesto de acarinha-lo lentamente. De novo recupera serenidade. Pega um cigarro, fuma lento, e sai devagarinho, arrastando os pés. Lembra que é hora de molhar as plantas. Um átimo e já esqueceu que esqueceu.

Assim, a vida segue. E a gente vai aprendendo. É duro, mas tem lá a sua beleza.



segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Dia do Saci é celebrado em Florianópolis




Fotos: Rubens Lopes 

Não foi fácil celebrar o dia do Saci Pererê e seus amigos um dia depois do processo eleitoral. A cidade ainda estava emburradinha, cansada dos panfletos e das cantilenas partidárias. Por isso, o pequeno grupo que organiza a sacizada era olhado meio de revés, considerando que estavam todos de gorrinho vermelho. Mas, tão logo as crianças que passavam agarradas às mães ou pais na Felipe Schmidt enxergavam o enorme Saci na esquina, a coisa ia mudando de figura. Brotavam os risos e os rostos desenferruscavam.

Animados pelo ator Eduardo Bolina, no seu personagem Magrão, as pessoas já arriscavam uns pulinhos e não foram poucos os que se postaram do lado do Saci para as fotos. Foi o caso de um rapaz do Ceará, que circulava pelo centro com a mulher. Encantado com o molequinho das matas ele se postou para o clique, e a mulher, cega, insistiu para tocar aquilo que tanto o estava comovendo.
- Mas, é um boneco! Exclamou, enquanto percorria a figura feita de papel machê com os dedos. “O saci é nosso”, finalizou entre risos.

Além das estripulias do Magrão foram distribuídos panfletos, principalmente para quem estava com crianças. Nele estava a história do Saci, para lerem em casa, aprofundando os conhecimento sobre o mito brasileiro. Também foram distribuídos barretinhos vermelhos, cachimbos e pipoca, fazendo a festa da gurizada.

O tradicional folguedo da ilha, o Boi-de-Mamão também veio se juntar ao Saci com todos os seus bichos, e a Maricota – personagem do boi – até arriscou um namoro com o Saci. Durante 45 minutos o centro parou para ver o “Alevanta meu Boi”, lá da comunidade dos Ingleses.

A festa sacizistica acontece na ilha desde o ano de 2004, iniciada pelo grupo da revista Pobres e Nojentas e o Sindicato dos trabalhadores da UFSC, e é uma tentativa de popularizar os mitos e lendas nacionais, até porque nesse mesmo dia os brasileiros andavam comemorando uma festa linda que faz parte da cultura estadunidense, o “raloim”. Assim, para valorizar os mitos locais começou esse sabá de Saci.

Desde aí, todos os anos, o mesmo grupo se reúne e organiza atividade que leva alegria e conhecimento para as ruas. É o momento em que se dialoga com a população e se contam das lendas locais.  

Esse ano contamos com o apoio fundamental do Sintufsc, Sintrajusc e Eletricitários, sindicatos que reúnem trabalhadores da universidade federal, justiça federal e eletricitários, e que historicamente tem se somado às Pobres e Nojentas nesse esforço de divulgação da cultura brasileira.

Em 2016 também foi a primeira vez que o Dia do Saci aconteceu já sob os auspícios da lei municipal que instituiu o 31 de outubro como Dia Municipal do Saci e seus amigos, através de um projeto de lei do vereador Lino Peres. A ideia agora é procurar incluir esse dia como um momento de debate sobre a cultura da nossa cidade, que também tem tradição de bruxas, desenhadas e divulgadas pelo grande Franklin Cascaes. O saci, como um mito que articula o país inteiro, é o condutor dessa proposta que visa nacionalizar a cultura.

Sua figura representa os três ramos culturais e étnicos do nosso povo: o indígena, o negro e o branco. Uma mescla de histórias e culturas que hoje formam o imaginário mítico do nosso país.

A festa do Saci encerrou com a tradicional ciranda, esperando que os tempos que se avizinham sejam de muita força para toda a gente. Com o Saci, molequinho travesso que gosta de esconder coisas e embaralhar os cabelos, vamos saracotear nos redemoinhos da vida e da política do nosso país. E, como ele, vamos sobreviver a todos os vendavais. Porque estamos juntos e porque sabemos onde queremos chegar.


Nosso carinho especial aos sindicatos que nos ajudaram, ao vereador Lino e particularmente às “nojetas” Miriam Santini, Jeane Adre e Salete Lanzarin, que garantiram, na raça, mais um Dia do Saci.