Nos finais de tarde é tempo de tomar chimarrão com o pai,
buscando conversas e lembranças do fundo da memória. É a hora em que ele faz
perguntas sobre coisas que não consegue mais entender. Não como a criança,
cheia de curiosidade. É um velho, por vezes sem memória, cheio de perplexidades. Hoje, em meio a um
gole e outro do mate, ele puxou um “recuerdo” lá dos anos 70. É assim. Do nada,
se lembra de coisas muito antigas. Enquanto lhe explicava que amanhã é feriado
pelo dia dos mortos, ele perguntou por um velho amigo dos tempos da Rádio
Fronteira do Sul, onde trabalhou durante anos em São Borja. “E o Lauro, já
morreu?”
- Sim, pai, já morreu há muitos anos, muitos mesmo.
Ele terminou o mate, bem devagar. Depois, coçou a cabeça e
disse: “Tantos amigos meus já morreram e eu não estava sabendo de nada”. Aí é a
hora de explicar que ele sabia sim, só que esqueceu, por conta de a memória
estar com algumas falhas. Uma longa e minuciosa explicação que ele escuta
atento.
- Eu sabia, e esqueci?
- Sim, isso mesmo. Mas aí a gente vai conversando e tu vais
lembrando.
Um silêncio. Mais silêncio. “Mas, então, eu tô louco? Como
posso não lembrar?”
E lá vou eu de novo, explicando devagar. “Não pai, não estás
louco, é que...”
A vida de quem vai ficando velho é assim. Como se fora uma
Penélope de Ítaca. Tece o tapete durante o dia, amarra os fios da memória,
busca lá dentro da cabeça alguma fagulha de passado. E quando vem a noite,
algum duende trata de desfazer toda a trama. Quando chega a manhã ali está de
novo o tapete, esperando ser tecido.
Então, quando vem a tarde, e estamos juntos, tudo se repete.
As perguntas, as respostas. É triste e ao mesmo tempo um aprendizado. Hora de
aprender a lentidão outra vez, numa vida que foi tão cheia de coisas para
fazer. Tempo de também buscar memórias igualmente esquecidas ou obscurecidas.
Puxando o novelo do passado vamos refazendo a tapeçaria, dele e minha. Por
vezes me surpreendo com a capacidade que tenho de recuperar detalhes ínfimos de
histórias velhas. Conto e reconto, dia após dia. E quando ele se lembra, dá uma
gostosa risada. Rimos juntos.
Às vezes ele parece triste, outras vezes fica com raiva, por
não conseguir lembrar. Mas, de repente, passa um cachorro, aninha a cabeça no
seu colo e ele se perde na ternura do gesto de acarinha-lo lentamente. De novo
recupera serenidade. Pega um cigarro, fuma lento, e sai devagarinho,
arrastando os pés. Lembra que é hora de molhar as plantas. Um átimo e já
esqueceu que esqueceu.
Assim, a vida segue. E a gente vai aprendendo. É duro, mas
tem lá a sua beleza.
Que lindo Elaine!!!!
ResponderExcluirÉ... é bem assim... esse infindável construir e reconstruir, dando sentidos novos ao destroços é coisa que dá pra fazer na presentificação do afeto.
ResponderExcluirObrigada por tuas palavras sempre e desafiadoramente afetuosas.
Catarina