Alzheimer/Velhice

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Das regionalices



Florianópolis tem um jeito de falar que é muito peculiar e característico do povo daqui. É o chiadinho na pronúncia do “s”, a rapidez no falar, as palavras típicas, as expressões singulares. É tudo muito lindo, mas , vez em quando, nos coloca em maus lençóis. Um exemplo disso foi a cena que protagonizei em Brasília, quando passei por racista.   

Estávamos eu e o Assis, um querido amigo que já encantou, numa daquelas malfadas plenárias da Fasuba, na UNB, e esperávamos o ônibus. Demorou, demorou e nós falando sem parar, reclamando do transporte daqui e de lá. Até que finalmente surgiu o buzão e entramos, espevitados. Na correria esquecia a minha pasta na parada. O Assis gritou para o motorista parar que a gente precisava voltar e pegar a bolsa. Ele foi muito gente boa. Parou e esperou.  Quando retornamos, gritei lá do fundo, expressando minha gratidão. “Muito obrigada, nêgo, deus abençoe”.  

O ônibus todo se voltou para mim. E o motorista sequer respondeu, fechando a cara. Eu estaquei. Puta merda! O motorista era um homem negro. Deve ter achado que eu falei: obrigada, negro. Caramba. Uma grosseria, a considerar o profundo racismo da nossa sociedade. O Assis, que era bem mais mané que eu, também falou algo do tipo, naquela alegria que lhe era peculiar. Não percebeu o desconforto.

Eu tinha duas opções. Ou tentava explicar que era de Florianópolis e que aqui todo mundo usa essa expressão “nêgo, nêga” para qualquer pessoa, independentemente da etnia, sem qualquer ligação com a cor da pele, ou  ficar quieta, por perceber a animosidade que já se expressava em vários rostos. Lembrei o provérbio árabe que diz: não se justifique – os amigos não precisam disso e os inimigos não acreditarão. Achei melhor ficar quieta. Passei por racista. Na hora em que saltei, ainda esbocei um sorriso para o motorista, mas ele não retribuiu.

Outra fria me proporcionou o “quirida”, é , assim, com “i” , que é como usamos aqui na ilha. Em Belo Horizonte, depois de comprar uns bindis de uma vendedora super atenciosa, terminei com o “muito obrigada, quirida”. Ela franziu a cara. Eu notei. Nesse dia, estávamos só as duas, eu resolvi explicar. “Desculpa a intimidade, mas lá em Florianópolis usamos muito essa expressão”. Ela riu e disse que ali esse tipo de coisa era dito quando se queria ser falsa.


Poix! O negócio é a gente se cuidar por aí nesse brasilzão de tantas falas e expressões. Afinal, nessas horas não dá pra sair com a nossa velha expressão de “ se quéx, quéx, se não quéx, dix”,  não é mesmo quiridos?


Por que se teme ao comunismo?


A Comuna de Paris mostrou a Marx que não basta tomar o estado, há que destruí-lo rompendo a máquina burocrática e militar

Observando o avanço desenfreado das pautas da direita em todo o planeta, com a também crescente fascistização da vida, via as epidêmicas redes sociais, me assalta uma certeza: o comunismo, mais do que uma necessidade política, é uma necessidade biológica. E, diante da realidade, essa forma de organizar a vida aparece-me como a única alternativa possível para os seres humanos. Alguém pode dizer que sou uma louca, quando tudo parece apontar para um retorno inexorável dos tempos mais sombrios, mas, posso mostrar que não. 

Imaginem-se na baixa idade média, quando a violência contra os pobres recrudesceu, uma vez que os senhores feudais viram que as mudanças causadas pelo nascimento dos burgos eram profundas. Naquelas horas noas, de angústia e violência, quem arriscaria dizer que estava em processo de consolidação uma nova forma de viver que daria fim ao feudalismo? Os loucos? Não! Os que faziam boas análises da realidade.

O mundo atual, capitalista, imperialista e monopólico tem como base uma equação simples: para que um viva, outro tem de morrer. Isso significa que é, por natureza, destruidor e violento. Se no mundo antigo, a escravidão era garantida pela força de uns poucos e no mundo feudal a servidão se mantinha pelo terror dos senhores da terra, no capitalismo os escravos modernos – assalariados – são mantidos também pela força da repressão policial e burocrática. E é comum, a história nos mostra, quando um sistema está ruindo, a repressão a violência contra os de baixo aumentar consideravelmente. É a tentativa desesperada da classe dominante para manter o poder.

E o que vemos hoje no mundo? Uma violência exacerbada contra tudo aquilo que possa representar uma ameaça ao sistema capitalista de reprodução da vida. Qualquer gritinho de protesto já é considerado terrorismo e a força do braço armado do poder cai sobre as gentes com precisão. É um tempo de extermínio. Até no Brasil, onde o tal do “terrorismo” raramente deu as caras, os deputados aprovaram no dia 24 de fevereiro uma lei anti-terrorismo. E com base no quê? Numa suposta possibilidade de aparecer algum “deles” nas Olimpíadas. Piada? Não! Medo.

A classe dominante mundial está com medo. E isso é bom. Se, por um lado, esse medo recrudesce a violência oficial, por outro, mostra que há um pequeno buraco na represa, como no antigo conto holandês. E o sistema tenta conter a avalanche, matando, desaparecendo, trucidando, fazendo guerra.
Diante desse quadro, só nos resta o comunismo. E uma das coisas que mais me impressiona é ver alguém chamando outro alguém de comunista como se fosse uma coisa ruim. Ou ainda, falar do comunismo como se fosse o pior que pudesse acontecer na terra. Como isso poder ser possível? Quem em sã consciência pode achar que o comunismo é ruim? Pois para responder essa questão, proponho o debate de alguns elementos que compõem o comunismo, para que, sem preconceito, possamos definir o que de bem e bom pode ter num regime como esse.

A ideia de um mundo justo, no qual todos possam ter vida digna não é coisa do alemão Karl Marx, tão demonizado. Ela aparece bem antes dele em escritos de tantos filósofos, inclusive no mundo oriental. Mas, claro, é Marx quem aponta o comunismo como um sistema de organização da vida que só pode acontecer depois que sejam desvendados e superados os terrores do mundo capitalista, que ele tão bem visualizou. A partir do estudo sobre como se expressam e se concretizam no mundo real as relações de produção do sistema capitalista, Marx concluiu que não podia ser possível ao humano viver nessas condições. Ele não descobre a luta de classe, ele a põe em foco.

Assim, segundo ele, uma vez que os trabalhadores desvelassem o véu da alienação que os mantêm presos a um sistema que oprime e mata, a única possibilidade seria a construção de uma forma autônoma e livre de viver, na qual sequer o estado seria necessário. Isso é o comunismo.

Nessa forma de organizar a vida não haverá uma classe dominando a outra. Todos serão livres e administrarão a produção das coisas para o bem-viver. Cada um trabalhará conforme sua condição e receberá conforme sua necessidade. Não haverá divisão entre trabalho braçal e intelectual e todo o trabalho será considerado digno. Se a pessoa for trabalhar como lixeiro e tiver oito filhos para sustentar, ele receberá o suficiente para isso. Ninguém precisará mendigar, migrar, fugir, se prostituir, se destruir. O estado não será necessário, porque ele existe apenas como expressão de dominação de uma classe sobre a outra. Se não houver classes, para que estado? “Poderíamos empregar em vez de estado, a palavra comunidade”, diz Engels. 

Aí se pode dizer: isso é uma bobagem. Tem que ter organização, tem que ter direção, tem que ter ordem. Mas, quem diz que não haverá? Haverá tudo isso, mas sem que alguém oprima o outro. Se cada um receber conforme a necessidade não será necessária a hierarquia entre os trabalhadores. O que hoje está numa posição de organizador da produção e do trabalho, amanhã pode não estar. E se está, vai receber o que precisa para viver. Nem mais, nem menos. O cargo que ocupa não lhe dará poderes sobre o outro. Não haverá patrão, uma vez que os bens produzidos serão coletivos, assim como a terra. E se tudo for assim, tão bom, haverá festa e haverá beleza, essas coisas doces, necessárias ao espírito. Essa é a ideia do comunismo evocada por Marx, que, é óbvio, irá se construindo e aprimorando pela ação das gentes.

Alguém dirá: isso é um sonho. O ser humano não consegue ter maturidade suficiente para viver assim, livre, sem patrão. Ora, no tempo da escravidão, dizia-se que os escravos morreriam sem o dono. No tempo da servidão, dizia-se que os servos não existiriam sem os senhores feudais. E, se foram os donos de gente, e, se foram os senhores feudais. Que passou com a humanidade? Avançou. Por que raios, então, a humanidade não iria dar esse salto de qualidade? Todas as retrospectivas histórias mostram que sim.

Agora, é fato que o comunismo não se fará em um passe de mágica, muito menos por decreto. Marx, Engels e Lenin escreveram muito sobre isso. Será necessário um tempo de transição, que é o socialismo. Esse tempo de transição preparará o caminho para o comunismo, a hora em que tudo será comum, comu-nitário. No socialismo ainda existem as classes, mas aí quem domina é a classe trabalhadora. E também será necessária a força, a burocracia, o estado. 

Por isso não faz sentido a gritaria dos capitalistas contra propostas como as de Cuba, por exemplo. É um governo forte, um estado forte, no qual quem domina são os trabalhadores. Na luta de classes cubana, pela revolução, venceram os trabalhadores. Eles comandam agora, e não a burguesia. Ah, mas eles são truculentos, violentos, tem presos políticos. Sim, são violentos, como eram violentas as forças que submetiam os trabalhadores antes. Quem não se lembra da ditadura de Batista? Ah, mas então é o dente por dente? Não. É porque ainda não é o comunismo, não há ainda a maturidade necessária para esse modo de organizar. Precisa ter Estado, precisa ter a organização hierárquica. E se o estado é o instrumento de dominação de uma classe sobre a outra, essa dominação é a dos trabalhadores sobre a burguesia. Até que todos estejam prontos para o salto, a nova ordem, o novo mundo, o mundo necessário. O socialismo é um período em que vão se depurar os projetos.

Assim que o comunismo, volto a dizer, é uma necessidade biológica. Porque nós, os humanos, temos esse desejo pelo que é bom, pela festa, pela beleza. Esse é o nosso propósito. Não é possível que a gente aceite, como raça, viver como estamos vivendo agora: oprimidos, violentados, massacrados, consumindo o planeta. Como os escravos e os servos nós também avançaremos para um tempo melhor. É infalível. 

Por isso vamos caminhando, pavimentando essa estrada de maravilhas. Talvez nós mesmos não venhamos a viver nesse mundo sonhado. Mas, não importa. Para ele estamos indo, inexoravelmente, e ele já existe dentro de todos os que o acreditamos possível. Como o casulo se transforma em borboleta. Assim será!


     

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Entregando o pré-sal


O senado brasileiro votou ontem à noite a favor do regime de urgência para a discussão e votação do fim da exclusividade de exploração do pré-sal pela Petrobras. O resultado foi apertado: 33 votaram pela urgência e 31 votaram contra. Isso significa que o projeto do senador José Serra (PSDB), que pretende entregar o pré-sal para as garras das gigantes transnacionais irá mesmo à votação, e em regime de urgência. Ou seja, não poderá haver qualquer adiamento. A decisão será tomada.

Os senadores catarinenses Dalírio Beber (PSDB) e Paulo Bauer (PSDB) votaram pelo regime de urgência, aliados com Serra.  Dário Berger (PMDB) votou contra o regime de urgência.

A considerar o resultado dessa votação, é praticamente seguro que a maioria vote favoravelmente ao senador do PSDB. É certo que a Petrobras já tem vários setores privatizados, mas ainda é uma estatal cuidando de um setor estratégico (energia). Passando a proposta de Serra, o Brasil e os brasileiros perdem e perdem feio, inclusive soberania.

O argumento do senador José Serra para entregar o pré-sal é de que a estatal brasileira (Petrobras) não têm os recursos  para tocar a exploração do petróleo no ritmo acelerado que ele considera deveria ser. Assim, propõe que se retire a exigência de que a Petrobras tenha participação assegurada na exploração de cada uma das áreas do pré-sal. Arregaça as portas para os estrangeiros.

Na verdade, a proposta de Serra está alicerçada no desejo das multinacionais do Petróleo que querem abocanhar as reservas a baixo custo. Assim, ele capitaneia mais um vergonhoso momento de entrega do patrimônio brasileiro promovido pelo PSDB, como foi a entrega da Vale do Rio Doce,  no governo de FHC. A intenção que se esconde por trás de mais essa vilania é a destruição da estatal do petróleo, além de entregar aos estrangeiros reservas que são estratégicas para o país. Uma vergonha.

Enquanto isso, os brasileiros estão completamente alheios ao que se passa dentro do Congresso, visto que os meios de comunicação sequer mencionam o que pode acontecer caso a exclusividade da Petrobras seja retirada. 


Apenas uma grande mobilização nacional poderia mudar o quadro da votação. Haverá? 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Líricas - lançamento dia 09 de março


Meu mais novo livro será lançado no dia 09 de março, quarta-feira, às 19h, no Bar do Zeca, espaço amoroso do bairro que escolhi para ser o bairro do meu coração: Campeche. O bar é rootzeira, coisa de gente da terra, com um grupo de trabalhadores que já são amigos do coração. Como o livro tem muitas crônicas do Campeche, não poderia ser em outro lugar...

Para chegar é fácil. Pega a Pequeno Príncipe e vai toda vida até o mar. No lado direito está o bar. Espero os amigos!!!

Abaixo reproduzo a apresentação feita de maneira muito generosa pela amiga e companheira jornalista Miriam Santini de Abreu.

A menina da rua da Coruja Dourada

Míriam Santini de Abreu

Parte da magia do jornalismo é empalavrar cotidianamente a realidade. E esse gesto de empalavrar tem várias formas e fôrmas, uma delas essa que escorre dos textos publicados pela jornalista Elaine Tavares no blog Palavras Insurgentes (eteia.blogspot.com) e que agora compõem a presente coletânea “Líricas: a palavra amorosa do cotidiano”.

O blog, no qual são postadas reportagens, artigos, comentários, fotografias e vídeos, tem sido, desde que foi criado, uma referência como voz dissonante no jornalismo cada vez mais acrítico que se pratica na atualidade. Ou que, quando crítico, se faz voltado para alugar o discurso aos poderosos, que dele se valem para disseminar o desentendimento venenoso da realidade. A escrita de Elaine, semeada em centenas de posts, amplia a compreensão do modo como a cidade se transforma em uma mercadoria à venda, mas também do movimento contrário, da resistência de mulheres e homens que desvelam essas negociatas e a combatem no cotidiano.

Os textos narram histórias de resistência pelo meio ambiente saudável, a paisagem aberta a todos, a cultura popular, a educação de qualidade, a informação a quem dela queira se apropriar, sem o controle dos oligopólios criminosos. Dessa forma, o blog – cujos textos são reproduzidos Brasil afora – também é um farol para as novas gerações de jornalistas, sinalizando o caminho das lutas populares percorrido até aqui e a escrita possível e necessária para mantê-lo aberto e pleno das narrativas de suas personagens.

Para esse seu décimo primeiro livro, Elaine pinçou do blog a escrita que, entre 2008 e 2014, se alarga no dizer de si, das cidades, dos caminhos, dos homens e mulheres que os percorrem. E assim ficaram atemporais as palavras amorosas do cotidiano, nessa escrita absurdamente célere da autora, que na sua prática cotidiana escreve como se os textos fossem frutos pendurados nos neurônios, bastando aos dedos no teclado o desejo de colhê-los. E palavras e parágrafos se avolumam para contar de Florianópolis e de outras terras, narrar as lutas de quem deseja que essa estreita faixa de terra no Atlântico não seja apenas para os ricos e bem-nascidos.

Os textos igualmente são pincelados pelos elementos da croniportagem, um gênero inventado pela equipe da revista Pobres & Nojentas, que Elaine edita e que já está na 30ª edição. A croniportagem  mistura elementos da crônica, posto que focaliza o cotidiano, e também da reportagem, visando a profundidade e a análise. 

São características da crônica, diz Massaud Moisés no livro “A criação literária”, a ambiguidade, a brevidade, a subjetividade, o diálogo - que possibilita uma conversa imaginária com o leitor -, o estilo, entre o oral e o literário, a temática, sempre ligada a questões do cotidiano, e a efemeridade. A croniportagem aproveita, em maior ou menor grau, todos esses elementos, aos quais acrescenta dois atributos da reportagem jornalística: a entrevista e a contextualização.

Assim é que, pincelado pelo viés ficcional, o texto “Um mate com `el comandante`” traz esse elemento de contextualização, em que a narradora conta ao visitante as derrotas dos povos latino-americanos, mas também as lutas e vitórias em Florianópolis, na Bolívia, em Cuba. O mesmo acontece em “Lá se foi o seu Chico” e “O menino e Artigas”, um o homem que abria seu recanto para ideias de liberdade compartilhada, outro o herói enlaçado pelos braços de uma criança, ambos sujeitos de histórias de enfrentamento pela terra.

Alceu Amoroso Lima, na já clássica obra “O jornalismo como gênero literário”, diz que o “ jornalismo vive o cotidiano, o efêmero, o que passa, e sabe, se realmente o for de verdade, ver nele a nota típica, diferencial, única, e portanto permanente, mas em sua unidade efêmera, e não na sua expressão perene, como o faz o poeta ou o ensaísta”. E ainda: o jornalista “... vive no tempo e capta a mensagem do tempo, do seu tempo, da hora que passa. Do dia a dia”. Essa nota diferencial no olhar para a realidade permeia os textos dessa coletânea.

Parte deles se volta para a compreensão da cidade, do espaço público do encontro, do conflito, do entendimento de si e do outro. Os lugares percorridos a pé, de ônibus e pelos fios da memória, unindo o tempo - o fio condutor do jornalismo - e o espaço. Textos também ancorados nas mudanças de estação, nos ciclos dia/noite, na relação memória/história. Exemplos desses líricos sobre Florianópolis, João Pinheiro, Uruguaiana, Caxias do Sul, São Borja, lugares onde Elaine morou, aparecem em textos como “O ônibus das 17:15” e “Os caminhos do Campeche”:

Na volta para casa, em meio às veredas, acompanham as curruíras, as cambacicas, as currecas, os coleirinhas, os canários da telha, os ferreirinhas, as rolinhas. Gritam os grilos, relincha um cavalo e, antes mesmo que a noite estenda seu manto escuro, já se pode vislumbrar os vaga-lumes, vagalumeando sob nossas cabeças, com as luzinhas verdes a piscar. É um assombro de beleza que só termina ao se chegar em casa, quando as corujas esperam no muro, virando as cabeças e fazendo arrulhos de boas vindas. É abrir o portão e se deixar envolver pelos gatos que se enroscam nas pernas e pelos homens que são a razão do meu viver. Viver no Campeche é caminhar na beleza.

Em “Por aí, esperando a faísca...”, a autora deixa explícita essa relação com o ser ancorado onde passa, dono do plano, das lonjuras, do horizonte:

Aprendi com Walter Benjamin a andar pela minha cidade feito um viajante, com os olhos procurando ver o que sempre ali esteve, mas de um jeito diferente. Olhos de assombramento, de quem não naturaliza as coisas, de quem está frequentemente admirando o cotidiano, seja para celebrar ou denunciar.

Olhar de jornalista a fazer a ligação lugar-mundo, a levar quem lê a compreender a injustiça na divisão do espaço e do tempo, a justiça da luta para que todos possam experienciar em plenitude esse fluir. O mestre Antônio Olinto diz no seu “Jornalismo e Literatura”: “O jornalista luta pelo esclarecimento de todos. Vai ao fundo mesmo das coisas, descobre a beleza de cada madrugada, a revolta de todos os fracassados, o amor de um adolescente, o silêncio do quarto de um morto, o brilho de uma onda contra o sol. Descobre apenas o que está aí, diante dos olhos de todo mundo, mas que pouca gente vê. Sua luta é um descerrar, um abrir de cortinas, para que seu companheiro, o homem de cada dia, veja o que está sob as aparências casuais da paisagem”.

No texto “E ele distribuiu a água e o queijo!” o leitor conhece Sebastião, o homem que apareceu na estrada para saciar os famintos e nada cobrou. Era socialista talvez sem o saber: “Ninguém disse nada, mas dava para sentir que todo mundo naquele veículo havia sido tocado pelo amor”.  Em “Uma sombra em rebelião”, a autora encontra a outra em si mesma, na sombra que se movimenta à revelia do corpo que a produz: “Então, no meio da noite clara, na companhia dos vagalumes, nenhum som se fez. Minha sombra calada ficou e seguiu ordeira, do meu lado, pouca coisa atrás”.


Nesses tempos de debate sobre os impactos da internet e das redes sociais na teoria e prática do jornalismo, essa coletânea expressa em palavras essa capacidade do artista “de sentir sentimentos estranhamente verdadeiros e de transmitir sentimentos estranhamente verdadeiros”, como diz Antônio Olinto no seu “Jornalismo e Literatura”. Elaine cita em mais de uma crônica o dizer dos índios navajos que é a essência de suas existências: “viver é caminhar na beleza”. Nessa coletânea, também a escrita caminha na beleza, livre do rebanho dos discursos gastos, em sua estranhamente verdadeira capacidade de empalavrar a realidade.




domingo, 21 de fevereiro de 2016

O bem viver



Bicho livre desde os 17 anos, sempre tive medo de morar junto com alguém. Totalmente confortável dentro dos meus padrões de vida simples, espiritualizada e solitária imaginava que jamais encontraria alguém que pudesse respeitar, verdadeiramente, meu jeito de ser. Assim, fui seguindo pela vida.Poucos amores, muitos namorados, muito trabalho e minha indefectível solidão, aquela que é criadora e grávida de belezas. 

Então, um dia, o vi na rua. Era um deus. Nunca pensei que pudesse amar tanto. Foi como um raio, fulminante. Por anos o segui com o olhar e o coração transbordando. Mas, demorou para que entrasse mesmo em minha vida. Quando entrou, trouxe com ele o céu. Se havia paraíso, era certo que estava todo naquele homem, doce, risonho e cheio de ternura. 

Foi para ele que abri meu mundo, sem vacilação. Já era para lá de balzaquiana quando decidi juntar os trapos e as escovas de dente. Não sem medo. Mas, a vida nos surpreende e, do nada, ali estava ele, com sua mala de belezas. Agarrei com as duas mãos.

Esse ano completamos 16 anos de vida juntos, em amorosa comunhão. Cada um tem seu próprio universo, e no meio deles, dança o nada, esses espaço necessários para que um não anule o outro. Nunca foi difícil. Atravessamos águas turvas, tempestades, mas, nada capaz de destruir o mundo que construímos. Nossas vidas andam em paralelo, mas , em algum momento do dia - desafiando toda a física  - essas paralelas se encontram, e tudo é festa.

Ele é riso, é delicadeza, é acalanto. Pesa grande na balança da vida em comum, na qual eu sou poço escuro, tristeza e solidão.  Ele é pássaro e eu terra. Ele é água, e eu fogo. Ele é açúcar e eu pimenta. E, assim, vamos nos surpreendendo cada dia.

Domingo, que é sempre dia santo, ele comanda a cozinha e eu escrevo. Vez em quando traz de lá um copo de cerveja, "pra arejar". E eu acelero  as letras. Separados, mas juntos. A união perfeita. 

Nesses anos todos, só uma certeza. Valeu não ter medo, valeu arriscar. Viver com gente é sempre uma surpreendente aventura. Nunca me arrependi.