Alzheimer/Velhice

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Líricas - lançamento dia 09 de março


Meu mais novo livro será lançado no dia 09 de março, quarta-feira, às 19h, no Bar do Zeca, espaço amoroso do bairro que escolhi para ser o bairro do meu coração: Campeche. O bar é rootzeira, coisa de gente da terra, com um grupo de trabalhadores que já são amigos do coração. Como o livro tem muitas crônicas do Campeche, não poderia ser em outro lugar...

Para chegar é fácil. Pega a Pequeno Príncipe e vai toda vida até o mar. No lado direito está o bar. Espero os amigos!!!

Abaixo reproduzo a apresentação feita de maneira muito generosa pela amiga e companheira jornalista Miriam Santini de Abreu.

A menina da rua da Coruja Dourada

Míriam Santini de Abreu

Parte da magia do jornalismo é empalavrar cotidianamente a realidade. E esse gesto de empalavrar tem várias formas e fôrmas, uma delas essa que escorre dos textos publicados pela jornalista Elaine Tavares no blog Palavras Insurgentes (eteia.blogspot.com) e que agora compõem a presente coletânea “Líricas: a palavra amorosa do cotidiano”.

O blog, no qual são postadas reportagens, artigos, comentários, fotografias e vídeos, tem sido, desde que foi criado, uma referência como voz dissonante no jornalismo cada vez mais acrítico que se pratica na atualidade. Ou que, quando crítico, se faz voltado para alugar o discurso aos poderosos, que dele se valem para disseminar o desentendimento venenoso da realidade. A escrita de Elaine, semeada em centenas de posts, amplia a compreensão do modo como a cidade se transforma em uma mercadoria à venda, mas também do movimento contrário, da resistência de mulheres e homens que desvelam essas negociatas e a combatem no cotidiano.

Os textos narram histórias de resistência pelo meio ambiente saudável, a paisagem aberta a todos, a cultura popular, a educação de qualidade, a informação a quem dela queira se apropriar, sem o controle dos oligopólios criminosos. Dessa forma, o blog – cujos textos são reproduzidos Brasil afora – também é um farol para as novas gerações de jornalistas, sinalizando o caminho das lutas populares percorrido até aqui e a escrita possível e necessária para mantê-lo aberto e pleno das narrativas de suas personagens.

Para esse seu décimo primeiro livro, Elaine pinçou do blog a escrita que, entre 2008 e 2014, se alarga no dizer de si, das cidades, dos caminhos, dos homens e mulheres que os percorrem. E assim ficaram atemporais as palavras amorosas do cotidiano, nessa escrita absurdamente célere da autora, que na sua prática cotidiana escreve como se os textos fossem frutos pendurados nos neurônios, bastando aos dedos no teclado o desejo de colhê-los. E palavras e parágrafos se avolumam para contar de Florianópolis e de outras terras, narrar as lutas de quem deseja que essa estreita faixa de terra no Atlântico não seja apenas para os ricos e bem-nascidos.

Os textos igualmente são pincelados pelos elementos da croniportagem, um gênero inventado pela equipe da revista Pobres & Nojentas, que Elaine edita e que já está na 30ª edição. A croniportagem  mistura elementos da crônica, posto que focaliza o cotidiano, e também da reportagem, visando a profundidade e a análise. 

São características da crônica, diz Massaud Moisés no livro “A criação literária”, a ambiguidade, a brevidade, a subjetividade, o diálogo - que possibilita uma conversa imaginária com o leitor -, o estilo, entre o oral e o literário, a temática, sempre ligada a questões do cotidiano, e a efemeridade. A croniportagem aproveita, em maior ou menor grau, todos esses elementos, aos quais acrescenta dois atributos da reportagem jornalística: a entrevista e a contextualização.

Assim é que, pincelado pelo viés ficcional, o texto “Um mate com `el comandante`” traz esse elemento de contextualização, em que a narradora conta ao visitante as derrotas dos povos latino-americanos, mas também as lutas e vitórias em Florianópolis, na Bolívia, em Cuba. O mesmo acontece em “Lá se foi o seu Chico” e “O menino e Artigas”, um o homem que abria seu recanto para ideias de liberdade compartilhada, outro o herói enlaçado pelos braços de uma criança, ambos sujeitos de histórias de enfrentamento pela terra.

Alceu Amoroso Lima, na já clássica obra “O jornalismo como gênero literário”, diz que o “ jornalismo vive o cotidiano, o efêmero, o que passa, e sabe, se realmente o for de verdade, ver nele a nota típica, diferencial, única, e portanto permanente, mas em sua unidade efêmera, e não na sua expressão perene, como o faz o poeta ou o ensaísta”. E ainda: o jornalista “... vive no tempo e capta a mensagem do tempo, do seu tempo, da hora que passa. Do dia a dia”. Essa nota diferencial no olhar para a realidade permeia os textos dessa coletânea.

Parte deles se volta para a compreensão da cidade, do espaço público do encontro, do conflito, do entendimento de si e do outro. Os lugares percorridos a pé, de ônibus e pelos fios da memória, unindo o tempo - o fio condutor do jornalismo - e o espaço. Textos também ancorados nas mudanças de estação, nos ciclos dia/noite, na relação memória/história. Exemplos desses líricos sobre Florianópolis, João Pinheiro, Uruguaiana, Caxias do Sul, São Borja, lugares onde Elaine morou, aparecem em textos como “O ônibus das 17:15” e “Os caminhos do Campeche”:

Na volta para casa, em meio às veredas, acompanham as curruíras, as cambacicas, as currecas, os coleirinhas, os canários da telha, os ferreirinhas, as rolinhas. Gritam os grilos, relincha um cavalo e, antes mesmo que a noite estenda seu manto escuro, já se pode vislumbrar os vaga-lumes, vagalumeando sob nossas cabeças, com as luzinhas verdes a piscar. É um assombro de beleza que só termina ao se chegar em casa, quando as corujas esperam no muro, virando as cabeças e fazendo arrulhos de boas vindas. É abrir o portão e se deixar envolver pelos gatos que se enroscam nas pernas e pelos homens que são a razão do meu viver. Viver no Campeche é caminhar na beleza.

Em “Por aí, esperando a faísca...”, a autora deixa explícita essa relação com o ser ancorado onde passa, dono do plano, das lonjuras, do horizonte:

Aprendi com Walter Benjamin a andar pela minha cidade feito um viajante, com os olhos procurando ver o que sempre ali esteve, mas de um jeito diferente. Olhos de assombramento, de quem não naturaliza as coisas, de quem está frequentemente admirando o cotidiano, seja para celebrar ou denunciar.

Olhar de jornalista a fazer a ligação lugar-mundo, a levar quem lê a compreender a injustiça na divisão do espaço e do tempo, a justiça da luta para que todos possam experienciar em plenitude esse fluir. O mestre Antônio Olinto diz no seu “Jornalismo e Literatura”: “O jornalista luta pelo esclarecimento de todos. Vai ao fundo mesmo das coisas, descobre a beleza de cada madrugada, a revolta de todos os fracassados, o amor de um adolescente, o silêncio do quarto de um morto, o brilho de uma onda contra o sol. Descobre apenas o que está aí, diante dos olhos de todo mundo, mas que pouca gente vê. Sua luta é um descerrar, um abrir de cortinas, para que seu companheiro, o homem de cada dia, veja o que está sob as aparências casuais da paisagem”.

No texto “E ele distribuiu a água e o queijo!” o leitor conhece Sebastião, o homem que apareceu na estrada para saciar os famintos e nada cobrou. Era socialista talvez sem o saber: “Ninguém disse nada, mas dava para sentir que todo mundo naquele veículo havia sido tocado pelo amor”.  Em “Uma sombra em rebelião”, a autora encontra a outra em si mesma, na sombra que se movimenta à revelia do corpo que a produz: “Então, no meio da noite clara, na companhia dos vagalumes, nenhum som se fez. Minha sombra calada ficou e seguiu ordeira, do meu lado, pouca coisa atrás”.


Nesses tempos de debate sobre os impactos da internet e das redes sociais na teoria e prática do jornalismo, essa coletânea expressa em palavras essa capacidade do artista “de sentir sentimentos estranhamente verdadeiros e de transmitir sentimentos estranhamente verdadeiros”, como diz Antônio Olinto no seu “Jornalismo e Literatura”. Elaine cita em mais de uma crônica o dizer dos índios navajos que é a essência de suas existências: “viver é caminhar na beleza”. Nessa coletânea, também a escrita caminha na beleza, livre do rebanho dos discursos gastos, em sua estranhamente verdadeira capacidade de empalavrar a realidade.




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