Fotos: Coletivo Maruim
Em 2013, por essa mesma época, perto do natal, famílias
empobrecidas que viviam na ilha sem mais condições de pagar os altos aluguéis,
ocuparam uma área na região da praia de Canasvieiras, um dos espaços mais caros
da ilha. O terreno foi reivindicado pelo empresário Artêmio Paludo, que não
conseguiu provar na justiça a posse legal de todo o espaço. Ainda assim, as
famílias que ocuparam o terreno foram obrigada a sair da área, com a ação
sempre truculenta da polícia militar. Quem acompanhou de perto aquela saga sabe
muito bem o drama que é para as pessoas que buscam vida melhor na cidade, o
despedaçamento de seus sonhos. Naqueles dias, muitos dos ocupantes eram
migrantes do interior do estado e de outros estados do Brasil. Todos tentando
encontrar na capital - que é chamada de ilha da magia - um lugar onde fincar
uma casinha e seguir na batalha renhida pela vida. E esse, talvez, seja o sonho
mais difícil de ver realizado. A terra na ilha tem peso de ouro. Perto da
praia, então, não é coisa para "o bico de pobre".
A ocupação Amarildo, que colocou à nu o processo de grilagem
de terras em Florianópolis, abriu um debate único na cidade. De quem são os
terrenos? Como eles foram conseguidos? Foram comprados, roubados, grilados?
Foram presente de alguns caciques políticos? Os "amarildos" como ficaram
conhecidos os que reivindicavam o direito à morar e produzir, inauguraram um
profundo debate sobre o latifúndio urbano, coisa que mais tarde veio desembocar
no importante trabalho de investigação sobre a terra do historiador e
ambientalista Gert Shinke. Esse trabalho já é livro: " O golpe da Reforma
Agrária - fraude milionária na entrega de terras em Santa Catarina" e
mostra como os apaniguados dos governantes foram beneficiados com a
distribuição de lotes, não só na capital, mas em todo o estado, durante a
ditadura militar. Gert escancara as verdades sobre "a propriedade da
terra", e tanto, que seu livro até hoje permanece invisível para os meios
de comunicação.
Ainda assim, a cidade parece que não se importa mesmo com o
destino daqueles que, na divisão do trabalho, ficam com o que é considerado menos
nobre. Os empobrecidos, os que vivem nas ruas, os que se agrupam nas
periferias, os "empregados" dos que vivem no asfalto, esses seguem
sendo tão invisíveis quanto as verdades que pulam do livro do Gert. Eles até
podem reivindicar alguns direitos, um aumento salarial ou coisa assim. Mas
querer "pegar o que não é seu", aí não pode. Tomar terra improdutiva
ou terra grilada da união - portanto passíveis de desapropriação - é
considerado pelos "bons cristãos" um crime. Poucos se importam em ver
que crime mesmo é inventar um sonho de vida boa na cidade grande e depois
escorraçar aqueles que acreditam nele.
Na madrugada de sábado novas famílias ocuparam o mesmo
terreno em Canasvieiras, até porque até hoje o tal "dono" não
conseguiu provar que ele é seu, e a própria Superintendência do Patrimônio da
União garante que a maioria do terreno é mesmo da União. Mas, dessa vez não
teve conversa, nem arrego. Em poucas horas, mesmo sendo final de semana, a
Justiça provou sua eficácia quando é para agir contra as gentes. Quando o dia amanheceu a ocupação já estava cercada pelo aparato de força do estado. E a
velha estória se repetiu. Pouca conversa, bombas de gás, tropa de choque.
Em poucas horas tudo já se acabara. Os que decidiram sair
por vontade própria, ficaram na beira da estrada, na estupefação que sempre
vem, apesar de tantas quedas. E os que decidiram não sair foram tirados à força
e presos. E lá foram eles, mãos na cabeça, como se fossem perigosos bandidos. Sobrou
até para os jornalistas que faziam a cobertura da ocupação. Duas fotógrafas do Coletivo
Maruim - mídia popular, e um do Diário Catarinense, do oligopólio estadual de
mídia, a RBS, também foram detidos com o argumento esdrúxulo de "estarem
fora da área permitida para os jornalistas" (????).
Desta vez, não se permitiu que o acampamento
ficasse ali, próximo ao balneário mais amado pelos hermanos argentinos,
"incomodando" os turistas. E a ocupação "Guerreira Dandara"
foi desfeita.
Para os que caminham pela cidade em busca de um canto onde
encostar a cabeça, a batalha por um chão recomeça. Ou uma encosta de morro, ou
uma favela, ou algum aglomerado irregular na beira de um esgoto. E para os que
olham com olhos acusadores essa parece a melhor solução. "Que vão para
qualquer lugar, menos para as áreas nobres, incomodar. E que vão trabalhar
porque deve ser tudo vagabundo".
E a procissão dos trabalhadores sem-nada segue enquanto a
cidade se prepara para o natal e para o ano novo. Vai ter fogos na Beira-Mar e
champanhe em Jurerê. É certo que se
algum desses ocupantes estiver vendendo cerveja no isopor, pode até ser que
ganhe um sorriso. Dandara, a negra que
reinou em Palmares, só é bem-vinda nas gravuras de livros. Na vida mesma, não. Se
por acaso se levanta com um rosto real, aí recebe toda a força da repressão.
Não tem arrego para os pobres. Esse é nosso ordinário mundo.